“Ex deo nascimur
In Christo morimur
Per spiritum sanctum reviviscimus”
A nossa consciência está sempre em desenvolvimento. Podemos observar esse desenvolvimento em nossa biografia, mas também acompanhando a biografia de outras pessoas. É evidente que a consciência de uma criança, no início da infância, é diferente da consciência de uma criança na idade escolar, ou de um jovem, ou de um adulto. Mas mesmo durante a idade adulta nossa consciência continua a se desenvolver; aos 20 anos de idade temos uma outra consciência do que aos 30, 50, 70. A consciência está em desenvolvimento permanente e podemos dizer que este é o sentido da nossa vida: aprender e desenvolver sempre mais a nossa consciência. Não apenas a nossa própria consciência, individualmente para cada um de nós, está em constante mudança, mas no decorrer da história podemos ver um desenvolvimento na consciência da humanidade. No passado, as pessoas não tinham a mesma consciência que temos hoje. Olhando para o passado mais recente, nós mesmos podemos perceber isso. Determinados fatos mudaram a consciência de toda a humanidade. Em nossa atualidade, podemos ver como a crise da pandemia de coronavirus está provocando um profundo processo de mudança da consciência. A „normalidade“, depois da pandemia, nunca mais será a mesma do que foi antes. Independente de um julgamento, se esse processo tem um efeito positivo ou negativo para a humanidade, podemos constatar que estamos num processo contínuo de desenvolvimento da consciência.
No fim do século XX, as pessoas pensavam, sentiam, percebiam o mundo de uma forma diferente do seu início, ou mesmo ao longo do século XIX. E quanto mais retrocedemos para um passado longínquo, mais se nos torna evidente como a consciência se modificou. Em geral, nosso conhecimento sobre a história é bem restrito. Mas podemos aprender com aqueles que trazem a possibilidade de abranger, com seu conhecimento, a história da humanidade como um todo. Assim, a Antroposofia, que vê a história e o desenvolvimento da humanidade a partir de um ponto de vista espiritual, pode nos ajudar a compreender como foi o caminho percorrido pelo ser humano.
Podemos ver o desenvolvimento da consciência da humanidade, no decorrer da história, em três fases. Do mesmo modo, podemos ver o desenvolvimento da consciência da criança e do jovem, até se tornar um adulto, acontecer em três fases, em três setênios. Existe uma relação entre o desenvolvimento da consciência da humanidade, no decorrer da história, e o desenvolvimento da nossa consciência, no decorrer da biografia, nos três primeiros setênios da nossa vida. Esse ponto de vista, que não será abordado aqui, tem grande importância para a pedagogia.
Na época mais antiga da história da humanidade, na primeira época do desenvolvimento da consciência, as pessoas tinham uma consciência muito diferente da nossa consciência de hoje. As pessoas tinham uma recordação das vivências que passaram, como alma, antes do nascimento, antes da concepção. Durante a vida aqui na Terra, permanecia na alma a recordação do mundo divino espiritual, onde a alma viveu antes da encarnação. As pessoas não se encarnavam, não se ligavam com o corpo tão profundamente como hoje nós nos encarnamos. Também é possível vivenciar hoje pessoas que não estão como que „completamente encarnadas“. São normalmente pessoas muito sensíveis, muito abertas para realidades anímico espirituais. Isso traz, como consequência, a dificuldade de se relacionar com a nossa vida da atualidade, tão terrestre e pragmática, cheia de responsabilidades e expectativas. Ou pode, até mesmo, se manifestar como um processo doentio. Mas, na antiguidade, era um estado normal não estar totalmente encarnado, não estar plenamente ligado com o corpo. A consequência era que as pessoas daquela época não estavam completamente despertas durante o dia e, durante o sono, que era profundo e vitalizador, não estavam totalmente inconscientes. Ao acordar, traziam recordações das vivências que tiveram durante o sono. Hoje podemos vivenciar um pouco dessa qualidade de consciência em crianças pequenas, que durante o dia ainda não estão totalmente despertas para o mundo e seus perigos, e por isso necessitam do nosso cuidado e, muitas vezes, também trazem vivências do sono, que são mais do que a recordação de um sonho. Na antiguidade, as pessoas estavam muito abertas para o mundo espiritual e não vivenciavam, como nós, o mundo sensorial como uma realidade material. A percepção sensorial do mundo provocava uma imaginação. Olhando, por exemplo, para uma árvore, as pessoas não viam, como nós, a aparência da árvore com tanta atenção: o tronco, os galhos, as folhas, as flores, os frutos. A percepção sensorial da árvore