O sonho de Filomena – Parte 4 – Domingo de Páscoa
Havia chegado o sábado da Semana Santa. Era costume neste dia que Filomena e as crianças fossem dormir mais cedo, pois no dia seguinte eles acordariam cedo, antes da saída do sol para caminhar, em total silêncio, até uma nascente que ficava no meio de um pequeno bosque, não muito distante do terreno onde morava tia Filomena. Havia uma trilha estreita que serpenteava pelo campo e que conduzia àquele manancial. Todos os anos em que as crianças visitavam a tia-avó, na madrugada do domingo de Páscoa, eles iam lá com uma moringa, buscar água fresca na fonte. Filomena usava parte desta água para agregar à massa da trança de pão doce; com o restante, a anciã enchia quantos copos fossem necessários, para que cada um que viesse lhe visitar nesta manhã festiva, tomassem pelo menos um gole daquela água fresca e dizia:
– Bebam desta água, que sai das profundezas da terra, do meio das rochas frias para a luz do sol que brilha na manhã do domingo de Páscoa!
Rômulo, Vera e Catarina, aguardavam com expectativa este momento. Era um desafio divertido para as crianças se levantarem tão cedo, ainda na escuridão, fazer tudo em silêncio e caminhar sem dizer uma palavra até que chegassem à fonte e tivessem tomado alguns goles antes de encher a moringa. Só então podiam falar e desejar mutuamente: Feliz Páscoa!
Assim ocorreu também naquele sábado. Filomena pediu às crianças para irem mais cedo à cama e, antes de se deitar, organizou tudo que necessitaria: deixou sobre a mesa da cozinha os ingredientes para preparar no dia seguinte a trança de pão doce, que este ano seria recheada com as uvas-passas especiais, que seus sobrinhos receberam em seus sonhos. Deixou também a moringa de barro no canto próximo à porta, para não esquecer de levá-la na caminhada até a fonte.
Antes de apagar a luz, olhou mais uma vez para se certificar que tudo estava em ordem e pensou:
– Este ano vou fazer a trança de pão doce um pouco maior, pois temos tantas passas de uva e os pais das crianças avisaram que chegarão cedo, para comemorar conosco a refeição da manhã de Páscoa.
Filomena ajustou o horário no despertador, fez suas orações, apagou a luz do abajur e se deitou. Não demorou a adormecer…
Abriu os olhos e notou que ainda estava escuro, mas sabia que era hora de se levantar. O despertador, porém, não havia tocado. Foi até a cozinha e percebeu que seus sobrinhos-netos já estavam esperando por ela. Agarrou a moringa e junto com as crianças deixou a casa. Apesar da escuridão, Filomena não tinha dificuldade para encontrar o caminho. As crianças a seguiam em total silêncio. Desta vez o caminho parecia ser mais longo que de costume, fazia mais curvas, às vezes descia, depois tornava a subir, ia ficando cada vez mais pedregoso… ainda assim ninguém pronunciava palavra alguma, apenas caminhavam em fila. Aos poucos perceberam que o horizonte começava a se iluminar com as primeiras cores da aurora. Por fim chegaram diante de uma colina pedregosa, subiram um pouco, o suficiente para alcançar o delicado jorro de água que descia de uma greta na rocha. Filomena começou a encher a moringa com a fresca água que jorrava…
Neste instante ouviram vozes. Três mulheres se aproximavam, uma delas trazia nas mãos um frasco de cerâmica, que parecia conter algo preciso. Elas falavam entre si:
– Quem removerá para nós a pedra da entrada da tumba?
– Sim, é uma pedra muito grande… como faremos para entrar lá?
Nisto uma delas disse:
– Olhem! A pedra já foi removida!
As mulheres se apressaram para entrar naquela cova.
Filomena e as crianças também se apressaram e chegando ao topo da colina notaram que de dentro da tumba irradiava luz. De repente as mulheres saíram agitadas. Filomena perguntou a uma delas:
– O que aconteceu?
Ela respondeu:
– Na sexta-feira, nosso mestre Jesus morreu! Colocamos seu corpo nesta cova e combinamos que viríamos hoje, no domingo, trazer este óleo perfumado para ungir o seu corpo, como é costume em nossa religião, mas vimos que o corpo não está mais lá! Um anjo resplandecente nos disse que ele retornou à vida e nos pediu para ir avisar a Pedro e aos outros discípulos…
As mulheres deixaram o local às pressas. Uma delas, porém, ficou ali. Vera reconheceu que era Maria, irmã de Marta. Permanecia sentada sobre a grande pedra que antes lacrara a entrada da tumba e chorava. Vera se aproximou e perguntou:
– Por que você está chorando?
Maria olhou para a menina e disse:
– O corpo do nosso mestre não está aqui… creio que no meio da noite alguém veio e o levou e o escondeu em outro lugar… não entendo por que fizeram isto?
Neste momento o sol nasceu no horizonte, sua luz preencheu céus e terra. Rômulo olhava intensamente a luz e as cores do novo dia quando notou que do interior do brilho luminoso da manhã alguém caminhava em direção ao grupo na entrada da cova. Maria se levantou e foi ao encontro daquela pessoa e lhe pediu:
– Senhor, creio que es o jardineiro e cuidador deste lugar. Diz-me onde colocaram o corpo do nosso mestre Jesus?
Aquele que caminhava na luz da manhã era Jesus, Maria não o havia reconhecido ainda… Ele se inclinou em direção a Maria e pronunciou seu nome em voz baixa. Catarina, que estava mais próxima de ambos, conseguir ouvir e reconheceu a voz de Jesus.
