Conto: Tia Filomena 4

O sonho de Filomena – Parte 4 – Domingo de Páscoa

Havia chegado o sábado da Semana Santa. Era costume neste dia que Filomena e as crianças fossem dormir mais cedo, pois no dia seguinte eles acordariam cedo, antes da saída do sol para caminhar, em total silêncio, até uma nascente que ficava no meio de um pequeno bosque, não muito distante do terreno onde morava tia Filomena. Havia uma trilha estreita que serpenteava pelo campo e que conduzia àquele manancial. Todos os anos em que as crianças visitavam a tia-avó, na madrugada do domingo de Páscoa, eles iam lá com uma moringa, buscar água fresca na fonte. Filomena usava parte desta água para agregar à massa da trança de pão doce; com o restante, a anciã enchia quantos copos fossem necessários, para que cada um que viesse lhe visitar nesta manhã festiva, tomassem pelo menos um gole daquela água fresca e dizia:

– Bebam desta água, que sai das profundezas da terra, do meio das rochas frias para a luz do sol que brilha na manhã do domingo de Páscoa!

Rômulo, Vera e Catarina, aguardavam com expectativa este momento. Era um desafio divertido para as crianças se levantarem tão cedo, ainda na escuridão, fazer tudo em silêncio e caminhar sem dizer uma palavra até que chegassem à fonte e tivessem tomado alguns goles antes de encher a moringa. Só então podiam falar e desejar mutuamente: Feliz Páscoa!

Assim ocorreu também naquele sábado. Filomena pediu às crianças para irem mais cedo à cama e, antes de se deitar, organizou tudo que necessitaria: deixou sobre a mesa da cozinha os ingredientes para preparar no dia seguinte a trança de pão doce, que este ano seria recheada com as uvas-passas especiais, que seus sobrinhos receberam em seus sonhos. Deixou também a moringa de barro no canto próximo à porta, para não esquecer de levá-la na caminhada até a fonte.

Antes de apagar a luz, olhou mais uma vez para se certificar que tudo estava em ordem e pensou:

– Este ano vou fazer a trança de pão doce um pouco maior, pois temos tantas passas de uva e os pais das crianças avisaram que chegarão cedo, para comemorar conosco a refeição da manhã de Páscoa.

Filomena ajustou o horário no despertador, fez suas orações, apagou a luz do abajur e se deitou. Não demorou a adormecer…

Abriu os olhos e notou que ainda estava escuro, mas sabia que era hora de se levantar. O despertador, porém, não havia tocado. Foi até a cozinha e percebeu que seus sobrinhos-netos já estavam esperando por ela. Agarrou a moringa e junto com as crianças deixou a casa. Apesar da escuridão, Filomena não tinha dificuldade para encontrar o caminho. As crianças a seguiam em total silêncio. Desta vez o caminho parecia ser mais longo que de costume, fazia mais curvas, às vezes descia, depois tornava a subir, ia ficando cada vez mais pedregoso… ainda assim ninguém pronunciava palavra alguma, apenas caminhavam em fila. Aos poucos perceberam que o horizonte começava a se iluminar com as primeiras cores da aurora. Por fim chegaram diante de uma colina pedregosa, subiram um pouco, o suficiente para alcançar o delicado jorro de água que descia de uma greta na rocha. Filomena começou a encher a moringa com a fresca água que jorrava…

Neste instante ouviram vozes. Três mulheres se aproximavam, uma delas trazia nas mãos um frasco de cerâmica, que parecia conter algo preciso. Elas falavam entre si:

– Quem removerá para nós a pedra da entrada da tumba?

– Sim, é uma pedra muito grande… como faremos para entrar lá?

Nisto uma delas disse:

– Olhem! A pedra já foi removida!

As mulheres se apressaram para entrar naquela cova.

Filomena e as crianças também se apressaram e chegando ao topo da colina notaram que de dentro da tumba irradiava luz. De repente as mulheres saíram agitadas. Filomena perguntou a uma delas:

– O que aconteceu?

Ela respondeu:

– Na sexta-feira, nosso mestre Jesus morreu! Colocamos seu corpo nesta cova e combinamos que viríamos hoje, no domingo, trazer este óleo perfumado para ungir o seu corpo, como é costume em nossa religião, mas vimos que o corpo não está mais lá! Um anjo resplandecente nos disse que ele retornou à vida e nos pediu para ir avisar a Pedro e aos outros discípulos…

As mulheres deixaram o local às pressas. Uma delas, porém, ficou ali. Vera reconheceu que era Maria, irmã de Marta. Permanecia sentada sobre a grande pedra que antes lacrara a entrada da tumba e chorava. Vera se aproximou e perguntou:

– Por que você está chorando?

Maria olhou para a menina e disse:

– O corpo do nosso mestre não está aqui… creio que no meio da noite alguém veio e o levou e o escondeu em outro lugar… não entendo por que fizeram isto?