gerava, na alma, uma imaginação para a realidade espiritual, elementar, que atua na natureza, para o ser que se revela como árvore. A alma das pessoas estava permeada da realidade do mundo divino espiritual, pelas recordações da vida antes do nascimento, pelas vivências durante o sono, pelas imaginações que recebia da natureza. A consciência era fundamentada na convicção: “viemos do mundo divino espiritual e voltaremos para essa nossa origem”. A vivência da morte não era a vivência de um fim, como temos hoje. A morte era vivenciada como uma transição. Quanto mais olhamos para um passado longínquo, tanto mais as pessoas sentiam, no momento da morte, a separação do corpo como, por assim dizer, se desvestir de uma roupa. Tinham a consciência de vestir o corpo no processo do nascimento e desvestir o corpo no processo da morte. A transição pela morte era vivenciada como a possibilidade de se religar com o mundo divino espiritual, com a nossa origem, da qual nascemos. Nos mistérios Rosacruz, formou-se uma expressão em latim, que descreve essa consciência: Ex deo nascimur, que significa: nascemos de Deus. A vivência de Deus, como Deus Pai, como origem do nosso ser. A meta para o desenvolvimento da alma era, naquela época, procurar, durante a vida na Terra, a ligação com o Deus Pai, procurar a ligação com as origens divino espirituais, para que os impulsos divinos permeassem a vontade do ser humano. Naquela época, havia uma consciência que, diferente de hoje, não podia se perguntar: o que eu quero, qual é a minha própria vontade. A pergunta era: como posso continuar unido com a minha origem, para que os impulsos divinos permeiem a minha vontade. Ex deo nascimur: nascemos de Deus, viemos de Deus, e queremos que a vontade de Deus atue através da nosso vontade. A grande pergunta era: por que nascemos? Nascemos de Deus, Ex deo nascimur, e por que tivemos de nos encarnar? O grande anseio era voltar para Deus, reverter esse processo de ter nascido.
Mas o caminho do desenvolvimento nunca retrocede, na história sempre somos levados adiante, embora possam haver forças retroativas atuantes, que almejam uma repetição do passado. Mas, mesmo assim, o caminho segue em frente, e a repetição do passado se torna algo anacrônico, contraproducente, para o desenvolvimento humano.
Na antiguidade, as pessoas tinha o anseio de voltar para o estado de ligação com o divino, do qual guardavam uma recordação, ou podiam sentir a partir das tradições religiosas. Mesmo assim, o caminho de individualização da humanidade prosseguiu, consequentemente com o aumento da separação do divino. Pois essa separação é necessária, para que o ser humano possa desenvolver o seu eu livre, assim como o parto e a separação da mãe são necessários para que a criança possa se desenvolver.
Entrando na segunda época do desenvolvimento da humanidade, já se nota que a autoconsciência, a consciência de um eu próprio, individual, vai crescendo. No início, a autoconsciência surgia da vivência de estar unido com Deus, e depois, de pertencer a uma raça, a um povo, a uma tribo, a uma família. O grupo, com o qual cada um se identifica, torna-se cada vez menor. Hoje, a tendência é que cada um se sinta, de alguma forma, coerente somente consigo próprio ou, pelo menos, procure essa autenticidade em si próprio e, cada vez menos, com um grupo social, com a família, o povo, a raça. Na antiguidade não havia essa autoconsciência individual; a autoconsciência surgia a partir da condição de ter o mesmo sangue, de pertencer ao mesmo povo, à mesma raça, à mesma família. Tendências nessa direção, que surgem ainda hoje, são completamente contrárias ao desenvolvimento da humanidade, pois é necessário seguirmos um caminho de individualização. Mas, quanto mais a autoconsciência individual desperta, tanto mais se vivencia estar separado, não só dos grupos sociais, mas também do mundo divino espiritual. A recordação das vivências anteriores ao nascimento foi, assim, diminuindo, se apagando. Sempre menos pessoas tinham uma recordação genuína, viva, das vivências no mundo divino espiritual. A vivência do mundo divino espiritual é substituída por ensinamentos e tradições. Surgem as distintas correntes e grupos religiosos. Paralelamente, com a perda da recordação e da percepção do mundo espiritual, vai aumentando a vivência concreta do mundo sensorial terrestre. A consciência vai despertando sempre mais para o mundo material. Perde-se essa possibilidade atávica, ou seja, de receber imaginações reais do mundo espiritual na percepção do mundo terrestre. Passa-se a ver a árvore simplesmente como árvore, e não mais os seres que atuam e se revelam na natureza. A transição entre esses estados de consciência ocorre paulatinamente.
