Cauã gostava muito de passar suas férias na casa de sua avó Jandira. Cauã morava numa cidade grande, sua avó morava numa cidade pequena do interior; uma daquelas cidadezinhas aonde as pessoas ainda conseguem ter uma horta no fundo do seu quintal, plantar suas verduras e seus legumes. O fundo do quintal da vovó Jandira dava para um pequeno bosque. Dona Jandira havia crescido numa aldeia indígena, no interior do país. Lá ela ouviu muitas histórias dos seus avós e dos anciãos da aldeia. Um dia veio morar naquela cidadezinha, mas guardou durante toda a vida na lembrança as tradições do seu povo, ela gostava de transmitir para seu neto as coisas que sabia, principalmente quando ele lhe pedia para contar histórias. Certo dia, Cauã ajudava sua avó a cuidar da horta e, numa dessas oportunidades, percebeu que muitas plantinhas que a vovó Jandira havia semeado nos seus canteiros estavam sendo devoradas e carregadas pelas formigas. Ele viu carreiras de formigas carregando para o formigueiro as folhinhas que haviam recém-cortado das plantas que brotaram.
– Vovó, o que está acontecendo? – perguntou o menino – “por que as formigas estão comendo tudo?”
– Bom meu Gaviãozinho (pois Cauã na linguagem indígena que dizer gavião) essa é a tarefa das formigas, elas devem cortar e levar pra dentro da terra em seu formigueiro o que encontram no solo da floresta, mas às vezes elas exageram e acabam cortando outras plantinhas.
– Vovó, então porque a senhora não compra veneno para matar as formigas? Eu ouvi falar que as pessoas colocam grãozinhos de veneno, as formigas carregam tudo para dentro do formigueiro e morrem. Assim acaba o problema!
– Meu gaviãozinho – disse a vovó Jandira – tem muita gente que faz isso, mas, na verdade, colocar veneno não resolve o problema, as formigas aparecem depois em outros lugares com mais força ainda e o problema retorna.
– E como é que a gente consegue então acabar com as formigas?
– Essa é uma questão difícil… Na aldeia onde eu cresci a gente tinha uma solução para isso: o tamanduá. Quando as formigas ficavam muito populosas e começavam a devorar tudo, apareciam os tamanduás, com as suas línguas compridas e pegajosas, e comiam um montão de formigas do formigueiro! Eles também comem cupins. Por isso na nossa antiga aldeia e na floresta tudo estava sempre em equilíbrio. O que está demais de um lado é equilibrado por outro ser da natureza, assim a boa ordem se mantém.
– Vovó Jandira, me conta a história do tamanduá, como é que ele surgiu? – perguntou o menino.
Cauã era um menino bem pequeno, que ainda não tinha ouvido falar nem visto um tamanduá. Na cidade, as pessoas não falam sobre tamanduás… Eles vivem nos bosques e florestas naturais, normalmente afastados das casas das pessoas.
– Ah meu netinho, vamos terminar primeiro nosso trabalho na horta e depois, à noite, eu vou contar a história do tamanduá para você.
Naquela noite, antes de Cauã ir dormir, a vovó Jandira sentou ao lado da cama do neto e contou a seguinte história:
“Há muito tempo, no início da criação do mundo, o Grande Criador – que na nossa aldeia era chamado de Tupã – estava criando os animais. Já havia criado a floresta, já havia criado os rios, já havia criado as montanhas, já haviam muitos animais: a onça-pintada, a arara-azul, a preguiça, os macacos e muitos outros. A criação não estava completa, mas a vida na floresta já era maravilhosa.
Certa manhã os animais chegaram para Tupã e disseram:
– Tupã, criador, tudo o que você fez é lindo e maravilhoso, mas estamos com um problema…
– Qual o problema? – perguntou Tupã, que podia entender a linguagem de todos os animais, pois afinal, havia sido seu criador – o que está acontecendo?
Então os macacos, tomando a palavra, disseram:
– Tupã, acontece que as folhas das árvores caem, algumas plantas apodrecem, caem os galhos, e mesmo árvores, depois que ficam velhas também morrem. Tudo isso fica no chão da floresta e vai apodrecendo, já está com cheiro ruim, não há ninguém que limpe a floresta! A floresta é tão grande, tão extensa, a gente não dá conta! Quem vai comer aquelas folhas podres? Está virando um fedor…
– Além disso, os troncos que caem são grandes e pesados, atravancam tudo! – disse a onça – Às vezes eu quero caçar, andar daqui pra lá e esbarro com muitos galhos e troncos grandes que me atrapalham o caminho….
Um depois do outro, os animais foram trazendo suas queixas, explicando que a linda floresta já não estava mais tão limpa. No início era uma floresta maravilhosa, mas com o tempo, com a renovação das plantas – que é natural – a floresta foi ficando muito suja. Tupã ouviu com muita atenção todas aquelas reclamações, depois de um tempo em silêncio, disse:
– Tenho uma ideia: vou criar um animal, que será o grande limpador das florestas. Ele vai ter dentes mais fortes que os seus, onça, para poder quebrar e triturar os galhos e roer a madeira. Olhando para o tatu, falou: ele vai ser tão habilidoso quanto você, tatu, para cavar tocas profundas e levar todas estas coisas que estão apodrecendo no chão da floresta para dentro da terra, as folhas, os galhos, e mesmo os restos dos animais que morreram, ele irá enterrá-los. Além disso – e Tupã olhou para os macacos – esse novo animal vai será capaz como vocês, macacos, de subir nas árvores, até os galhos mais finos sem problema algum: assim cortarão os galhos secos no topo das árvores, os jogarão para baixo e recolherão tudo. Olhou para as araras Canindé e disse ainda: como vocês, araras, eles terão asas grandes e fortes. A floresta é enorme, portanto alguns deles precisarão voar de um lugar ao outro para limparem os lugares mais distantes da floresta. Assim foi descrevendo várias características de como seria aquele animal. A preguiça, que é um animal lento, mas inteligente, depois de ouvir tudo com muita paciência perguntou: – Tupã, você já pensou de que tamanho vai ser esse novo animal?
