Conto: Florência e Joaquim

Florência era uma jardineira que plantava flores. Ela vivia no seu sítio com seu esposo Joaquim, que era um hortelão. Ele tinha uma horta com várias verduras e legumes, e os dois, Florência e Joaquim, uma vez por semana enchiam sua carroça: Joaquim com as verduras da sua horta, Florência com as flores que plantava em pequenos buquês e levavam até a cidadezinha para vender na feira na praça principal. A vida era simples e os dois viviam tranquilos, mas começaram a chegar tempos difíceis, onde nem Joaquim nem Florência conseguiam vender sues produtos, sobrava muita coisa e eles não ganhavam o suficiente. Florência começou a ficar entristecida e desanimada também, já não cuidava dos seus canteiros com o mesmo empenho e a mesma alegria de antes. Reclamava de qualquer coisa, se aborrecia com pequenos detalhes. Joaquim às vezes tentava consolá-la, mas ele também andava preocupado, porque das coisas quem produziam não conseguiam vender o suficiente.
E assim, quando iam para a feira ela colhia bem cedo as flores, fazia os ramalhetes e buquês, deixava eles bem úmidos para que não perdessem a vivacidade. Mas mesmo assim, quando voltavam no fim da tarde todas as flores estavam murchas, diferente de épocas anteriores, quando mesmo que ela voltasse para casa com um ou outro buquê que não havia conseguido vender as flores se mantinham vivas e bonitas, e Florência podia guardá-las em um vazo na casa, ou doá-las para algum vizinho ou amigo. Agora não, não sobrava nenhuma flor que ficasse bonita por mais de um dia depois de ser cortada. Essa situação desanimava mais ainda Florência, e ela ia para a feira, tentava vender, e sempre estava aborrecida, de cara triste e às vezes até mal-humorada. Ainda assim, a vida exigia que Florência e Joaquim continuassem plantando duas verduras e suas flores para tentar revender na feira semanal da cidade. Um dia, trabalhando nos canteiros de flores Florência percebeu uma plantinha diferente que nunca havia estado ali. E ela pensou:
– Vou deixar essa planta crescer, o que será? Será que algum passarinho trouxe a semente e deixou cair aqui? Nunca vi isso antes, será que vai dar alguma flor?
E de fato passados alguns dias daquela jovem plantinha surgiram botões que abriram em flores bem pequenininhas, de um azul intenso que lembravam o céu. Florência até se alegrou um pouquinho, mas, ainda assim, desanimada, disse:
– Ah, são flores tão pequenas, nem adianta eu colocá-las nos buquês, ninguém vai se interessar por elas. Ninguém está se interessando pelas minhas flores, eu nem sei mais que sentido faz isso, continuar aqui, cuidando das flores.
Então Florência parou de olhar a plantinha com flores azuis e continuou tirando os matos e afofando a terra. Foi quando ouviu uma voz bem grossa e profunda que lhe disse:
– Você é que está fazendo as coisas totalmente erradas!
A princípio Florência pensou que era o seu esposo que estava falando com ela, mas ele estava bem longe na horta e aquela não era a voz dele. Olhou à sua volta e não tinha ninguém. E ela, assustada disse:
– Mas quem é que está aí? Quem está falando comigo?
E olhava para um lado, para o outro, e não via pessoa alguma.
– Olha aqui para baixo, sou eu que está falando com você!
E quando Florência olhou na direção daquela plantinha diferente que dava flores azuis ela viu bem próximo do chão e das raízes uma pequena criatura. Era um gnomo, que tinha um gorrinho azul e vestia uma roupa também azul e tinha uma cara bem enrugada. Ele estava olhando pra ela de cara bem feia, como se estivesse bem aborrecido.
– Quem é você? – Perguntou Florência-que coisa estranha? O que você é? Não é uma pessoa, tão pequenininho assim!
– Eu sou um gnomo, nunca ouviu falar dos gnomos? – Disse aquela criatura.
– Bom, eu já ouvi falar – disse a Florência – mas nunca havia visto nenhum!
– Claro que nunca viu, porque a gente nunca gosta de aparecer para as pessoas. Mas você está fazendo tudo errado e por isso eu decidi aparecer para você.
– Mas como é o seu nome?
– Gnox é o meu nome – disse ele.