Quanto mais ocorre essa separação, quanto mais se forma uma autoconsciência individual, tanto mais surge também uma vontade própria. Tem-se agora a consciência daquilo que o indivíduo, ele próprio, quer. Não se sente mais, necessariamente, um anseio, um instinto, de querer ser permeado por uma vontade divina. Surge a necessidade de que a vontade individual seja orientada por leis morais. No Antigo Testamento temos um exemplo muito claro. Um iniciado, Moisés, que ainda tem essa possibilidade de se permear com a corrente da vontade divina, recebe a imaginação, a inspiração, a intuição dessa vontade, e transforma esse impulso na linguagem do povo e formula, em hebraico, os mandamentos. Essas leis morais determinam, então, como o individuo tem de se comportar, não a partir da sua vontade própria, mas se orientando na vontade de Deus. A vivência da separação do divino espiritual, não mais somente por estarmos encarnados, mas pelo fato de que a nossa vontade não está mais permeada da vontade divina, e até mesmo de se estar em oposição aos impulsos divinos, leva agora à consciência do que chamamos de pecado. A origem da consciência do pecado não surge com o fato de não cumprirmos leis morais, mas da vivência de que a nossa vontade se separou do divino. A necessidade de leis morais é uma consequência dessa separação. A separação da alma com o divino espiritual, na perda das recordações e na formação da vontade própria, traz um novo perigo existencial: que a alma perca a possibilidade de se unir com o divino.
Um segundo momento, muito importante nessa época, é o relacionamento com a morte, que se transforma completamente. Surge agora o medo da morte. Isso tem a ver com o que é necessário para a formação da nossa autoconsciência. Temos de estar encarnados para formarmos uma autoconsciência. Em nosso corpo, os processos que nos levam a formar uma autoconsciência são os processos catabólicos, os processos de desvitalização do corpo, os processos ligados com a morte. Isso já vivenciamos em nosso dia a dia. Acordamos com uma determinada vitalidade e, ao longo do dia, durante o período que estamos despertos, autoconscientes, ficamos cansados, desvitalizados, e precisamos dormir. Na noite, no sono, no período em que estamos dormindo, inconscientes, o nosso corpo se revitaliza. Na verdade, não é correto dizer que precisamos dormir porque gastamos energia durante o dia. Temos de dormir porque a nossa autoconsciência, que provém de uma separação do mundo divino espiritual, desvitaliza o corpo e o coloca na tendência de morrer.
E, como a alma necessita da ligação com o corpo para formar uma alma da consciência, aquilo que começou naquela época, chegou hoje ao ponto de provocar o sentimento de que não só temos um corpo, mas que somos o nosso corpo. Provavelmente, ninguém de nós sente o seu corpo como uma roupa que vamos desvestir no momento da morte. A vivência da morte se tornou completamente diferente. A alma se ligou de tal forma com o corpo que, quando o corpo morre, surge o temor sobre o que virá a acontecer com a alma.
A formação da autoconsciência individual, pela separação do divino espiritual e pela ligação com o corpo, leva à consciência do pecado e ao medo da morte. Pois surge agora a pergunta, se a alma pode ter uma vida no mundo espiritual, tendo a sua vontade se separado do divino e agora ligada de tal forma ao corpo que o segue no caminho para a morte. Surge então a grande pergunta: o que pode salvar a alma do pecado e da morte? Não é mais apenas a pergunta por que nascemos e como podemos voltar a nos unirmos com o divino. Agora surge a grande incerteza do que será depois da morte. A alma do ser humano se tornou dotada da consciência de um eu, mas esse eu corre o perigo de ter uma existência apenas no âmbito temporal, enquanto encarnado na Terra, e não no âmbito intemporal, no mundo divino espiritual.
