O sonho de Rômulo – Parte 1 – Domingo de Ramos
Filomena morava num bairro afastado, na periferia de uma grande cidade. Sua casa era a última da ruazinha sem saída e sem asfalto, não possuía muros ou cercas. Seu quintal se estendia pelo campo aberto, onde o mato era crescido, cheio de arbustos e pequenas árvores do cerrado. Tia Filomena, como era conhecida, morava sozinha, era bem idosa, ninguém sabia sua idade, mas possuía ainda muito vigor e ânimo. Sua casinha tinha três quartos; um deles, Filomena usava como seu dormitório, nos outros dois mantinha sempre as camas arrumadas, pois de vez em quando recebia a visita de seus sobrinhos-netos, que costumavam passar as férias naquele lugar. Vera, Rômulo e Catarina, desde bem pequeninos, durante os verões, ficavam aos cuidados da velha senhora, enquanto seus pais aproveitavam para descansar ou realizar alguma tarefa que nunca conseguiam fazer por conta das suas ocupações de trabalho.
Rômulo era o mais velho dos três, Catarina sua irmã pequena, Vera, que era apenas alguns meses mais jovem que Rômulo, era prima de ambos. As mães das crianças eram irmãs e sobrinhas da gentil anciã. Filomena não tinha filhos; amava seus sobrinhos e os chamava de “seus queridos netinhos”.
A parte do dia que as crianças mais apreciavam, quando estavam de visita à tia-avó, era a hora da história. Depois da ceia, se reuniam próximo ao fogão de lenha para ouvir Filomena contar um conto ou alguma de suas inúmeras histórias antes de irem dormir.
Houve uma pandemia naquele país e as crianças não puderam ir à escola por muitos meses. Os pais das três crianças decidiram deixá-las aos cuidados da tia Filomena, pois sabiam que lá elas estariam protegidas e que receberiam, além de amor e carinho, os bons ensinamentos da anciã.
Era o mês de abril e se aproximava a Páscoa. As crianças lembravam sempre com alegria da gostosa trança de pão-doce, recheada de uva-passas, que tia Filomena costumava assar nesta época do ano para celebrar a festa da ressurreição de Cristo.
Numa destas noites, depois de ajudarem a tia-avó a limpar e arrumar a louça e os talheres que utilizaram no jantar, as crianças se sentaram em seus banquinhos, próximos à anciã. Catarina, que à época estava com 8 anos, lhe pediu:
– Tia Filomena, conta alguma história do tempo de Jesus!
Vera, que tinha 12 anos, acrescentou:
– Sim, isto mesmo! Daqui a pouco será a Semana Santa e é bom relembrar estas histórias.
Tia Filomena, olhou para as sobrinhas que estampavam um largo sorriso no rosto, dirigiu ainda o olhar para Rômulo que permanecia sério, sentado um pouco mais afastado do grupo:
– Rômulo, você também quer que eu conte uma história?
A anciã havia notado que Rômulo, que já havia completado 13 anos, não demonstrava o mesmo entusiasmo de antes para ouvir histórias…
– Sim, pode contar… – respondeu o menino meio chocho e acrescentou: Catarina e Vera vão ficar contentes em ouvir…
Tia Filomena insistiu:
– … E você? Já não se alegra mais como antes com as histórias?
Rômulo ficou um pouco encabulado, pois gostava muito da tia Filomena e não queria magoá-la, mas era fato que, na idade em que estava, notava que os contos e histórias da tia-avó lhe pareciam demasiado infantis… O menino se levantou e aproximou-se para falar em voz baixa perto do ouvido da anciã:
– Tia Filomena, sempre gostei muito das suas histórias. Não quero lhe deixar chateada, mas, agora, a senhora mesmo sabe que muitas coisas nos contos são inventadas… Já não consigo mais me alegrar ao escutá-los, como acontece com Catarina…
Tia Filomena ficou pensativa um instante, até que depois de um logo silencio disse:
– Rômulo eu entendo você, não se preocupe, isto não me deixa chateada. Você está crescendo, e quando se cresce se deixa aos poucos de gostar das coisas da infância…. Mas quero te contar um segredo: Quando as pessoas chegam na minha idade, começam de novo a gostar das coisas da infância, pois as entendemos melhor agora, com o passar dos anos… Se não quiser escutar a história não há problema, pode ir descansar no seu quarto, enquanto eu conto algo para as meninas.