– Gnox, me diga então, o que é que eu estou fazendo de errado? Eu continuo aqui cuidando todos os dias cuidando das minhas flores, das minhas plantas, mas nada dá certo! Elas murcham rapidamente, nada dá certo, ninguém quer comprá-las. E porque você diz que a culpa é minha? Eu estou fazendo o que eu sempre fiz!
– A culpa é sua – disse Gnox – porque você fica falando de um jeito que deixa as plantas tristes, e faz elas murcharem e faz com que as pessoas não tenham o menor interesse pelas flores.
– Eu? Do jeito que eu falo estou fazendo isso? Mas que história é essa? O que a maneira que eu falo tem a ver com as flores?
O gnomo Gnox disse:
– As pessoas não têm nem ideia, mas o que elas falam deixa coisas no mundo, e essas coisas agridem as plantas, as pessoas e as flores em especial são muito sensíveis. Só que o que as pessoas produzem quando falam, a maioria delas não vê e nem percebe. Mas os feitos, nós gnomos que vivemos aqui na terra, percebemos muito bem!
– Não é possível! – Disse a Florência – eu devo estar sonhando isso aí que você está dizendo não é possível, não é verdade!
– Eu vou lhe provar que é: arranque dois galhinhos que tenham florezinhas azuis como aquelas que estão ali na ponta do galho.
E Florência se abaixou, arrancou dois galhinhos onde haviam algumas pequenas flores azuis e Gnox disse para ela:
– Hoje vocês têm feira, não é isso? Leve estes dois galhinhos e coloque eles sobre cada uma das suas orelhas, pendure um de cada lado e fique observando as pessoas, você vai ver o que acontece – e desapareceu.
Florência depois ficou em dúvida: será que tudo havia sido uma ilusão, um sonho? Ela havia acordado tão cedo para fazer os buquês e ramalhetes, mas, o gnomo havia sido tão real, Gnox tinha falado para ela de uma forma tão clara que ela pensou que não custava nada tentar. Ela formou os buquês e os ramalhetes, umedeceu bastante os galhos com papel úmido para que não ressecassem e foi com Joaquim na carroça até a feira.
Armaram sua barraquinha, colocaram as verduras e os legumes de um lado como faziam sempre e os ramalhetes com flores do outro lado. E depois que tudo estava arrumado Florência pegou os dois galhinhos daquela planta desconhecida e colocou um por cima de cada orelha.
E para a surpresa dela algo de repente começou a acontecer: ela olhava para as pessoas em volta, quase não ouvia o que elas estavam falando, mas da boca das pessoas saíam coisas muito estranhas. Florência de repente tirou os galhosinhos e começou a ouvir normal e não via mais nada. Na hora que colocava os galhos ela deixava de ouvir as pessoas, mas parece que as palavras que as pessoas falavam se transformavam em imagens. Ela viu, por exemplo, uma pessoa que estava na barraca ao lado reclamando, xingando umas coisas bem desagradáveis e feias para a vendedora simplesmente porque ela não havia trazido as verduras e os legumes do jeito que ela queria e havia encomendado. Enquanto Florência olhava sem os galhosinhos na orelha ela ouvia as palavras feias e agressivas que aquela mulher dizia. Quando colocava os galhinhos na orelha, de repente ela deixava de ouvir as palavras mas via o que saia da boca daquela mulher: eram umas criaturas estranhas, pareciam animais grotescos: ela viu um porco com cabeça de dragão, viu uma serpente com cauda de escorpião – tudo isso eram animais muito estranhos, eram formados no ar como se fossem em formas de nuvens e saíam bufando e agredindo tudo que tinha na sua frente, como se quisessem morder e machucar as pessoas. É claro que Florência sabia que as pessoas não sentiam nada daquilo, mas aquelas coisas feias eram as palavras que as pessoas estavam dizendo: palavras feias, palavras agressivas, palavras com más intenções. Rapidamente Florência tirou galhinho das orelhas, ficou muito assustada e pensou:
– Gnox tem razão! Então quando as pessoas dizem palavras feias e desagradáveis elas se transformam nisso!
E falou para Joaquim:
– Joaquim, fique aqui cuidando das flores, das verduras, afinal não temos muitos clientes mesmo. Eu quero dar uma volta aqui pela feira, preciso ver algumas coisas – saiu da barraca e começou a andar pela feira.