Estamos falando de uma época que abrange os séculos antes e depois do Mistério do Gólgota, da nossa contagem do tempo. Um exemplo do início da consciência dessa época, temos no que o Buda trouxe sobre a existência humana. Ele traz o ensinamento de que a vida é sofrimento: nascer é sofrimento, doença é sofrimento, envelhecer é sofrimento, morrer é sofrimento, estar separado do que amamos ou unidos com o que não amamos é sofrimento. A vida é sofrimento, o fato de estarmos encarnados é um perigo para a alma, e como podemos procurar um caminho de salvação, de superação desse perigo.
Surge então na humanidade o anseio por uma salvação, mas também a esperança e a espera por um salvador. A autoconsciência individual, o eu do ser humano, que permanece com um sentimento religioso, sente a sua impotência de superar sozinho a separação do divino, e reconhece que necessita da ajuda desse divino, para poder se unir novamente com ele e ser salvo do perigo da morte da alma.
Essa ajuda do divino veio para a humanidade com o impulso do Cristo: Sua encarnação no Jesus, Sua vida na Terra, Sua morte e Sua ressurreição. O impulso do Cristo traz para a humanidade, por um lado, a renovação da consciência: Ex deo nascimur. Mas agora, não mais necessariamente como uma recordação das vivências antes do nascimento, mas pela vivência de que uma semente desse divino, do qual viemos, está semeada em nossa alma, e podemos encontrar esse divino em nós, escutar a sua voz em nosso coração. É o que podemos chamar de uma consciência moral, a voz da consciência que fala em nosso coração que, ao escutarmos, nos dá o sentimento de que somos autênticos com o nosso próprio ser superior. Ao ouvir essa voz do divino em nós mesmos, que não é senão de nós mesmos, podemos ganhar uma nova orientação moral. A vontade própria pode aprender a se orientar por essa voz, por essa consciência moral e, assim, superar a polaridade entre vontade divina e vontade própria. A vontade própria, que se orienta pela consciência moral, que fala no coração de cada um de nós, se torna ao mesmo tempo a vontade divina individualizada no ser humano. A superação do pecado, a partir do impulso do Cristo, não consiste em aprender a cumprir mandamentos, regras morais, consiste em aprender a encontrar em si próprio o divino que pode dar à nossa vontade uma orientação moral individual. O precursor dessa consciência moral foi João Batista, que descreve o seu próprio eu como „a voz que fala na solidão: prepare o caminho do Senhor“. Essa é a renovação de “Ex deo nascimur”.
O segundo impulso, que vem com Cristo, é a possibilidade dele nos acompanhar pelos processos de sofrimento, de doença, de morte, de impotência. O seu acompanhamento pode possibilitar que os processos de sofrimento, de morte, não leve a alma a seguir o caminho do corpo, mas a se desenvolver como uma individualidade espiritual. O acontecimento arquetípico que encontramos no Evangelho de João, no capítulo 11, é o relato sobre Lázaro. Sua doença e morte, o levaram ao nascimento de uma nova consciência. Essa seria uma meta para todos nós, que o nosso sofrimento, a nossa doença, a nossa morte, a nossa impotência, ganhe a qualidade da doença de Lázaro, que a partir de um relacionamento com o Cristo, nos leve a uma evolução espiritual da nossa consciência. Essa possibilidade encontramos nas palavras rosacruz: in Christo morimur. Morremos em Cristo, para termos vida em Cristo.
A vivência do Apóstolo Paulo ante Damasco tem esta qualidade: não eu, mas Cristo em mim. A partir de um processo de sacrifício do próprio eu, de impotência, de qualidade de morte: „não eu“, poder encontrar a vida em Cristo: “mas Cristo em mim”.
Mas esse impulso do Cristo, de acompanhar o ser humano nos processos de morte, não tem somente um significado para a alma, mas um significado também para o próprio corpo. Pois necessitamos de um corpo para podermos formar uma consciência individual, tornarmo-nos um eu. Agora, aqui na Terra, necessitamos do corpo físico, que se revela como corpo material. Mas como realidade espiritual, iremos necessitar do corpo físico que se revela como corpo espiritual. Esse é o grande significado da Ressurreição do Cristo: salvar o corpo físico do ser humano, criar um corpo ressurreto, espiritual, para que nós, como seres espirituais, possamos ser individualidades.
O Cristo veio como Salvador: no âmbito do corpo, pela Ressurreição, no âmbito da alma, sanando a “doença de Lázaro” e, no âmbito do espírito, renovando a consciência “Ex deo nascimur”, a partir da formação de uma consciência moral, pela voz que fala no nosso coração.
