A conversa é o mais precioso que temos
No conto de Goethe “A serpente verde e a bela Lilie” encontramos um motivo que pode nos ajudar a compreender a importância da conversa. A serpente encontra uma gruta, embaixo da terra, onde estão quatro reis. Um deles é o rei de ouro. Esse rei pergunta para a serpente: „o que é mais valioso que o ouro? “. A serpente responde: “a luz”. Então o rei pergunta: „e o que é mais agradável que a luz? “. A palavra “mais agradável” é a tradução do alemão “erquicklicher”. É difícil traduzir essa palavra, que também poderia ser traduzida como “mais vitalizante”, ou seja, algo agradável no sentido de vitalizar. E a serpente responde: „a conversa“. Temos no conto os três motivos: o ouro, a luz e a conversa. O ouro é uma substância da terra e tem o seu valor tanto na qualidade físico espiritual, quanto no valor monetário que atribuímos a ele. A luz é algo imaterial, mais ligado ao espiritual, que tem a possibilidade de revelar a aparência daquilo que é material. O ouro tem a sua realidade no mesmo âmbito em que vivenciamos o nosso corpo, no âmbito da substância, enquanto a luz tem uma qualidade semelhante à nossa consciência. A conversa tem uma qualidade intermediária, entre o físico substancial e o consciente espiritual. Quando nós falamos, partimos de uma ideia, de algo que está em nosso interior, que nós queremos expressar. Pelo dom da fala criamos uma realidade no mundo físico, material: criamos a palavra audível. Nós podemos nos expressar para que o outro possa nos escutar e nós podemos escutar o que o outro nos está falando. Temos nesse conto os motivos do ouro, da luz e da conversa que nos levam a uma consciência dos três níveis da própria divindade. O ouro como uma substância terrestre tem a afinidade com o Deus Pai, criador de toda a natureza. A luz com a qualidade da consciência tem mais relação com o espírito, com o Deus Espírito. A conversa que está entre essas duas qualidades, que forma uma ponte entre o espiritual e o material, entre a luz e o ouro, tem a ver com o Cristo, com o Logos, com o dom da palavra, uma faculdade que nos foi dada e nos possibilita falar, conversar.
No Evangelho de Lucas encontramos um relato arquetípico do valor da conversa. No capítulo 24 encontramos os relatos da Ressurreição do Jesus Cristo, do caminho para Emaús, do encontro dos outros discípulos com o Ressurreto e a Ascensão. Somente o Evangelho de Lucas relata o caminho de dois discípulos para Emaús e o processo que os levou a vivenciar o Ressurreto. E aí podemos ver os passos que uma conversa deve ter para que se torne mais valiosa que o ouro, mais agradável e mais vitalizante que a luz. Os discípulos estão a caminho. Isso não tem somente um significado exterior. Estar a caminho é também uma qualidade interior. Será que em todas as conversas que temos estamos a caminho? Com certeza não, pois muitas conversas têm o caráter de que cada um procura colocar o seu ponto de vista. É como estar parado num ponto, no seu ponto de vista, e tentar convencer os outros, mas não estar a caminho com os outros, procurando chegar juntos a um novo lugar. Eles estão caminhando para Emaús, um lugarejo perto de Jerusalém. A palavra Emaús significa “riacho quente” e vários lugares tinham na época esse nome. Como no Brasil, por exemplo, temos a cidade de Poços de Caldas, que tem esse significado: fontes de águas termais. O nome do lugar onde os discípulos querem chegar nos chama atenção para um próximo motivo: almejam a qualidade da água, algo vitalizando, e do calor. O que eles estavam conversando? Estavam trocando as recordações e informações que tinham a respeito de tudo o que havia se sucedido com Jesus. E eles não conseguem entender. Não estão somente a caminho de um lugar para o outro, estão a caminho do entendimento, procurando compreensão. Eles tiveram a vivência, eles sabem dos fatos, eles contam um para o outro o que sabem, mas estão com uma pergunta aberta, não se sentem donos da resposta. Toca-os existencialmente uma pergunta: o que se sucedeu? Esse é o próximo motivo para uma conversa frutífera: ter uma pergunta aberta e não ser o dono de respostas. É a questão se estamos em uma conversa a caminho, em que temos conhecimentos e os colocamos à disposição do outro. Não temos a resposta, mas vivemos com uma pergunta para a qual podemos abertamente procurar juntos uma resposta.