Maria exultante exclamou:
– Rabi! Rabi! – que quer dizer, mestre – Tu estás vivo! É verdade o que o anjo nos anunciou!
Jesus olhou para Maria, a seguir, dirigiu o olhar para Filomena e para as crianças e disse:
– Ide, dizei a Pedro, aos discípulos e a todos que encontrardes que ressuscitei!
De hoje em diante estarei convosco todos os dias, sempre podereis me encontrar
na Luz de cada novo dia, na água fresca que rompe a escuridão da rocha e traz vida a toda criatura, na brisa suave que sussurra a mensagem dos céus, para quem tiver ouvidos para ouvi-la, também me encontrareis em cada ser humano, que souber guardas minhas palavras no relicário do coração!
Filomena acordou com o toque do despertador! As impressões do sonho que tivera ainda reverberavam em sua alma…
Levantou-se e foi acordar as crianças. Para sua surpresa todos já estavam acordados. Foram até a cozinha. Filomena pegou a moringa e notou que estava completamente cheio da água! Estava tão admirada que, esquecendo o combinado de manter o silêncio, disse:
– Olhem! A moringa está cheia!
Catarina prosseguiu:
– Tia Filomena, não se lembra? Foi a senhora quem a encheu na fonte que jorrava perto da cova onde encontramos Maria e as outras mulheres!
Neste momento Filomena percebeu que sua sobrinha-neta tivera o mesmo sonho. Rômulo e Vera, também admirados, contaram que lhes passara o mesmo.
– Então, disse Filomena, quer dizer que todos nós, em sonhos, visitamos a tumba e estávamos lá quando Jesus ressuscitou?!
Vera olhou a todos e disse:
-Sim, tia Filomena! Isto significa que este ano fomos buscar a água naquela outra fonte!
Filomena, Vera e Catarina começaram então a relembrar cada momento do sonho que tiveram em comum. Cada frase trazia à memória novos detalhes. Parecia que a alegria borbulhava junto com as palavras que não paravam de sair de suas bocas…
Rômulo ouvia tudo e permanecia quieto; até que finalmente disse:
-Tia Filomena, este ano quero ajudá-la a preparar a massa do pão doce. A senhora me ensina?
Filomena abriu um largo sorriso e disse:
– Claro, meu netinho, com sua ajuda a trança de pão doce ficará mais gostosa do que nunca!
Naquela manhã de Páscoa todos colaboraram: Filomena e Rômulo prepararam a massa, acrescentaram as uvas-passas, formaram a trança e a colocaram no forno. Vera pôs sobre a mesa uma bela toalha, colocou os pratos, os talheres e os copos, verteu em cada um deles um pouco da água da moringa. Catarina foi ao jardim e colheu flores, montou um buque que colocou no centro da mesa, colocou ainda um raminho com flor sobre cada um dos oito pratos, pois sabia que seus pais e os pais de Vera chegariam em breve!
Estava tudo preparado quando os pais das crianças chegaram.
A trança de pão doce havia ficado linda, crescera bastante enquanto assava no forno e ganhara uma delicada crosta dourada por cima.
Filomena partiu um pedaço para cada um e, como era costume, antes de comerem, todos tomaram uns goles da água da fonte colhida na manhã de Páscoa.
Os adultos estavam contentes de visitar tia Filomena e rever seus filhos, pois, por causa da pandemia, haviam ficado várias semanas distantes deles. Aquela singela refeição de Páscoa era algo especial e trazia às mães das crianças, que eram sobrinhas da anciã, muitas lembranças de sua própria infância.
A mãe de Vera foi quem falou primeiro:
– Tia Filomena, sua trança de pão doce sempre é muito gostosa, mas este ano está mais gostosa ainda!
– Sim, disse a mãe de Rômulo e Catarina, não me lembro de haver comido uvas-passas tão doces e saborosas como estas… Onde as conseguiu, tia Filomena?
Filomena olhou para as crianças e respondeu:
– Acho melhor que as próprias crianças lhes contem…
Catarina, Vera e Rômulo contaram seus sonhos para seus pais e contaram também o sonho que tiveram juntos, quando foram buscar a água da moringa próximo à cova da ressurreição de Cristo.
Os pais das crianças olhavam admirados para seus filhos e para tia Filomena, que ouvia tudo em silêncio com um delicado sorriso nos lábios.
Por fim Rômulo completou:
– Tudo isto aconteceu, porque tia Filomena nos ensinou que os sonhos podem ser reais, mas de uma outra forma de realidade!
Tia Filomena ofereceu a cada um, outra porção da deliciosa trança de pão doce. Quando estavam satisfeitos, ela propôs:
– Meus queridos, vamos agora cantar a canção de Páscoa que cantamos desde que eram bem pequeninos. Todos gostaram da ideia e cantaram juntos:
Eu digo ao mundo que Ele vive e que ressuscitou,
que estará em nosso meio, conosco para sempre. (*)
Eu digo ao mundo que Ele vive em cada amanhecer,
na água fresca da nascente, na rocha e no ar.
Eu digo ao mundo que Ele vive em cada coração
que guarda sua palavra viva em seu interior.
Eu digo ao mundo e todos dizem ao seu melhor amigo,
que já em toda Terra brilha o sol do novo mundo. (*)
Para sempre estará conosco e não nos deixará.
Rejuvenescerá a Terra neste dia de festa! (*)
Renato Gomes
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Estes versos (*) foram traduzidos do poema “Ich sag es jedem, dass Er lebt”, do poeta romântico alemão Novalis (1772 – 1801), os demais são criação do autor.