“(…) mantenha forte minha alma para que ela não venha a morrer no futuro.”
O título desta palestra é uma citação do Ato de Consagração do Homem. Aqueles que conhecem o culto da Comunidade de Cristãos poderão se recordar que, no momento da comunhão do sacerdote, quando ele próprio comunga com o vinho, ele pronuncia estas palavras, que o sangue do Cristo fortaleça a nossa alma para que ela não venha a morrer. Mas mesmo vivenciando o Ato de Consagração e escutando várias vezes essas palavras, nem sempre se forma uma consciência tão precisa do que elas podem significar. Quando prestamos atenção nessas palavras, surge a pergunta se a alma realmente pode morrer. Que o nosso corpo morre, nos é evidente. Mas a nossa alma, pode ela morrer? E quando aqui nos referimos à alma, não se trata somente dos aspectos anímicos do nosso ser, se trata da nossa individualidade, do cerne do nosso ser, do que chamamos de nosso eu. Pode o nosso eu morrer?
No Novo Testamento esta ideia, de que a alma pode morrer, está descrita muito forte no Apocalipse, nos capítulos 20 e 21. É descrito que a terra e o céu não existem mais, e que é criada uma nova existência: a Nova Jerusalém. Esse momento é chamado de Juízo Final, quando acontece uma decisão sobre aquelas almas que poderão habitar a Nova Jerusalém, e aquelas que, não podendo, sofrerão a morte da alma. O critério dessa decisão consiste em que o nosso nome esteja ou não escrito no Livro da Vida. Durante a evolução da humanidade temos a possibilidade de que o nosso nome seja escrito nesse livro e, caso isso não aconteça, haverá uma consequência, a segunda morte, a morte da alma. Muito resumidamente podemos descrever assim a imaginação que João nos deu em seu Apocalipse, com suas imagens muito fortes. O motivo da morte da alma é uma ideia essencial no cristianismo. Mas, no decorrer da história, essa ideia assumiu um papel muito problemático. A ideia do Juízo Final e da morte da alma, foi usada para, de um lado, criar medo nas pessoas e, de outro, oferecer a salvação por meio da instituição religiosa, muitas vezes com o propósito de vender essa salvação. Infelizmente esse método de vincular as pessoas a um movimento religioso não faz parte somente da história passada do cristianismo, mas algo que, ainda hoje, é usado por vários movimentos religiosos que se autodenominam cristãos, mas que, em realidade, não o são. Pois atuar pelo medo, subtraindo a liberdade e, às vezes, também o dinheiro das pessoas, não é, de maneira alguma, a forma de atuação do Cristo. Para tentar entender o que pode significar a morte da alma, temos de superar esses medos criados no cristianismo. Todos nós estamos nos desenvolvendo, desenvolvendo a nossa alma, o nosso eu. A meta é nos tornarmos individualidades livres. E o medo nunca será um motivo que possa orientar uma individualidade livre. Mas, para ser livre, é muito importante ter a consciência das consequências que resultam das nossas decisões e o impulso de assumir a responsabilidade por essas consequências. Por isso, é muito importante, para o desenvolvimento do nosso eu, ter uma consciência sobre a consequência desse desenvolvimento seguir uma determinada direção. Pela Antroposofia temos a ajuda para reconhecer que o ser humano é um ser espiritual, que temos uma origem divina e que, em nossa origem, temos uma existência atemporal. Aquilo que normalmente se chama de eterno não deveria ser entendido como um tempo de duração infinita, mas como uma realidade que não pertence ao âmbito do tempo, portanto, atemporal. E, mesmo reconhecendo a origem divino espiritual e atemporal do nosso ser, a Antroposofia também reconhece o perigo da morte da alma, da morte do nosso eu. Isso ocorre porque o nosso eu não é algo que possuímos como, por exemplo, o nosso corpo. A origem divino espiritual do nosso eu é como uma potência, a possibilidade de que algo seja criado. É como uma semente, que não é ainda a planta, mas tem em si a potência de germinar, crescer e se tornar uma planta. Existe a possibilidade de que da semente cresça uma planta, mas existe também a possibilidade de que da semente nada cresça. Como potência, somos seres divinos espirituais, atemporais, mas não ainda como realidade.