A meta dessa época foi conquistar a possibilidade de ser permeado pelo Cristo no coração, no sentir. Na primeira época, havia sido a meta de ser permeado pelo divino na vontade. No cristianismo, surge o impulso de se ligar com o Cristo em devoção, no coração, no sentir. Realmente poder sentir: não eu, mas Cristo em mim.
O impulso do Cristo é algo necessário, nós precisamos de sua ajuda. Mas esse impulso tem, em si, um perigo. A frase do Apóstolo Paulo „não eu, mas Cristo em mim“, pode levar o ser humano a desenvolver um impulso tão forte de querer dizer „não eu“, que ele pode anular o próprio eu. Em relação ao Jesus vemos esse fenômeno. Jesus, no momento do batismo, realmente realizou esta frase „não eu, mas Cristo em mim“, de tal forma que o eu, que estava encarnado em Jesus até aos 30 anos de idade, se retira e oferece o seu corpo para que o Cristo possa se encarnar. Isso foi necessário para o impulso do Cristo, mas essa não é uma meta para nós. Nossa meta é nos unirmos com o Cristo sem perder o nosso eu, sem deixar de ser uma individualidade livre. O próprio Cristo impede que o relacionamento com Ele se torne, para nós, um perigo de anular o nosso eu, no momento em que Ele, na Ascensão, se afasta da consciência do ser humano. Os discípulos O vivenciam por 40 dias depois da Páscoa. Sua alma estava preenchida pela proximidade do Ressurreto. Mas, então, Ele desaparece nas nuvens, os discípulos perdem a possibilidade de vivenciá-Lo e sofrem com a separação, com o abandono, com a impotência.
Ao longo da história, o cristianismo se forma sempre mais, não por vivências diretas das pessoas com o Cristo Ressurreto, mas por ensinamentos e tradições. Evidentemente sempre existiram algumas poucas pessoas que tiveram essa vivência. E elas contribuíram para que se criasse uma confiança nos ensinamentos e tradições. A devoção religiosa cresce muito nos séculos da história do cristianismo, mas cresce também, sempre mais, a individualização, a consciência do eu.
Em torno do século XV podemos ver uma transição para uma terceira época. O descobrimento da Terra dá grande passos, tanto no sentido geográfico, como em todas as ciências naturais. O ser humano está agora totalmente desperto para o mundo material, desenvolvendo cada vez mais conhecimento sobre ele, e técnicas para dominá-lo. Isso é consequência de estar ainda mais encarnado e separado do mundo divino espiritual. Esse caminho de separação da consciência do ser humano do mundo divino espiritual, chega a seu auge no materialismo e no intelectualismo. A separação do espiritual chega ao pensar do ser humano. A ciência é dominada, agora, por um pensar lógico, objetivo, e assim se torna também mecânico, morto. O próprio pensar perde a sua vitalidade, perde a possibilidade de ser imaginativo, inspirativo, intuitivo. Explica o mundo a partir de teorias abstratas, no âmbito do mensurável e temporal, isento de uma realidade espiritual. Temos a morte do corpo nos processos biológicos, temos o perigo da morte da alma depois da morte do corpo, temos agora que os processos catabólicos, os processos de morte, atingem a própria consciência do ser humano e o seu pensar se torna morto. Essa é a realidade que culturalmente vivemos hoje: o perigo de que o pensar se torne sempre mais um pensar morto. E o perigo que surge para a consciência é que ela adormeça, o perigo de vivermos como sonâmbulos: estarmos aparentemente despertos, até mesmo com uma consciência intelectual muito aguçada, ou sentimentos religiosos profundos, mas estarmos espiritualmente adormecidos. Isso se nota quando uma pessoa carece de uma pergunta existencial. Vive repleta de preocupações para satisfazer as necessidades do corpo ou os desejos da alma. E se tem perguntas, vive satisfeita na alma com respostas prontas, sejam elas dadas por teorias materialistas ou por tradições espirituais, religiosas. Não está realmente sofrendo com perguntas existenciais e na procura por uma resposta. Não são todas as pessoas que vivem assim hoje em dia, mas, com certeza, são não poucas que vivem desse modo. Nas duas primeiras épocas, na humanidade como um todo, viviam perguntas essenciais. Hoje em dia, o perigo é não haver mais perguntas existenciais, de se viver