Rômulo ficou indeciso um momento, retornou ao seu lugar, puxou o banquinho mais próximo de tia Filomena e das meninas e disse:
– Tudo bem, eu vou ficar. Quero escutar também.
Tia Filomena deu um sorriso e começou:
Naqueles tempos, Jesus caminhava com seus amigos e discípulos, de norte a sul do país. Quando se aproximava a festa da Páscoa dos Judeus, Pessah, como era chamada, muitas pessoas se dirigiam a Jerusalém, para poder celebrar a festa na Cidade Santa e visitar o Templo, o magnífico edifício religioso construído pelo rei Salomão muitos séculos antes. Naquele ano, aconteceu um pouco diferente que nas vezes anteriores. Todo o grupo de discípulos se dirigia para a cidade; ainda estavam distantes alguns quilômetros, quando Jesus enviou dois de seus amigos, Bartolomeu e Tadeu, até a aldeia logo adiante deles. Os dois discípulos ao chegaram lá viram um jovenzinho sentado cuidando de um jumento que estava amarrado numa palmeira. Desamarraram o jumentinho e o levaram até Jesus que montou nele…
Neste instante Rômulo não se conteve e perguntou:
– Tia Filomena, o que o jovem lhes disse? Como assim? deixou levar o jumento sem nenhuma explicação? O jumento era dele ou do pai dele? – Rômulo parecia indignado!
Antes que a anciã pudesse prosseguir, foi Catarina que falou:
– Rômulo, não interrompa a tia Filomena! Os discípulos iam levá-lo para Jesus, não vejo problema algum…
Rômulo contestou aborrecido:
– Não importa que era Jesus, não dá para sair emprestando as coisas assim para estranhos! Quem disse que aquele jovem conhecia Jesus?
– Todos conheciam Jesus! – respondeu Catarina enfurecida com o irmão – Ele era bom e curava as pessoas, com certeza depois iriam devolver o jumentinho…
– Calma Catarina, calma Rômulo! – interveio Vera – Tia Filomena está contanto, deixem ela explicar melhor o que aconteceu…
Vera, em geral, era quem tentava intermediar as discussões entre os primos. Como tinha quase a mesma idade de Rômulo, entendia suas colocações e dúvidas, mas também tinha muita afeição por Catarina, como se fosse sua irmãzinha mais nova, que sabia lidar bem com o temperamento explosivo da prima…
Por fim Tia Filomena retomou a narrativa:
Na verdade, não sei e creio que ninguém sabe, o que Bartolomeu e Tadeu disseram ao jovenzinho… o fato é que conseguiram o jumento e Jesus se aproximou de Jerusalém montado nele. As pessoas, ao verem isto, cortaram ramos e vieram ao seu encontro, eufóricas e gritando de alegria. Diziam que Jesus era o Filho de Davi, o rei de Israel! Foi um grande alvoroço…
Catarina olhou triunfante para o irmão e disse:
-Está vendo? Todos conheciam Jesus e sabiam que Ele era bom!
Vera, tocou no ombro da menina e fez um sinal com a mão para que não reiniciasse a discussão! Tia Filomena prosseguiu:
-… Sim, de fato o povo reconhecia em Jesus o Messias, o Filho de Deus, mas na cidade havia entre os líderes e os sacerdotes, alguns que não ficaram contentes com esta manifestação de alegria do povo. Seu coração estava endurecido pela inveja e não podiam aceitar que o povo prestasse mais homenagens a Jesus, um simples carpinteiro da cidadezinha de Nazaré do interior do país, do que a eles, que eram os mais eruditos e estudiosos nos assuntos da religião e da lei de Moisés. Eles consideraram que era um grande equívoco chamar Jesus de rei e, por isto, começaram a tramar um plano para mostrar ao povo que aquele homem que andava com rudes pescadores e pessoas simples, era um farsante…
-Amanhã continuamos! – disse tia Filomena – Meus queridos netinhos, agora é hora de ir para cama!