Neste momento o sol nasceu no horizonte, sua luz preencheu céus e terra. Rômulo olhava intensamente a luz e as cores do novo dia quando notou que do interior do brilho luminoso da manhã alguém caminhava em direção ao grupo na entrada da cova. Maria se levantou e foi ao encontro daquela pessoa e lhe pediu:

– Senhor, creio que es o jardineiro e cuidador deste lugar. Diz-me onde colocaram o corpo do nosso mestre Jesus?

Aquele que caminhava na luz da manhã era Jesus, Maria não o havia reconhecido ainda… Ele se inclinou em direção a Maria e pronunciou seu nome em voz baixa. Catarina, que estava mais próxima de ambos, conseguir ouvir e reconheceu a voz de Jesus.

Maria exultante exclamou:

– Rabi! Rabi! – que quer dizer, mestre – Tu estás vivo! É verdade o que o anjo nos anunciou!

Jesus olhou para Maria, a seguir, dirigiu o olhar para Filomena e para as crianças e disse:

– Ide, dizei a Pedro, aos discípulos e a todos que encontrardes que ressuscitei!

De hoje em diante estarei convosco todos os dias, sempre podereis me encontrar

na Luz de cada novo dia, na água fresca que rompe a escuridão da rocha e traz vida a toda criatura, na brisa suave que sussurra a mensagem dos céus, para quem tiver ouvidos para ouvi-la, também me encontrareis em cada ser humano, que souber guardas minhas palavras no relicário do coração!

Filomena acordou com o toque do despertador! As impressões do sonho que tivera ainda reverberavam em sua alma…

Levantou-se e foi acordar as crianças. Para sua surpresa todos já estavam acordados. Foram até a cozinha. Filomena pegou a moringa e notou que estava completamente cheio da água! Estava tão admirada que, esquecendo o combinado de manter o silêncio, disse:

– Olhem! A moringa está cheia!

Catarina prosseguiu:

– Tia Filomena, não se lembra? Foi a senhora quem a encheu na fonte que jorrava perto da cova onde encontramos Maria e as outras mulheres!

Neste momento Filomena percebeu que sua sobrinha-neta tivera o mesmo sonho. Rômulo e Vera, também admirados, contaram que lhes passara o mesmo.

– Então, disse Filomena, quer dizer que todos nós, em sonhos, visitamos a tumba e estávamos lá quando Jesus ressuscitou?!

Vera olhou a todos e disse:

-Sim, tia Filomena! Isto significa que este ano fomos buscar a água naquela outra fonte!

Filomena, Vera e Catarina começaram então a relembrar cada momento do sonho que tiveram em comum. Cada frase trazia à memória novos detalhes. Parecia que a alegria borbulhava junto com as palavras que não paravam de sair de suas bocas…

Rômulo ouvia tudo e permanecia quieto; até que finalmente disse:

-Tia Filomena, este ano quero ajudá-la a preparar a massa do pão doce. A senhora me ensina?

Filomena abriu um largo sorriso e disse:

– Claro, meu netinho, com sua ajuda a trança de pão doce ficará mais gostosa do que nunca!

Naquela manhã de Páscoa todos colaboraram: Filomena e Rômulo prepararam a massa, acrescentaram as uvas-passas, formaram a trança e a colocaram no forno. Vera pôs sobre a mesa uma bela toalha, colocou os pratos, os talheres e os copos, verteu em cada um deles um pouco da água da moringa. Catarina foi ao jardim e colheu flores, montou um buque que colocou no centro da mesa, colocou ainda um raminho com flor sobre cada um dos oito pratos, pois sabia que seus pais e os pais de Vera chegariam em breve!

Estava tudo preparado quando os pais das crianças chegaram.

A trança de pão doce havia ficado linda, crescera bastante enquanto assava no forno e ganhara uma delicada crosta dourada por cima.

Filomena partiu um pedaço para cada um e, como era costume, antes de comerem, todos tomaram uns goles da água da fonte colhida na manhã de Páscoa.

Os adultos estavam contentes de visitar tia Filomena e rever seus filhos, pois, por causa da pandemia, haviam ficado várias semanas distantes deles. Aquela singela refeição de Páscoa era algo especial e trazia às mães das crianças, que eram sobrinhas da anciã, muitas lembranças de sua própria infância.

A mãe de Vera foi quem falou primeiro:

– Tia Filomena, sua trança de pão doce sempre é muito gostosa, mas este ano está mais gostosa ainda!

– Sim, disse a mãe de Rômulo e Catarina, não me lembro de haver comido uvas-passas tão doces e saborosas como estas… Onde as conseguiu, tia Filomena?

Filomena olhou para as crianças e respondeu:

– Acho melhor que as próprias crianças lhes contem…

Catarina, Vera e Rômulo contaram seus sonhos para seus pais e contaram também o sonho que tiveram juntos, quando foram buscar a água da moringa próximo à cova da ressurreição de Cristo.