Então é descrito como o Jesus Cristo, o Ressurreto, se aproxima deles. Eles agora são três, os discípulos conversam com o Ressurreto, mas não O reconhecem. Aqui no Evangelho de Lucas temos um relato de algo que a partir do século XX tem se tornado uma experiência real para muitas pessoas. Nos anos setenta do século passado, na Escandinávia, foi feito um estudo por psicólogos que queriam pesquisar sobre anomalias anímicas. Publicaram um pedido no jornal para que pessoas que tiveram um encontro com Jesus enviassem sua história. Receberam muitos relatos, chamando-lhes a atenção como haviam neles qualidades tão semelhantes, de tantas pessoas que não se conheciam, e que os levou a concluir que não se tratava de alucinações, mas de vivências reais. Foi então publicado um livro com vários desses relatos. O incrível é que a qualidade desses encontros é a mesma daquele relatado no Evangelho de Lucas. As pessoas vivenciam uma outra pessoa, conversam com ela, recebem orientação para a vida, se sentem profundamente tocadas, mas só no momento em que a outra pessoa desaparece percebem ter havido um encontro com o Jesus Cristo. Também temos de Rudolf Steiner a descrição de que sempre mais a partir do século XX aconteceriam esses encontros com o Cristo. Isto tem a ver com a aproximação do Cristo no âmbito etérico. Podemos procurar sentir que hoje o Cristo se aproxima de cada um de nós, se aproxima em cada conversa que temos. No caminho para Emaús o Jesus Cristo pergunta aos discípulos sobre o que eles estão falando. Eles relatam que não conseguem compreender o que vivenciaram, e estão tristes. Então o Jesus Cristo explica tudo para eles, descreve como tudo já estava previsto pelos profetas e faz parte do conteúdo do Antigo Testamento. Mas agora nos deparamos com o motivo de que eles adquirem o conhecimento sobre o que se sucedeu, tem uma explicação, estão conversando com o Jesus Cristo e mesmo assim não o reconhecem, não o vivenciam. O que se trata aqui de algo extraordinário, se repete continuamente em nossas vidas: o conhecimento não é ainda uma vivência. Uma explicação sobre um conteúdo espiritual, uma explicação sobre o Cristo, não é a vivência, mas é o passo preliminar que necessitamos para chegar à vivência. Depois de terem estado a caminho, de terem vivido com uma pergunta, de terem recebido conhecimento, os discípulos chegam a Emaús. Nesse momento o Jesus Cristo se despede e surge a necessidade de uma atividade dos discípulos para que o encontro passe para um nível mais elevado. Sem essa atividade interior teriam perdido a possibilidade de reconhecê-lo, teriam permanecido no âmbito das explicações. Mas eles sentem a preciosidade do momento e dizem: “fique conosco!”. Podemos perceber que agora eles entram numa qualidade meditativa da procura da resposta. Não se trata mais de receber informações, se trata de permanecer com o que temos, de nos conscientizarmos que podemos convidá-lo para estar conosco. A procura de informações se transforma no anseio de se alimentar. Eles entram na casa, Ele reparte o pão, e nesse momento eles reconhecem o Jesus Cristo, mas Ele desaparece. A vivência é um momento de graça, não um estado que se pode prender por um longo tempo. O último motivo do relato de Lucas é que agora os discípulos se recordam do encontro, do caminho, e percebem que tiveram uma vivência sobre a qual não haviam se conscientizado: “Porventura, não se nos abrasava o coração, quando pelo caminho nos falava […]?” Agora se recordam que o coração deles tinha tido uma vivência, com um calor especial, mas que não haviam percebido. Vemos a importância do calor do coração para a qualidade do encontro, da conversa.
Podemos ver o nosso relacionamento com o Cristo em dois níveis. Um é o relacionamento que podemos ter com Ele, de uma maneira completamente individual. Essa qualidade individual se expressa na frase: “Não eu, mas Cristo em mim”. O outro nível do nosso relacionamento com o Cristo tem a qualidade social e se expressa na sentença: “Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles”. Almejar somente uma ou outra qualidade seria uma unilateralidade e não nos levaria realmente ao encontro com o Cristo. Necessitamos das duas qualidades: em nosso íntimo e em nossos relacionamentos sociais. A qualidade social se realiza pelo relacionamento que temos com o outro, é um caminho de procura, de pergunta, de aproximação. O que nos possibilita estar a caminho é a conversa. É essencial prestar atenção para a qualidade das nossas conversas. Nem sempre uma conversa é frutífera. E para que a conversa seja frutífera ela não necessita ser sempre amável e agradável.
Às vezes uma conversa bem desafiadora é muito frutífera, e outra, muito amável, pode ser apenas superficial.
O que podemos fazer para que as nossas conversas sejam frutíferas? Principalmente agora, no período do isolamento social, se tornou mais difícil ter conversas frutíferas, pois muito está acontecendo virtualmente, o que significa que a técnica está sendo colocada entre nós. Precisamos de um esforço maior, para ter a pessoa com quem falamos em nossa consciência, e não nos deixarmos enganar que o que a técnica nos transmite de imagens e sons, seja a realidade do outro. Todos nós já nascemos em uma época em que a técnica de comunicação já existia. O telefone sempre fez parte da nossa vida. Na atualidade houve apenas um enorme aumento do uso da técnica, com algumas possibilidades a mais. Mas a experiência atual nos mostra que é possível ter contato com a outra pessoa, apesar de a técnica estar colocada entre nós. Mas, para isso, precisamos de um esforço interior de procurar o encontro com o outro, apesar de estarmos separados no espaço. É possível estarmos próximos na alma apesar de distantes no espaço e vivenciando a ilusão da técnica. Mas essa situação de isolamento social não vai durar por muito tempo. E quando os encontros pessoais se tornarem novamente possíveis, sem restrições, teremos que prestar atenção em um outro problema: estar próximo no espaço não significa automaticamente ter realmente um encontro, estar próximo no âmbito da alma. É possível estar do lado de alguém e interiormente estar muito distante, completamente separados. Mas podemos nos conscientizarmos que qualquer encontro, com qualquer pessoa, é uma oportunidade única para trilhar um caminho, ter uma conversa mais preciosa do que o ouro, mais vitalizante que a luz, formar a atmosfera para que o Cristo possa se aproximar de nós. O que pode nos ajudar é prestar atenção em nosso coração: se o nosso coração está frio, com certeza não será possível ter uma conversa frutífera, mas se sentimos o calor em nós, criado pelo interesse pelo outro, podemos ter a esperança de que a conversa seja o caminho de encontrar o outro, o caminho de sentir a proximidade do Cristo.
João F. Torunsky