Época de Trindade
Referente ao Perícope Mateus 7, 1-14
“Não julgueis, para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós.
E por que reparas tu no cisco que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o cisco do teu olho, estando uma trave no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o cisco do olho do teu irmão.”
Mateus 7, 1-5
O olho é um órgão muito sensível. Qualquer impureza nos incomoda bastante e nos impede de olhar o mundo. Um minúsculo grão de areia no olho pode ser tão dolorido, que faz com que a nossa atenção se volte completamente para essa sensação, talvez até tenhamos de fechar os olhos e não vejamos mais nada. Ter algo no olho e tentar ver o “cisco no olho do irmão” é, assim, algo impossível.
Isso é, fisiologicamente, assim. Mas, animicamente, não é assim que acontece, e muitas vezes ocorre até o oposto. Desenvolvemos uma atenção especial para as nossas fraquezas, precisamente quando outros também as têm. E não só desenvolvemos uma atenção, mas também uma aversão quando percebemos nos outros as fraquezas que temos, por vezes inconscientemente, em nós mesmos. Aquilo que fisiologicamente é impossível, “ver o cisco no olho do irmão e não reparar a trave no próprio olho” é, animicamente, a situação comum.
Por que isso é assim? Por que conseguimos ver tão claramente as fraquezas do outro, se nós mesmos não somos perfeitos? Isso ocorre porque não temos em nossa alma apenas as nossas fraquezas, mas também um sentimento do que seja o ideal do ser humano. Todos nós trazemos, profundamente semeado em nossa alma, os ideais humanos, aquilo que deveríamos ser, à imagem e semelhança divina, pela qual se iniciou a nossa criação. A realidade de todos nós é que ainda não realizamos esse ideal, pois ninguém é perfeito. Cada um está a caminho, com os seus dons e com as suas fraquezas. E cada um tem um pressentimento da meta a alcançar nesse caminho do ideal humano. Esse pressentimento do ideal é o que nos dá a possibilidade de perceber o que não está de acordo com esse ideal. Podemos reconhecer isso, apesar de que nós mesmos não sejamos perfeitos. Ver o cisco no olho do irmão é possível, apesar da trave em nosso próprio olho. Esse paradoxo é exatamente o que nos faz sermos seres humanos. Isso é possível porque temos em nós o pressentimento do ideal, e é o que oferece a possibilidade de nos desenvolvermos.
O problema não está em ver o cisco no olho do irmão. Está em não ver a trave no próprio olho. Podemos desenvolver uma atenção muito aguçada para as fraquezas dos outros e não perceber as nossas próprias. O presságio do ideal do ser humano, em nós, pode nos levar a duas direções: o conhecimento do outro e o autoconhecimento. Os dois caminhos são valiosos. Isso pode então nos levar a dois impulsos: querer educar o outro e a autoeducação. O impulso da autoeducação também é valioso, mas o impulso de querer educar o outro é a fonte dos grandes problemas sociais. Frutífero se torna apenas o caminho do autoconhecimento e da autoeducação.
O evangelho nos mostra um caminho sadio de desenvolvimento. Primeiro percebemos o cisco no olho do irmão, o que é normal. Mas essa percepção deveria nos ajudar a reconhecer a trave em nosso próprio olho. A percepção das fraquezas dos outros pode nos ajudar a ir um caminho de autoconhecimento. Então, nossa tarefa passa a ser a de tirar a trave do nosso próprio olho, ir um caminho de autoeducação. Então, e só então, teremos o direito de oferecer ajuda ao nosso irmão, para que ele próprio possa tirar o cisco do seu olho, caso queira aceitar a nossa ajuda.
João F. Torunsky