Os pais das crianças olhavam admirados para seus filhos e para tia Filomena, que ouvia tudo em silêncio com um delicado sorriso nos lábios.

Por fim Rômulo completou:

– Tudo isto aconteceu, porque tia Filomena nos ensinou que os sonhos podem ser reais, mas de uma outra forma de realidade!

Tia Filomena ofereceu a cada um, outra porção da deliciosa trança de pão doce. Quando estavam satisfeitos, ela propôs:

– Meus queridos, vamos agora cantar a canção de Páscoa que cantamos desde que eram bem pequeninos. Todos gostaram da ideia e cantaram juntos:

Eu digo ao mundo que Ele vive e que ressuscitou,
que estará em nosso meio, conosco para sempre. (*)
Eu digo ao mundo que Ele vive em cada amanhecer,
na água fresca da nascente, na rocha e no ar.
Eu digo ao mundo que Ele vive em cada coração
que guarda sua palavra viva em seu interior.
Eu digo ao mundo e todos dizem ao seu melhor amigo,
que já em toda Terra brilha o sol do novo mundo. (*)
Para sempre estará conosco e não nos deixará.
Rejuvenescerá a Terra neste dia de festa! (*)

Renato Gomes

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Estes versos (*) foram traduzidos do poema “Ich sag es jedem, dass Er lebt”, do poeta romântico alemão Novalis (1772 – 1801), os demais são criação do autor.

Conto: Tia Filomena 3

O sonho de Catarina – Parte 3 – Quinta-feira Santa

Para Catarina aquele dia transcorreu lentamente. A menina, impaciente, contava os minutos para que chegasse a hora da história.

No final do dia, tia Filomena sentou-se com seus sobrinhos-netos nos banquinhos da cozinha e contou-lhes como Jesus havia decidido, naquela noite, celebrar a tradicional ceia judaica de Pessah com seus discípulos. Aquela ceia seria a última refeição que Ele faria com seus discípulos e amigos antes de sua morte. A pequena Catarina ficou muito triste ao escutar que Jesus iria morrer, pois ainda que já soubesse disto, todos os anos quando tia Filomena lhes contava esta parte a menina ficava profundamente tocada por este momento. Tia Filomena a consolou:

– Catarina, querida, é compreensível que quando alguém que amamos morre, fiquemos tristes, tudo isto faz parte da nossa vida. Mas pense como deve ter sido especial este momento em que Jesus festejou a Última Ceia com seus discípulos. Eles carregaram a lembrança deste momento por toda vida e sempre que o rememoravam se enchiam de alegria!

As crianças foram dormir. Catarina, deitada em sua cama, relembrava as explicações de tia Filomena, mas ainda assim não conseguia entender como era possível que os discípulos ficassem alegres naquela noite, quando já sabiam que Jesus iria morrer em breve…

Era o final da tarde, Linos se encaminhava até a fonte com um cântaro para buscar água. Catarina o acompanhava, carregando também um jarro menor. Havia pouca gente nas ruas de Jerusalém aquelas horas; todos estavam em suas casas ocupados em providenciar os preparativos para a ceia de Pessah, a Páscoa dos judeus. Linos e Catarina encheram seus recipientes na fonte. Quando regressavam à casa, notaram que dois homens os seguiam. Linos parou. Catarina se sentiu um pouco assustada com a aproximação dos desconhecidos. Linos puxou-a para perto de si com o braço e fez um gesto para que não se preocupasse. Catarina entendia todos os gestos de Linos, pois era sua forma de se comunicar, já que era mudo. Quando os dois desconhecidos estavam a poucos passos, um deles se dirigiu a Linos e falou:

– Diga a seu amo, que nosso mestre deseja celebrar hoje a noite a ceia de Pessah em sua casa.

Linos assentiu com a cabeça. Catarina teve a impressão de que aqueles homens não eram desconhecidos para seu amigo, que lhe explicou que eram dois discípulos de Jesus. Neste instante a menina se sentiu mais tranquila.

Ao chegaram em casa, Linos indicou por gestos que Catarina levasse algumas almofadas e as colocasse ao redor da baixa mesa que se encontrava numa sala no andar de cima da casa; lá deveria acontecer a ceia.

De volta a cozinha, Catarina encontrou Linos ocupado em espremer uvas, para obter seu suco, ou o vinho não fermentado, como costumavam chamar. Sempre utilizando a linguagem dos gestos, pediu que Catarina abrisse uma caixa de madeira que se encontrava sobre a mesa. Dentro, a menina encontrou um raro objeto: uma grande pedra preciosa lapidada na forma de cálice, que pertencia ao dono da casa, o senhor José de Arimatéia. Fora ele quem orientara Linos a colocar o cálice à disposição de Jesus naquela noite. Seguindo as orientações do servente, Catarina poliu cuidadosamente o cálice de pedra com um tecido de linho; depois subiu ao andar de cima e colocou-o no centro sobre a mesa baixa.