Deu um beijo de despedida em Catarina e Vera, que logo foram para o quarto onde dormiam juntas. Rômulo ficou ainda uns instantes e quando viu que a irmã e a prima já haviam fechado a porta do quarto, disse à tia-avó:
– Tia Filomena, a senhora percebe agora, por que já não consigo me alegrar com estas histórias? Tantas perguntas que não se sabe responder, tantas coisas que nem a senhora conhece… Para mim é importante saber melhor o que aconteceu naqueles tempos, assim eu poderia me interessar mais…
Tia Filomena olhou carinhosamente nos olhos do sobrinho-neto e disse:
– Rômulo, querido, você está coberto de razão: há tantos detalhes na vida de Jesus, que nem mesmo as pessoas mais estudiosas conseguiram descobrir exatamente como as coisas aconteceram, mas isto acontece também com muitas coisas na vida. Você sabe tudo o que acontece na vida de seus pais? Um dia você vai ser adulto e talvez queira contar a seus filhos histórias da sua infância e vai perceber que não conhece todos os detalhes daqueles adultos com quem você conviveu: seus pais, seus avó, de mim… Ainda assim, todos nós guardamos muitas memorias que são vivas e reais, mesmo que incompletas…
– Mas Jesus viveu há tantos anos, – replicou o menino – não existe mais ninguém que possa ter memória daqueles tempos, todos que viveram com Ele naquela época já morreram…
– Para isto existem as histórias que contamos às crianças e jovens como você, para que a memória seja transmitida e nunca desapareça! Agora está na hora de você também ir dormir. Tenha bons sonhos
Rômulo deu um beijo de boa-noite no rosto da anciã e foi para o seu quarto.
O menino permanecia inquieto com o que havia escutado e com suas perguntas sem resposta…. Vestiu o pijama, deitou-se e apagou a luz do abajur. Demorou a adormecer. No escuro do quarto, cavilava o tempo todo sobre como teria sido a conversa dos discípulos com aquele jovem que cuidava do jumento. Em algum momento Rômulo adormeceu e sonhou:
Estava sentado debaixo de uma palmeira, era cedo, o sol havia acabado de nascer no horizonte. Soprava uma brisa suave. Ao seu lado um jumento pastava alguns poucos tufos de grama que havia naquele chão pedregoso e seco. Rômulo percebeu que dois homens se aproximavam, um mais velho, de barba escura e longa, o outro mais jovem, que também possuía barba, ainda que mais rala e curta. Ao chegarem perto, fizeram uma saudação e Rômulo se levantou.
– Você está cuidando deste jumento? – perguntou o mais velho dos dois.
Rômulo sem titubear respondeu:
-Sim, ele pertence a meu pai, que me pediu para cuidar dele, enquanto ia esta manhã a Jerusalém.
O mais jovem, que se chamava Tadeu, lhe disse:
– Nosso mestre nos enviou aqui para pedir o jumento emprestado, depois nós o traremos de volta…
Rômulo se sentiu indeciso:
– Meu pai não está, não sei se posso emprestar… por que precisam dele?
Tadeu continuou:
-Nosso mestre, Jesus, está se dirigindo a Cidade Santa, pois queremos celebrar a festa de Pessah…
Bartolomeu, o mais velho, prosseguiu explicando:
– Há uma antiga profecia que diz que o Filho de Deus um dia entrará em Jerusalém montado num jumento. Cremos que este dia é hoje!
Rômulo sentiu algo estranho naquele momento ao escutar estas palavras. Era um misto de alegria e dúvida:
– Eu gostaria muito de poder colaborar com vocês, mas creio que meu pai ficará aborrecido se, ao retornar, não encontrar o jumento…
Tadeu olhou nos olhos de Rômulo e disse:
– Entendemos o que sente, pois afinal você está responsável pelo animal. Por que você não nos acompanha até a cidade? São apenas uns poucos quilômetros, assim pode pegar seu animal de volta, quando o mestre não necessitar mais dele.
Rômulo desamarrou a corda e a entregou a Bartolomeu.
Tadeu colocou sua mão sobre o ombro do menino e disse:
– Muito obrigado, o mestre ficará contente.