E o criador disse: – Não pensei ainda…
Naquele instante, passou por ali uma anta e Tupã com alegria exclamou:
– Será do tamanho da anta, pois precisa ser forte e poderoso!
Os animais ficaram um pouco assustados e disseram: – Como assim? Um animal mais forte que a onça, capaz de cavar tocas profundas e subir nas altas árvores, capaz de voar, capaz de devorar tudo que encontre pela frente e ainda ser tão grande como uma anta… vai ser muito perigoso! Imagine, Tupã, se esse animal ficar contra nós? Ninguém vai poder contê-lo, tão forte e poderoso ele será. Vamos ficar com muito medo, disseram todos. Tupã refletiu e entendeu que os animais tinham razão. Ele estava colocando muitas qualidades e atributos naquele animal que pretendia criar. Talvez um dia ele poderia se tornar um ser temido por todos os outros na floresta. Contudo era necessário que existisse tal animal que tivesse a função de limpar a floresta. Tupã meditou e disse:
– Está bem, eu vou fazer esse animal pequenininho. Além disso não vou fazer apenas um, mas farei dois tipos de animais diferentes: um deles será responsável por cortar, triturar e comer a madeira morta dos troncos e galhos e o outro tipo ficará responsável de levar as folhas secas, as carcaças de animais mortos e os restos apodrecidos no chão da floresta para o fundo da terra. Vou criar duas espécies de limpadores, além disso, como serão tão pequenos, precisam ser muito numerosos. Eles vão existir em quantidades enormes, mas como serão pequenos, não representarão ameaça a nenhum de vocês.
E assim, em lugar de criar um ser, Tupã criou dois: as formigas e os termitas (que são os cupins). Os termitas davam conta de comer e devorar toda a madeira apodrecida que havia. Ruíam tudo, pois seus dentinhos e ferrões são fortes e conseguem perfurar e comer a própria madeira. As formigas, que andam por toda a floresta, subindo nos galhos das árvores, cortando as folhas e os ramos que já estão sem vida, recolhem tudo que está no chão da floresta, cortam em pedacinhos pequenos e levam para dentro do seu formigueiro no fundo da terra. A partir deste dia as coisas andaram muito bem. Em pouco tempo a floresta estava limpa de novo, porque os milhares e milhares de termitas e de formigas que foram espalhados pela floresta limpavam tudo, deixando tudo em ordem. A paz e a beleza foram reestabelecidas. Depois de um tempo chegaram de novo os animais e disseram:
– Tupã, está tudo certo, tudo perfeito, mas agora surgiu um novo problema. Você fez com que as formigas e os cupins se reproduzissem tanto, e tão rápido, que com as suas asinhas, na época da reprodução, eles voam para todos os lados. A floresta está repleta de formigueiros e cupinzeiros. Isso não seria um problema, mas há formigas em excesso, elas estão subindo nas árvores, nos arbustos, e cortam também as folhas verdes. Elas não podem fazer isso, do contrário, em pouco tempo não teremos mais árvores, não vai sobrar nada! Você tem que fazer alguma coisa.
Tupã mais uma vez meditou no que os animais haviam dito, pensou bastante e disse: – Vocês têm razão. Eu decidi que vou deixar as formigas e os termitas andando pela floresta pois a função deles é muito importante para manter a floresta limpa e bonita. Preciso pensar melhor o que devo fazer. E Tupã se recolheu. No dia seguinte Tupã voltou e apresentou a todos os animais a sua nova criação:
– Olhem o novo animal que acabei de criar!
– Que animal estranho – disse o jacaré, abrindo sua boca enorme – tem uma boca tão pequenininha, tão apertada! Como ele é grande, maior que a onça-pintada! Mas como é que ele vai resolver o problema das formigas e dos cupins?
– Justamente – disse Tupã – eu o fiz grande porque queria que tivesse muita fome, e fiz sua boca pequena porque ele só vai comer formigas e cupins; ele andará pela floresta buscando formigueiros e cupinzeiros. Quando os encontrar, enfiará neles sua língua comprida e pegajosa, para comer os cupins e formigas que forem muito numerosos por ali. Assim tudo volta ao equilíbrio.
As formigas e os termitas, continuaram a existir e a realizar a sua função na floresta e o tamanduá, que é um bicho grande e guloso, vai por todos os lugares comendo o excesso de formigas e cupins. Assim a paz e a beleza reinaram de novo na floresta.”
Ao terminar a história, vovó Jandira olhou para Cauã e disse: – Está vendo meu gaviãozinho? É por isso que na floresta, na natureza, tudo é sábio. Tudo tem a medida certa, nada é demais ou fora de seu lugar. Às vezes as pessoas aqui nas cidades pensam diferente, fazem as coisas diferente. É por isto que às vezes aparece o desequilíbrio meu netinho. Eu não vou colocar o veneno para as minhas formigas. Quem sabe aparece um tamanduá do mato e resolve o problema?
Dito e feito. Não passaram muitos dias até que numa manhã, chegando bem cedinho à horta, Cauã e vovó Jandira viram um grande tamanduá enfiando sua língua no formigueiro que havia ali perto! O tamanduá comeu à vontade. Os dois, Cauã e vovó Jandira, ficaram observando à distância para não assustá-lo.
Deste modo, também no jardim e na horta da vovó Jandira, o equilíbrio se estabeleceu.
Renato Gomes