Linos também havia preparado alguns pães sem fermento e um molho feito com ervas aromáticas e amargas. Todos estes alimentos faziam parte da tradicional ceia de Pessah, segundo o rito judaico.

Linos, ajudado por Catarina, preparou ainda uma grande bacia e uma ânfora cheia de água fresca, pois era costume oferecer água para os hospedes lavarem as mãos antes de comerem.

Anoiteceu, tudo estava preparado. Linos e Catarina se acomodaram num diminuto quartinho que ficava ao lado da sala no andar de cima. Eles permaneceriam ali, vigilantes, para servir os hospedes ou para providenciar qualquer coisa de que necessitassem.

Quando bateram à porta, foi o proprietário, José de Arimatéia, quem abriu, recebeu os convidados e conduziu Jesus e seus discípulos à sala no andar superior. O anfitrião reiterou as boas-vindas e disse que se retiraria, mas informou que se os hóspedes necessitassem algo, dois de seus serventes, encontravam-se no pequeno cômodo ao lado, prontos para atendê-los.

Jesus agradeceu a hospitalidade e, junto com seus discípulos, se acomodou nas almofadas ao redor da mesa baixa.

Catarina e Linos podiam observar tudo pela abertura da porta. Ouviram os cânticos e salmos que entoaram para iniciar a refeição. Jesus estava sentado no lugar de destaque, ladeado por seus amigos. Tomou um dos pães sem fermento, pronunciou uma benção de agradecimento a Deus e o partiu, entregando um pedaço a cada um dos discípulos, disse:

– Tomai, este é o meu corpo.

Depois tomou a jarra com o vinho não fermentado, preparado pouco tempo antes por Linos, e encheu o cálice de pedra. Tornou a pronunciar a benção e entregou o cálice aos discípulos, dizendo:

– Tomai, este é o meu sangue.

Os discípulos tomavam o cálice, bebiam um gole e o passam de mão em mão, até que todos haviam bebido.

Catarina observava tudo em silêncio; aos poucos foi notando que uma atmosfera serena e solene havia preenchido a sala. Notou ainda que os rostos dos discípulos se tornavam luminosos, tal era a alegria que irradiavam. Percebeu que seu amigo Linos também parecia preenchido daquela alegria silenciosa. A menina sentiu um profundo contentamento ao lembrar que, poucas horas antes, havia polido aquele magnífico objeto de pedra, do qual Jesus e seus discípulos havim bebido.

Jesus se ergueu de seu lugar e se dirigiu até próximo da abertura do cômodo onde se encontravam os dois serventes. Inclinou-se para pegar a bacia. Linos num instante se ergueu para realizar aquela tarefa, mas Jesus fez-lhe um sinal de que não era necessário, pois Ele mesmo queria fazer aquilo. Jesus levou a bacia e a ânfora com água até a mesa baixa. Verteu água na bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, que, como não esperavam aquele gesto, ficaram atônitos. Catarina também não compreendia o que estava ocorrendo… pensava consigo mesma:

– Por que Jesus faz isto? Ele é o mestre! Linos e eu somos os serventes, nós é que deveríamos fazer esta tarefa…

Por causa de seu temperamento impulsivo, Catarina estava a ponto de se levantar para ir ajudar Jesus na tarefa de lavar os pés dos discípulos. Linos, percebendo a impaciência da menina, estendeu o braço e tomou carinhosamente a sua mão, fez um gesto para que se acalmasse e que tudo estava bem, da forma como estava acontecendo…

Ao terminar, Jesus retornou ao seu lugar e disse:

– Vós me chamais de mestre e isto está correto. Mas o mestre está para servir e não para ser servido. O que hoje fiz convosco, fazei-o uns aos outros e ensinai-o a todos que escutarem minhas palavras.

Linos, que ainda segurava a mão de Catarina, apertou-a com mais força neste instante. Ambos estavam comovidos com aquelas palavras.

O grupo dos discípulos cantou ainda alguns salmos e cânticos de agradecimento. A ceia chegava ao final. Jesus disse que deviam se retirar e passar o resto da noite no Jardim das Oliveiras. Um dos discípulos, chamado Judas, já havia se retirando mais cedo.

José de Arimatéia conduziu os hóspedes até a porta da casa. Linos e Catarina começaram a recolhes os utensílios da mesa e os alimentos que haviam sobrado. O dono da casa subiu mais uma vez à sala do andar de cima e recolheu o cálice de pedra, envolvendo-o numa toalha de linho e guardando-o de volta na caixa de madeira. Quando haviam limpado e arrumado tudo, José se aproximou de Catarina e disse:

– Criança, Linos me informou que tu lhe ajudaste a preparar todos os detalhes desta ceia. Jesus e seus amigos ficaram muito contentes de poder celebrar a ceia de Pessah aqui em minha casa e eu agradeço a ambos pela dedicação com que cuidaram de tudo!