Rômulo acompanhou os dois discípulos até o grupo onde estava Jesus.
Simão Pedro, um dos discípulos, retirou seu manto e colocou-o sobre o lombo do animal. Alguns discípulos ajudaram Jesus a montar no jumentinho e o grupo prosseguiu a jornada até a cidade.
Rômulo se mantinha, por timidez, um pouco afastado dos demais, seguia mais próximo de Tadeu, em quem havia conquistado certa confiança.
Ao se aproximar de Jerusalém, Rômulo começou a ouvir os gritos das pessoas que corriam ao encontro de Jesus agitando ramos nas mãos. Alguns outros estendiam seus mantos sobre o caminho. O burrinho trotava tranquilo sobre o longo tapete assim formado. A emoção da gente era tamanha, que Rômulo não se conteve e começou a gritar com eles!
– Hosana, hosana, bendito o Filho de Davi, Rei de Israel!
Ao chegarem ao grande portal na muralha da cidade, Jesus desmontou, tomou a corda do jumento e entregou-a ao menino:
– Rômulo, eu te agradeço por teres me cedido teu animal. Aqui, toma-o de volta.
Jesus e os discípulos entraram na cidade. Tadeu ainda permaneceu na entrada ao lado do menino.
– Como ele sabia o meu nome? – perguntou Rômulo
– O mestre sabe muitas coisas e nos surpreende sempre, respondeu Tadeu.
Nisto o jovem discípulo retirou das pregas de seu manto um saquinho e o estendeu a Rômulo:
– Não, de modo algum! – recusou Rômulo a oferta – Eu não quero receber nenhum pagamento! Foi uma alegria poder ajudar o mestre Jesus.
Tadeu insistiu:
– Toma pega! Aqui não tens moedas! não se trata de um pagamento. Quero dar-te isto como um presente, creio que vai te alegrar no caminho de volta à tua aldeia. Aceita-o por favor!
Rômulo recebeu o saquinho. Dentro estava cheio de passas de uva.
Na manhã seguinte, Rômulo acordou alegre, fazia tempo que não se sentia assim. Levantou-se, trocou o pijama pela roupa do dia e começou a arrumar a cama. Na casa da tia Filomena as crianças sempre arrumavam a cama assim que se levantavam! Dobrou o cobertor e ergueu o travesseiro para sacudi-lo, quando percebeu que havia ali um punhado de passas de uva!
Na mesa do café da manhã, Rômulo contou para tia Filomena e para as meninas o que havia sonhado e mostrou o punhado de passas que havia encontrado debaixo do seu travesseiro;
– Tia Filomena, foi a senhora que as colocou ali? – perguntou Rômulo
– Não fui eu, meu querido netinho, não entrei no seu quarto esta noite…
Catarina bradou:
– Você não entende, Rômulo! Estas são as passas que você ganhou do discípulo Tiago! – estendendo a mão para pegar algumas acrescentou: Me dá umas? Quero provar!
Rômulo rapidamente recuou com a mão, impedindo a irmã de pegar as passas.
– Não toque!
– Eu só quero algumas! Devem ser bem docinhas!
Vera intercedeu:
– Tenho uma ideia. Rômulo, por que você não as entrega para a tia Filomena? Ela pode misturá-las na massa da trança de Páscoa.
A Rômulo lhe pareceu boa a ideia e colocou nas mãos em concha da anciã o punhado de passas de uva.
Quando o menino estava sozinho com a tia-avó, lhe perguntou:
– Como foi possível isto acontecer? Foi apenas um sonho! Mas tudo parecia tão real… Eu nunca esquecerei o olhar bondoso de Jesus quando me agradeceu!
Tia Filomena lhe disse:
– Meu querido, porque você sonhou não significa que não tenha sido real. Muitas vezes sonhos são uma forma diferente de realidade…
O menino ainda não estava satisfeito:
– Tudo isto aconteceu há tanto… como eu podia estar lá, naquele momento?
– Lembra-se do que lhe disse ontem? – comentou ainda tia Filomena: a memória mantém vivo e presente aquilo que é importante para nós!
Renato Gomes