A ciência espiritual relata o desenvolvimento do mundo e do ser humano em diversas etapas, diversos estados planetários, chamados de antigo Saturno, antigo Sol, antiga Lua, a nossa Terra atual e um estado futuro chamado Júpiter. Na Bíblia encontramos a descrição do desenvolvimento do mundo e do ser humano, começando pela criação e o paraíso, passando pela existência terrena que temos e chegando até a criação de um novo céu e uma nova terra, a Nova Jerusalém. Prestando atenção à descrição da Nova Jerusalém podemos ver que ela é, por um lado, uma metamorfose do Paraíso, com a árvore da vida e a do conhecimento, com as quatro correntes de água, e, por outro lado, é uma espiritualização dos elementos terrestres. Existe um relacionamento muito profundo entre a descrição da Bíblia e a descrição que encontramos na Antroposofia, pois ambas relatam a mesma verdade, de modo distinto. Aquilo que na Bíblia é descrito como o final da Terra e a criação da Nova Jerusalém, na Antroposofia encontramos como a descrição da transição da forma de existência da nossa Terra para uma nova forma chamada Júpiter. Nas duas descrições temos uma transição de uma existência material, temporal, para uma existência espiritual, atemporal. Surgirá então a consequência de ter sido possível ou não, durante o desenvolvimento na Terra, de se ter formado uma existência espiritual atemporal. Poderíamos ainda dizer que, nas palavras do Apocalipse, terá sido possível escrever o nosso nome no livro da vida, para poder habitar a Nova Jerusalém. O Juízo Final não é uma recompensa ou uma punição, mas a consequência do nosso desenvolvimento, a colheita dos frutos de uma existência.
Como podemos compreender o significado da morte da alma? Nossa experiência com a morte está relacionada ao nosso corpo físico. Aqui é mais fácil vivenciar o que é a morte. As substâncias que preenchem o nosso corpo, e que vivenciamos como matéria, são substâncias da natureza, do reino mineral. Em si, elas não têm vida. Fora do nosso corpo, as substâncias se comportam como qualquer elemento mineral sem vida, mas, dentro do nosso corpo, as substâncias são elevadas a processos de uma vida biológica e tomam formas completamente distintas dos minerais encontrados na natureza. O nosso corpo físico tem uma vida porque as substâncias são elevadas de um nível mineral para um nível de uma vida biológica. Isso é possível porque em nosso corpo físico atuam forças mais elevadas que aquelas encontradas nele, forças que chamamos de forças vitais ou etéricas. As forças etéricas elevam o corpo físico ao nível de uma vida biológica e, no momento que essas forças vitais param de atuar, o chamado corpo etérico se desliga do corpo físico, e este morre, ou seja, volta a ser um aglomerado de substâncias minerais. O sentido da existência do nosso corpo físico é o fato de que ele se coloca à disposição para que um nível superior, o nível etérico, atue nele e assim possa se formar uma vida biológica. Em si próprio e só para si próprio, um corpo físico não tem um sentido. Seu sentido é colocar-se à disposição, servir ao corpo etérico, para que as forças vitais possam nele atuar. Se olhamos para o nível superior, as forças vitais, podemos ver que esse corpo etérico tem a possibilidade de atuar no físico e criar essa vida biológica. Mas agora podemos nos perguntar qual é o sentido de existir essa vida biológica. Em nossa existência, a nossa vida biológica também não tem um sentido em si própria. O sentido do nosso corpo etérico é formar uma vida biológica que possibilite a nossa vida anímica. Temos o nosso corpo físico, que serve ao corpo etérico, para formar uma vida biológica. E temos o corpo etérico, que forma a vida biológica, e serve à nossa alma, para que possamos formar uma vida anímica, nossos pensamentos, sentimentos, força de vontade, nossa consciência. Na realidade, o corpo etérico já não consegue formar essa vida biológica somente a partir de si próprio. Ele atua na matéria, no físico, formando os processos vitais, mas necessita também, para o seu trabalho, de uma orientação espiritual. Ele é como o pedreiro que constrói uma casa, mas necessita da orientação de um arquiteto. O corpo etérico necessita das imagens arquetípicas do ser humano, que orientam como ele pode atuar. Essas orientações, essas imagens arquetípicas do ser humano, o corpo etérico tem de receber de um nível superior a ele; ele as recebe, assim, do que chamamos nosso corpo astral, que é a base da nossa vida anímica. Se o corpo etérico não tivesse essa orientação do corpo astral, ele perderia a possibilidade de atuar. Aquilo que pode parecer abstrato, é uma experiência que fazemos todos os dias. O sentido do corpo físico está em que