-Senhor José, disse Catarina, foi muito bonito o que aconteceu esta noite na sala no andar de cima.

Linos, que se encontrava ao lado de Catarina, colocou a mão sobre o peito, num sinal de que também estava emocionado com o que tinha assistido.

José foi até um nicho na parede e trouxe uma caixinha de prata. Abriu e retirou de lá um cacho repleto de uvas-passas, entregou-o a Catarina e disse:

– Em Arimatéia, região onde nasci, cresce um tipo de uvas claras e doces. Lá costuma-se secar as uvas no próprio cacho. Comerciantes de lugares distantes, pagam bom preço por estas uvas, pois seu sabor e doçura são inigualáveis, parece que não existem uvas assim em outro lugar. Quero te presentear com este cacho, para que saibas que estou muito agradecido pela tua ajuda.

Catarina recebeu o cacho e admirava as delicadas uvas-passas de cor âmbar-dourado. Sentia seu delicado e doce perfume. Quanto mais olhara para elas, tanto mais tinha a impressão de que as uvinhas douradas brilhavam cada mais com maior intensidade. O brilho foi ficando tão intenso que Catarina teve que fechar os olhos…

Quando os abriu de novo, notou que a luz do sol entrava pela janela aberta do quarto. Vera acabara de abri-la:

– Bom dia prima! A luz do sol lhe acordou? Desculpe-me por abrir a janela, não queria que se assustasse!

Catarina olhou para a prima com um sorriso nos lábios e disse:

– Você não me assustou! Eu estava tendo um sonho lindo!

Abriu as mãos e mostrou para a prima:

-Olha, eu ganhei do senhor José de Arimetéia este lindo cacho de uvas-passas douradas! Sonhei que estava na casa dele na noite em que Jesus e os discípulos fizeram a Última Ceia, como tia Filomena nos contou ontem!

As meninas foram mostrar o cacho de uvas-passas a tia Filomena. Durante a refeição da manhã, Catarina contou seu sonho e sua alegria era transbordante. No final a anciã disse:

– Catarina, minha pequenina, creio que agora você começou a entender o que eu quis dizer, quando lhe falei sobre aquela profunda alegria vivida pelos discípulos. Mesmo que tenhamos que passar por situações difíceis e que nos deixam tristes, sempre é possível encontrar ou relembrar momentos felizes!

Tia Filomena guardou o cacho de uvas-passas douradas junto com as outras uvas-passas que Vera e Rômulo já lhe tinham entregado. Faltavam dois dias para a Páscoa. Quando chegasse a hora de fazer a massa para a trança de pão-doce que sempre preparava para a festa, iria recheá-la com essas frutinhas tão especiais que seus sobrinhos-netos haviam recebido de presente em seus sonhos!

Renato Gomes

Conto: Tia Filomena 2

O sonho de Vera – Parte 2 – Quarta-feira Santa

Naquela noite Tia Filomena prosseguiu contando para as crianças o que aconteceu com Jesus naqueles dias da Semana Santa:

Jesus entrou no templo e viu que o pátio interno havia se transformado num grande bazar, com muitas mesas e tendas de comerciantes vendendo e oferecendo aos gritos suas mercadorias. As pessoas falavam alto e havia muita algazarra. De repente Jesus começou a derrubar as mesas dos cambistas, que trocavam as moedas estrangeiras, por moedas judaicas, empurrou as bancas dos que vendiam animais e todos ficaram muito assustados.

Ele clamava:

– O Templo, a casa de Deus, deveria ser um lugar de respeito e oração para todos os povos. Vocês a transformaram num grande e barulhento mercado, onde só se importam em comprar e vender!

Os sacerdotes do templo, que haviam autorizado a presença dos vendedores, pois receberiam parte dos lucros de suas vendas, olhavam tudo a distância… O povo estava admirado com a coragem e a força de Jesus e sabiam que o que Ele dizia era correto. No final daquele dia Jesus e os discípulos deixaram a cidade e foram passar a noite na casa das irmãs Marta e Maria, na aldeia de Betânia, que ficava próximo a Jerusalém.

No dia seguinte, retornaram à Cidade Santa. Aqueles sacerdotes e doutores da lei que não gostavam de Jesus haviam tramado um plano. Pediram a seus auxiliares que fizessem muitas perguntas a Ele, perguntas difíceis de responder, perguntas que o deixassem confuso ou que talvez Ele não soubesse a resposta, pois deste modo o povo iria perceber que Jesus não era o Filho de Deus, mas apenas o filho de um humilde carpinteiro da Galileia.

Quanto mais perguntas lhe faziam, mais admirados ficavam com a sabedoria das respostas que Ele dava. No final da tarde a fama de Jesus e a admiração, que o povo tinham por Ele, haviam crescido!