somente uma vida pragmática, como um sonâmbulo. E o grande perigo é que, nesse estado de sonâmbulo, atuem em nós forças adversas que intencionam aniquilar o nosso „querer“, tornando-nos instrumentos para o mal. Rudolf Steiner descreveu, com muita ênfase, que o início da primeira guerra mundial aconteceu, porque as pessoas responsáveis pelas decisões políticas estavam espiritualmente adormecidas, e foram usadas como marionetes por forças adversas. Não foram decisões de individualidades conscientes. Foram reações atrás de reações, que levaram a uma das maiores tragédias da humanidade, que ninguém queria, e assim mesmo aconteceu. As pessoas estavam preocupadas com intrigas, interesses pessoais, regionais, e não perceberam o rumo que estavam tomando os acontecimentos. Poderia se perguntar quão despertos estavam os alemães quando levaram Hitler ao poder. Será que hoje as pessoas que ocupam postos chaves, e tem a responsabilidade de tomar decisões com consequências para humanidade, estão realmente despertas para sua responsabilidade, procurando assumir essa responsabilidade perante o mundo divino espiritual? Ou são, na realidade, sonâmbulos, demagogos que falam palavras aparentemente significativas, mas seguindo conscientemente interesses pessoais e inconscientemente servindo como instrumentos de forças adversas ao desenvolvimento da humanidade? A partir de um pensar, que não tem mais acesso a uma realidade espiritual, surge o adormecimento da consciência, e as decisões são tomadas por motivos pessoais, egoístas, e não mais com o sentido de fomentar o desenvolvimento da sociedade e do ser humano.
Perdendo a vivência existencial do “Ex deo nascimur”, a existência humana tende a ser reduzida ao período entre nascimento e morte, reduzida à existência biológica. Perdeu-se, na realidade, também o Cristo, o “In Christo morimur”. Ou por ter se tornado um materialista, ou por reduzir o Cristo a um Jesus que pode satisfazer desejos pessoais, egoístas, na condição de acreditarmos nele. Perdeu-se o ser cósmico do Cristo, o seu aspecto realmente divino, o Deus Filho.
Na Ascensão, o Cristo deixou os discípulos sozinhos, mas Ele enviou o Espírito Santo, enviou a possibilidade da festa de Pentecostes. Que impulso espiritual é este que o Cristo envia, esse envio do Espírito Santo? É o impulso de reviver o pensar individual livre. Para podermos conquistar a nossa liberdade no pensar, foi necessário que as forças de separação do divino, as forças da morte, atingissem o nosso pensar. Mas a grande pergunta da nossa época é: como o pensar pode ser revitalizado, ganhar novamente a vida, ressuscitar? Esse é o impulso do envio do Espírito Santo: dar nova vida para o nosso pensar. Esse impulso encontramos na terceira frase rosacruz: Per spiritum sanctum revivissimus. Necessitamos do impulso para que o pensar se torne vivo. Essa é, hoje, a tarefa de uma ciência espiritual, é o impulso que podemos receber da Antroposofia.
A história da humanidade segue o caminho:
“Ex deo nascimur
In Christo morimur
Per spiritum sanctum reviviscimus”
Para nós, hoje, é necessário começar o caminho pela superação do materialismo e do intelectualismo no pensar, criar uma nova vida no nosso pensar: Per spiritum sanctum reviviscimus.
Um pensar vivo irá gerar, em nós, um calor no coração. Todo o pensamento, que não é intelectual, tem a possibilidade de aquecer o nosso coração. E se queremos obter a prova se um pensamento é intelectual, precisamos somente sentir o nosso coração. Se perante um pensamento, nos mantemos frios, estamos pensando-o intelectualmente. Um pensamento que ganhou vida pode aquecer o nosso coração e nos dá a possibilidade de nos ligarmos com a vida do Cristo sem perder a consciência e liberdade do nosso eu: In Christo morimur.
A partir de um pensar vivo, e a partir do nosso relacionamento com o Cristo, podemos renovar em nós a consciência de que a nossa origem está no mundo divino espiritual, que a nossa existência ultrapassa a temporalidade entre nascimento e morte. Iremos reconhecer que o nosso próprio eu é uma semente divino espiritual em nós, que se desenvolve na corrente de reencarnação e formação de carma, e que tem a sua origem em Deus: Ex deo nascimur.
João F. Torunsky