o corpo etérico possa nele atuar e formar a vida biológica. O sentido do corpo etérico é formar essa vida biológica para que nós, com a nossa alma, possamos nos encarnar nesse corpo vivo, formar a nossa consciência e desenvolver a nossa individualidade. Não apenas desenvolvermos a nossa consciência, mas, principalmente, a nossa autoconsciência. Podemos nos desenvolver como individualidades livres ao encarnar em nosso corpo, nos separando da realidade divino-espiritual e nos ligando com a realidade da Terra, da matéria. E surge aqui o problema que nos aproxima do nosso tema. Quanto mais formamos uma autoconsciência, a consciência do nosso eu, quanto mais nós direcionamos a nossa consciência para a natureza, para as tarefas do nosso dia a dia, tanto mais nós perdemos inconscientemente o relacionamento com as imagens arquetípicas divino espirituais do ser humano, e perdemos a possibilidade de dar a orientação para o nosso corpo etérico. O corpo etérico vai perdendo, assim, a possibilidade de atuar sobre o corpo físico. Mas o corpo etérico tem um truque. Ele forma na alma o sentimento de cansaço. O cansaço não ocorre porque gastamos a energia do nosso corpo físico, mas surge pelo anseio do corpo etérico por uma orientação espiritual. Ele perde essa orientação porque a nossa alma se preenche de conteúdos do mundo material. Com o cansaço, o corpo etérico consegue adormecer a nossa consciência e, no sono, nos unimos novamente com as imagens arquetípicas divinos espirituais do ser humano, damos novamente a orientação ao corpo etérico e acordamos vitalizados.
Seguindo um passo adiante, podemos agora nos perguntar: qual é o sentido da formação dessa vida anímica, da nossa consciência e da nossa autoconsciência? O sentido está em podermos desenvolver o nosso eu, formar as circunstâncias nas quais essa semente divino espiritual possa germinar e crescer em nós. Nos deparamos agora como o que, à primeira vista, possa parecer um paradoxo: o nosso eu se desenvolve formando uma consciência própria, se tornando uma individualidade livre, se separando do mundo espiritual e se ligando com o mundo material. Mas, quanto mais nos ligamos com o mundo material, tanto mais nos ligamos com os processos desvitalizantes, com os processos que levam à morte do corpo físico. Pois podemos ver que, no sono, nos vitalizamos, mas durante a nossa biografia, a balança entre vitalização no sono e desvitalização na vigília, não mantém o equilíbrio, pois as forças desvitalizantes vencem e o corpo morre. Assim, no decorrer do tempo, vamos desenvolvendo o nosso eu, mas, ao mesmo tempo, nos unimos, sempre mais, com as forças que nos levam à morte, que atuam somente na esfera terrestre temporal. Aqui, se torna muito importante entender a natureza do eu, como já mencionamos no início. O eu não é uma realidade como, por exemplo, o nosso corpo. O eu é uma potência de que algo possa ser criado. No seu livro Teosofia, Rudolf Steiner descreve o eu como uma entidade que recebe a sua essência e o seu significado daquilo com o que se liga. Essa descrição tem uma consequência muito profunda. Ela expressa que o eu não tem, em si, uma essência e um significado, ele os recebe daquilo com o que se liga. Assim, se desenvolvemos o nosso eu nos separando do mundo divino-espiritual, e nos ligando com o mundo terrestre temporal, o nosso eu adquire uma essência e um significado terrestre temporal. Ou seja, não terá uma essência e um significado espiritual atemporal. O que aqui pode parecer abstrato, temos como experiência em nossa vida. O que me preenche interiormente, o que dá significado para a minha vida? É aquilo com o qual eu desenvolvo um interesse de me ligar, de me unir. Muitas vezes passamos pela experiência de como é difícil conversar com pessoas que não tem interesse para o tema sobre o qual queremos falar ou, de outro lado, desejam falar sobre um tema para o qual nós não temos interesse. É sempre possível falar sobre algo que não conhecemos. Mas é necessário que tenhamos interesse em conhecer esse algo novo. Mas, quando falta o interesse de se unir com algo que provém do outro, torna-se impossível ter um encontro com o eu do outro. Querer se unir com algo, abre o eu para receber uma essência e um significado. Mas cada um deveria ser livre para decidir com o que quer ou não se unir. Não é sempre que, em nossos relacionamentos sociais, conseguimos realmente deixar o outro decidir em liberdade aquilo com que ele quer, ou não, se unir. Mas o mundo divino-espiritual, para que possamos desenvolver o nosso eu, nos deixa sempre mais livres para que possamos decidir, em liberdade, com o que queremos nos unir, qual a essência e significado que queremos dar para o nosso eu.