Neste ponto, tia Filomena interrompeu a narrativa.

Vera lhe pediu:

– Conta mais um pouquinho, tia Filomena! O que aconteceu no dia seguinte?

– Meus queridos, agora já é tarde. Amanhã poderemos ouvir um pouco mais. Desejo a todos vocês uma boa noite!

As crianças se despediram da tia-avó e foram para seus quartos.

Vera sabia que tia Filomena terminara de contar as histórias mais cedo, para que Catarina, a mais nova, não fosse dormir tarde. Se fosse apenas por causa dela e de Rômulo, que eram os mais velhos, a anciã poderia continuar contando aquelas histórias por horas…

Vera e Catarina dormiam no mesmo quarto. As meninas se deitaram e apagaram a luz do abajur. Em poucos instantes, Catarina havia adormecido. Vera permaneceu longo tempo de olhos abertos no escuro, pensando no que havia ouvido:

– Não entendo – refletia a menina em silêncio – por que as pessoas não reconheciam que Jesus era o Filho de Deus? Ela já havia demonstrado isto tantas vezes…

Naquela tarde, na pequena aldeia de Betânia, havia muita atividade na casa de Marta e Maria. Jesus e os doze discípulos haviam regressado mais cedo de Jerusalém. Marta, a mais velhas das irmãs, era quem administrava a casa e distribuía as tarefas entre as serventes pois estavam preparando o jantar para todo o grupo. Maria sua irmã mais jovem, havia ido ao poço buscar água.

Marta olhou para Vera e lhe disse:

– Veja se os pães já estão assados.

Vera foi até o canto da cozinha onde ficava o enorme forno a lenha e retirou a tampa de ferro. Olhou e viu treze pãezinhos de coloração dourada. Nisto saiu do forno um hálito quente que trouxe o gostoso cheiro de pão assado. Vera gritou para Marta:

– Sim estão prontos, ficaram lindos! Vou retirá-los.

A menina pegou uma comprida pá de madeira, foi retirando com ela os pães um a um e colocando-os numa grande cesta.

Marta cozinhava o caldo numa panela de barro e parecia inquieta, preocupada se tudo estaria pronto à hora certa para servir o jantar, olhou em volta e perguntou com voz nervosa:

– Onde está minha irmã Maria? Preciso que ela nos ajude!

Vera, que trazia a grande cesta com os pães, lhe respondeu:

– Eu vi quando ela saiu para buscar água no poço.

– Então vá lá fora – disse Marte – e diga a Maria que se apresse, preciso dela aqui.

Vera correu até o poço. Não encontrou Maria. Quando voltava à casa, viu Maria se dirigir para a sala onde estavam reunidos os hóspedes, carregando uma bacia e uma ânfora. Vera a seguiu. Os discípulos e Jesus estavam sentados na sala sobre almofadas, como era o costume do lugar. Maria entrou na sala, encaminhou-se em silêncio até o lugar onde Jesus estava sentado, fez sinal para que Vera se aproximasse e lhe entregou a ânfora. Colocou a bacia no chão e delicadamente posicionou os pés de Jesus dentro dela, pediu por sinais que Vera vertesse água. Maria lavou com suas mãos os pés do mestre e os secou com uma toalha, que trazia atada a sua cintura. Retirou de uma sacola de pano um precioso frasco de alabastro, quebrou a parte mais fina do gargalo e um olor agradável perfumou todo o ambiente. Maria começou a gotejar o perfume suavemente sobre a cabeça de Jesus. Vera observava extasiada o que acontecia, também os discípulos assistiam caldados a cena. A medida em que as gotas do perfume caiam, o olor se intensificava e Vera começou a sentir algo no ambiente que lhe deixava triste… De repente Judas, um dos discípulos, quebrou o profundo silêncio:

– O que você está fazendo? – indagou dirigindo-se a Maria – Por que tamanho desperdício? Este óleo perfumado é muito precioso, poderia ter sido vendido por muitas moedas de prata e poderíamos com isto comprar alimentos para os pobres…

Jesus fez um sinal para que ele não prosseguisse importunado Maria e falou:

– Não a incomodem. Ela fez algo importante: está perfumando meu corpo, pois pressentiu que em pouco tempo morrerei!

Todos ficaram chocados ao ouvir aquelas palavras! Também Vera, que permanecia parada, segurando a ânfora com água…

Marta havia chegado um pouco antes da cozinha e assistira à cena. Aproximou-se da irmã e sussurrou-lhe algo ao ouvido. Maria terminou o que estava fazendo e acompanhou a irmã. Ao passarem por Vera, Marta lhe disse:

-Vem ajudar-nos a trazer a comida!

Primeiro levaram as cumbucas de madeira para o caldo e a cesta com os pães. Marta levou ainda uma grande jarra com vinho e Vera trouxe a bandeja com os copos. Já haviam levado quase todas as coisas, quando Marta perguntou a Vera:

– Você já preparou os potes com as frutas secas e as amêndoas?