Caminha por ali de repente ela percebeu que tinha pessoas conversando, havia uma que estava falando com muita raiva, dando bronca em outra. Ela ouviu o que estava dizendo a uma certa distância. Naquele momento colocou o galhinho com flores azuis em volta da orelha e agora ela viu que da boca daquela pessoa que falava agressões tão fortes não saia bichos nem animais estranhos, saiam flechas, muitas flechas que iam em todas as direções. Se fossem flechas de verdade teriam atravessado a pessoa que estava ali na frente e todas as outras que estavam perto, até Florença sentiu que algumas iam em direção dela, mas essas flechas eram invisíveis aos olhos, então ela pensou: “que desagradável, imagina você está conversando e a pessoa diante de você e da sua boca está saindo flechas”. Quando ela tirou os galhinhos percebia, eram palavras cheias de raiva, cheias de bronca, simplesmente estava dando uma bronca na pessoa e a outra simplesmente ouvia e Florência percebia que ela estava recebendo tudo aquilo junto. Continuou caminhando e agora teve uma visão bem diferente que a deixou convida. Ela viu na pracinha um casal de namorados bem abraçadinhos, ela botou o galho porque não conseguia ouvir o que eles diziam, estavam conversando em voz baixa mas quando colocou os galhinhos na orelha viu que da boca dos dois, do rapaz e da moça, saiam lindas flores, e as flores tocavam no cabelo da menina e desapareciam soltando uma fumacinha colorida e da mesma forma no rapaz, tocavam o rosto e o semblante e também se desfaziam em fumaças coloridas com tons alegres e bonitos. Florência sabia, ela não podia ouvir as palavras porque falavam bem baixo um pro outro, mas, com certeza seriam palavras carinhosas e amorosas e aquilo eram como lindas flores agradáveis de ver. Florência continuo caminhando pela feira e viu dois meninos conversando, um contando uma história para o outro. Primeiro ela prestou atenção no que um deles estava dizendo e ele estava inventando umas coisas que Florência com certeza sabia que não podiam ser verdadeiras, naquele instante ela colocou os galhinhos com as flores azuis por cima das orelhas e viu que o que o menino dizia para o outro, contando vantagens e falando coisas que não eram verdadeiras, quando ele falava era como uma fumacinha que saia e no momento seguinte não formava nada e desparecia no ar. As palavras não formavam nada e Florência pensou: “será que é isso que acontece quando a gente fala mentiras elas são como fumaças que não formam nada, que não tem sentido nenhum”. Ela já tinha visto palavras de raiva que formavam animais terríveis, palavras de agressão que formavam flechas, palavras amorosas que formavam lindas flores e agora palavras vazias, mentiras, que não queriam dizer nada e nem chegavam a formar algo. Florência continuou caminhando pela praça e viu uma professora com seus alunos passeando por aí e estava dando uma aula explicando algumas coisas da história da cidade e o que acontecia naquele lugar. Pensou Florência: “eu vou ver o que significa o que essa professora está falando aí”. Aproximou-se, mantendo uma certa distância para não atrapalhar a aula da professora, mas de modo que ela pudesse ouvir o que ela estava contando. A professora estava justamente contando a história da cidade e mostrando para as crianças os edifícios mais antigos onde havia sido fundada a cidade e era uma aula muito bonita e as crianças ouvindo com muito interesse. Florência colocou os galhinhos com as flores azuis nos ouvidos, e agora ela viu que aquilo que a professora estava dizendo saía como lindas estrelas, estrelas luminosas em diferentes cores mas todas as cores luminosas e brilhantes e pairava por cima das cabeças das crianças que recebiam toda aquela luz luminosa dos lindos ensinamentos que aquela professora fazia. Depois de caminhar muito pela praça e observar todos os lugares onde ela conseguia ver pessoas falando algo só de colocar os galhinhos no ouvido e perceber o que as pessoas diziam mesmo sem escutar, porque quando ela tinha os galhinhos no ouvido ela não escutava apenas via, já podia imaginar o que as pessoas estavam dizendo, se eram coisas bonitas, amorosas e agradáveis ou se eram palavras feias, desagradáveis e agressivas. Ela pensou: “Gnox tem razão, o que a gente fala cria coisas e se eu não tivesse recebido esse galhinho mágico dele eu jamais saberia disso, então será por isso que minhas flores andam murchando, será por isso que o meu jardim não está dando com a mesma vivacidade de antes. Eu ando tão desanimada me aborrecendo por qualquer coisa, falando palavras mais grosseiras para o Joaquim e ele também pra mim de vez em quando. Ah não pode ser assim, eu tenho que mudar isso”.