O nosso corpo possibilita a vida biológica, a nossa vida biológica possibilita a vida anímica, a nossa vida anímica possibilita a autoconsciência, a consciência do nosso eu, e o nosso eu ganha a liberdade de poder escolher aquilo com que quer se unir. Qual a essência e o significado que nós mesmos queremos nos dar a partir daquilo com o que nos unimos? Agora podemos começar a pensar quais são as consequências para o desenvolvimento final do ser humano, dependendo da sua escolha. Poderíamos, hipoteticamente, imaginar, qual seria a consequência, se uma pessoa, no decorrer de todas as suas encarnações, se unisse, sempre mais, apenas com a realidade temporal da Terra, até chegar a preencher-se completamente dessa realidade? A consequência seria que a essência e o significado do nosso eu seria temporal. Todos nós nos unimos, em nosso dia a dia, com muitas coisas que só tem um significado temporal. Mas, se não existisse em nossa vida nada além desses conteúdos temporais, isso teria uma consequência terrível. No momento em que a Terra passar de seu atual estado temporal para um futuro estado espiritual atemporal, o nosso eu careceria de qualquer essência e significado, não teríamos uma existência. Não poderíamos, assim, ter uma existência no futuro Júpiter, ou habitar a Nova Jerusalém. É aquilo que, no cristianismo, se chamou de segunda morte, a morte da alma. Ainda teremos muitas encarnações no futuro, mas vivemos hoje numa fase decisiva da nossa evolução. Com o desenvolvimento de uma consciência materialista, a alma corre o perigo de ganhar uma direção no seu desenvolvimento que a leve, sempre mais, a ter interesse de se unir apenas à realidade terrestre temporal e, aquilo que existe de vida religiosa espiritual corre o perigo de perder a força de direcionar o eu para uma realidade espiritual atemporal.
Precisamos encontrar o equilíbrio de nos ligarmos com a nossa encarnação, com a realidade terrestre, para podermos desenvolver a nossa individualidade, desenvolver a nossa liberdade e, ao mesmo tempo, procurar onde é possível nos unirmos com realidade atemporais, que tenham uma existência espiritual. Podemos fazer isso a partir do nosso pensar, nos unindo com ideais da humanidade, que tenham uma qualidade atemporal, e também desenvolvendo um modo de pensar que não seja apenas causal e temporal. Podemos tentar desenvolver um sentir que não seja apenas um sentir de si próprio, mas que o sentir seja realmente uma possibilidade de me unir com a natureza e com os outros. Não somente perceber a aparência temporal, mas sentir a realidade atemporal que está se revelando na natureza e no outro. E, o mais importante, se podemos desenvolver um querer que anseia por servir essa realidade espiritual atemporal que procuro reconhecer e sentir.
O nosso eu foi semeado no passado por Deus, como uma semente em nossa alma. Mas hoje estamos numa etapa da evolução, na qual essa semente já germinou, se enraizou e cresceu na realidade terrestre. Hoje o nosso eu é como uma flor que está desabrochando. Este é um ponto decisivo no desenvolvimento de uma planta, e estamos num ponto decisivo do desenvolvimento do nosso eu. Pois, se uma flor dará frutos, ou se murchará e morrer sem dar frutos, depende se ela será fecundada. A flor precisa se abrir para um ser superior, no caso um inseto, e se oferecer para ser fecundada. Então ela poderá formar um fruto. Estamos num ponto da evolução da humanidade em que o nosso eu poderá ser fecundado, se abrindo, tendo interesse, querendo se unir com os seres divinos espirituais. Mas corremos o risco de ficarmos fechados em nós mesmos, em nosso egoísmo, nos ligando apenas com a realidade terrestre temporal. O sentido do nosso corpo é servir à vida biológica. O sentido do nosso corpo etérico é servir à nossa vida anímica. O sentido do nosso corpo astral é servir ao nosso eu. Mas qual é o sentido de desenvolvermos um eu em liberdade? O nosso eu recebe uma essência e um significado divino espiritual atemporal se, em liberdade, decidimos querer servir aos ideais da humanidade, querer servir ao desenvolvimento da humanidade, querer servir ao mundo, de modo que o nosso dia a dia se torne sempre mais humano, na consciência da realidade espiritual que se revela em toda a natureza, que se revela em cada um de nós.
João F. Torunsky