Por causa da interrupção que ocorrera quando Maria havia gotejado o óleo perfumado na cabeça de Jesus, Vera havia se esquecido de realizar aquela tarefa. Rapidamente separou alguns potes de madeira e foi colocando neles figos, tâmaras e damascos, colocou num deles uma porção de amêndoas, enquanto Marta preparava um pote maior com azeitonas. Os potes foram colocados sobre a bandeja.

– Faltas as passas de uva! – exclamou Marta.

– Onde estão? – perguntou Vera

– Devem estar naquela cesta, sobre a prateleira, respondeu Marta apontando para o local.

Vera retirou a cesta da prateleira e notou que estava vazia.

– Não estão aqui! – exclamou a menina

Neste instante Maria se aproximou de Vera. Trazia em suas mãos um grande punhado de passas de uva e pediu que a menina juntasse as próprias mãos em concha para receber as passas. Vera estendeu os braços e Maria começou a verter as frutinhas sobre as mãos da menina. As passas de uva rapidamente encheram o oco das mãos de Vera, mas eram tantas que começaram a transbordar… Vera observava admirada como das mãos de Maria um fluxo sem fim de pequenas passas chovia sobre suas mãos e braços e ela não sabia como conter toda aquela quantidade…

Vera acordou um pouco agitada. O dia estava clareando. Catarina estava de pé ao seu lado.

– Tudo bem, Vera? Você estava dormindo tão agitada, mexendo as mãos…

Vera tranquilizou a prima e disse que havia tido um sonho que a deixara agitada, mas agora estava tudo bem. Levantou-se e começou a arrumar a cama. Foi neste instante que percebeu que debaixo de seu lençol havia inúmeras passas de uva espalhadas sobre o colchão…

Catarina exultante falou:

-Veja Vera! Você achou passas de uva como o Rômulo! Deve ter sido por causo do sonho! Conta!

Vera pediu a prima que a ajudasse a recolher as frutinhas. Juntaram dois grandes punhados em suas mãos e as levaram para Tia Filomena, que na cozinha preparava o café-da-manhã das crianças. Rômulo já estava lá, ajudando a colocar a mesa. Catarina foi quem falou primeiro:

– Vejam! Vejam! Hoje à noite as passas de uva apareceram para Vera! Foi por causa do sonho que ela teve…

Enquanto tomam o desjejum, Vera contou aos demais, em todos os detalhes, o sonho que tivera. No final tia Filomena acrescentou:

– Foi exatamente isto que aconteceu na quarta-feira da Semana Santa! – olhando para Vera, disse ainda: Minha querida, você havia me pedido ontem à noite para contar um pouco mais da história, mas foi você quem nos contou como as coisas aconteceram!

Catarina tomou a palavra:

– Tia Filomena, por que somente o Rômulo e a Vera sonharam com Jesus? Eu também queria ter um sonho assim…

– Catarina, quase nunca podemos decidir com o que vamos sonhar… Sonhos são como presentes. Podemos desejar que eles aconteçam, mas temos que esperar com paciência. Hoje, depois do jantar, vou lhes contar o que Jesus fez com seus discípulos na noite da quinta-feira.

Renato Gomes

Conto: Tia Filomena 1

O sonho de Rômulo – Parte 1 – Domingo de Ramos

Filomena morava num bairro afastado, na periferia de uma grande cidade. Sua casa era a última da ruazinha sem saída e sem asfalto, não possuía muros ou cercas. Seu quintal se estendia pelo campo aberto, onde o mato era crescido, cheio de arbustos e pequenas árvores do cerrado. Tia Filomena, como era conhecida, morava sozinha, era bem idosa, ninguém sabia sua idade, mas possuía ainda muito vigor e ânimo. Sua casinha tinha três quartos; um deles, Filomena usava como seu dormitório, nos outros dois mantinha sempre as camas arrumadas, pois de vez em quando recebia a visita de seus sobrinhos-netos, que costumavam passar as férias naquele lugar. Vera, Rômulo e Catarina, desde bem pequeninos, durante os verões, ficavam aos cuidados da velha senhora, enquanto seus pais aproveitavam para descansar ou realizar alguma tarefa que nunca conseguiam fazer por conta das suas ocupações de trabalho.

Rômulo era o mais velho dos três, Catarina sua irmã pequena, Vera, que era apenas alguns meses mais jovem que Rômulo, era prima de ambos. As mães das crianças eram irmãs e sobrinhas da gentil anciã. Filomena não tinha filhos; amava seus sobrinhos e os chamava de “seus queridos netinhos”.

A parte do dia que as crianças mais apreciavam, quando estavam de visita à tia-avó, era a hora da história. Depois da ceia, se reuniam próximo ao fogão de lenha para ouvir Filomena contar um conto ou alguma de suas inúmeras histórias antes de irem dormir.