Na volta pra casa Florência contou para o Joaquim tudo que ela tinha vivido, em um primeiro momento ele nem quis acreditar e ela disse:
— Vamos fazer um teste. Coloca nas orelhas esses galhinhos.
Joaquim colocou e Florência disse:
— Eu vou cantar uma canção da infância que eu gosto muito.
Começou a cantar, Joaquim ficou assombrado. Ele não conseguia ouvir a canção que ele até conhecia bastante bem, Florência cantava com frequência, mas agora no lugar de ouvir o canto ele via as imagens lindas que saiam da boca e ele via como se fosse um riachinho agradável saindo da boca, formando formas de água que se espalhavam e envolviam o lugar e como uma chuva agradável, uma tarde quente e chuvosa, a chuva refrescando a terra, para um agricultor não tem imagem mais linda. Joaquim lembrou que a canção que ela cantava falava disso, falava da chuva, da terra, da terra que produz bem. Joaquim falou tirando os galhinhos do ouvido:
— Incrível Florência esses galhos são maravilhosos. Vamos guardá-los, vamos usá-los sempre.
Os dois forma pra casa e no dia seguinte cada um com seu trabalho tentou colocar os galhinhos de novo sobre suas orelhas e ver se acontecia o mesmo. Os galhinhos estavam murchos, eles já tinham perdido seu poder mágico, só valiam por um dia. Florência disse:
— Não se preocupe, vou lá na minha plantinha e pego um pouco mais.
Mas para a surpresa, aquela misteriosa planta de flores azuis não estava mais lá e ela chamou: “Gnox, Gnox, apareça para mim”. O gnomo não apareceu, mas Florência pensou: “não tem problema não, ele já me ensinou e me mostrou o que era mais importante”.
A partir desse dia Florência tentava controlar sobre seu desanimo e seu mau humor e sempre que estava em seus canteiros cantava, dizia palavras bonitas para as flores e se não dizia em voz alta, dizia baixinho ou pensava coisas agradáveis, mas sempre dizia um poema ou uma canção bonita quando estava ali. Ela com Joaquim, sempre que faziam o trajeto uma vez por semana levando seus produtos para a feira da cidade iam cantando, escolhiam canções agradáveis ou diziam palavras bonitas um para o outro, começaram a aprender um monte de poemas e poesias que achavam lindas e recitavam e cantavam enquanto estavam nos canteiros cuidando das flores. A vida deles se transformou, sem saber como nem porque, o que antes parecia que as pessoas não tinham tanto interesse pelas flores e pelas verduras que o Joaquim levava ou as flores da Florência, ao contrário, as pessoas vinham e passavam por ali e diziam exclamando: “Nunca vi tomates e abóboras tão bonitos como os seus, seu Joaquim! Nunca vi um buque tão delicado, mas com uma beleza tão incrível dona Florência! Eu quero levar dois buques, eu quero levar um quilo de tomate, eu quero levar essa abóbora aqui inteira!”
Agora Joaquim e Florência quase que voltavam pra casa sem nada, vendiam tudo e estavam muito contentes, mas mais contentes estavam ainda, não somente com o dinheiro que ganhavam das coisas que vendiam, mas de ver que eles haviam aprendido algo muito importante, aquilo que falamos, aquilo que dizemos transmite algo para toda a natureza, para as pessoas, para as plantas, para o nosso ambiente em volta. E as flores talvez sejam de todos os seres da natureza os mais sensíveis, os que sentem primeiro. Por isso estavam murchando antes, quando Florência só tinha desanimo em sua volta só dizia coisas desagradáveis e aborrecidas com relação a vida, com relação a tudo. Agora que ela dizia palavras bonitas, que ela cantava canções bonitas e que ela recitava poemas e cantava para as suas flores e Joaquim fazia o mesmo na sua horta, a vida deles mudou e ele diziam isso para todas as pessoas, alguns acreditavam, alguns não acreditavam. Mas fato é que a barraquinha da Florência e do Joaquim era a mais visitada naquela feira.


Renato Gomes