Houve uma pandemia naquele país e as crianças não puderam ir à escola por muitos meses. Os pais das três crianças decidiram deixá-las aos cuidados da tia Filomena, pois sabiam que lá elas estariam protegidas e que receberiam, além de amor e carinho, os bons ensinamentos da anciã.

Era o mês de abril e se aproximava a Páscoa. As crianças lembravam sempre com alegria da gostosa trança de pão-doce, recheada de uva-passas, que tia Filomena costumava assar nesta época do ano para celebrar a festa da ressurreição de Cristo.

Numa destas noites, depois de ajudarem a tia-avó a limpar e arrumar a louça e os talheres que utilizaram no jantar, as crianças se sentaram em seus banquinhos, próximos à anciã. Catarina, que à época estava com 8 anos, lhe pediu:

– Tia Filomena, conta alguma história do tempo de Jesus!

Vera, que tinha 12 anos, acrescentou:

– Sim, isto mesmo! Daqui a pouco será a Semana Santa e é bom relembrar estas histórias.

Tia Filomena, olhou para as sobrinhas que estampavam um largo sorriso no rosto, dirigiu ainda o olhar para Rômulo que permanecia sério, sentado um pouco mais afastado do grupo:

– Rômulo, você também quer que eu conte uma história?

A anciã havia notado que Rômulo, que já havia completado 13 anos, não demonstrava o mesmo entusiasmo de antes para ouvir histórias…

– Sim, pode contar… – respondeu o menino meio chocho e acrescentou: Catarina e Vera vão ficar contentes em ouvir…

Tia Filomena insistiu:

– … E você? Já não se alegra mais como antes com as histórias?

Rômulo ficou um pouco encabulado, pois gostava muito da tia Filomena e não queria magoá-la, mas era fato que, na idade em que estava, notava que os contos e histórias da tia-avó lhe pareciam demasiado infantis… O menino se levantou e aproximou-se para falar em voz baixa perto do ouvido da anciã:

– Tia Filomena, sempre gostei muito das suas histórias. Não quero lhe deixar chateada, mas, agora, a senhora mesmo sabe que muitas coisas nos contos são inventadas… Já não consigo mais me alegrar ao escutá-los, como acontece com Catarina…

Tia Filomena ficou pensativa um instante, até que depois de um logo silencio disse:

– Rômulo eu entendo você, não se preocupe, isto não me deixa chateada. Você está crescendo, e quando se cresce se deixa aos poucos de gostar das coisas da infância…. Mas quero te contar um segredo: Quando as pessoas chegam na minha idade, começam de novo a gostar das coisas da infância, pois as entendemos melhor agora, com o passar dos anos… Se não quiser escutar a história não há problema, pode ir descansar no seu quarto, enquanto eu conto algo para as meninas.

Rômulo ficou indeciso um momento, retornou ao seu lugar, puxou o banquinho mais próximo de tia Filomena e das meninas e disse:

– Tudo bem, eu vou ficar. Quero escutar também.

Tia Filomena deu um sorriso e começou:

Naqueles tempos, Jesus caminhava com seus amigos e discípulos, de norte a sul do país. Quando se aproximava a festa da Páscoa dos Judeus, Pessah, como era chamada, muitas pessoas se dirigiam a Jerusalém, para poder celebrar a festa na Cidade Santa e visitar o Templo, o magnífico edifício religioso construído pelo rei Salomão muitos séculos antes. Naquele ano, aconteceu um pouco diferente que nas vezes anteriores. Todo o grupo de discípulos se dirigia para a cidade; ainda estavam distantes alguns quilômetros, quando Jesus enviou dois de seus amigos, Bartolomeu e Tadeu, até a aldeia logo adiante deles. Os dois discípulos ao chegaram lá viram um jovenzinho sentado cuidando de um jumento que estava amarrado numa palmeira. Desamarraram o jumentinho e o levaram até Jesus que montou nele…

Neste instante Rômulo não se conteve e perguntou:

– Tia Filomena, o que o jovem lhes disse? Como assim? deixou levar o jumento sem nenhuma explicação? O jumento era dele ou do pai dele? – Rômulo parecia indignado!

Antes que a anciã pudesse prosseguir, foi Catarina que falou:

– Rômulo, não interrompa a tia Filomena! Os discípulos iam levá-lo para Jesus, não vejo problema algum…

Rômulo contestou aborrecido:

– Não importa que era Jesus, não dá para sair emprestando as coisas assim para estranhos! Quem disse que aquele jovem conhecia Jesus?

– Todos conheciam Jesus! – respondeu Catarina enfurecida com o irmão – Ele era bom e curava as pessoas, com certeza depois iriam devolver o jumentinho…

– Calma Catarina, calma Rômulo! – interveio Vera – Tia Filomena está contanto, deixem ela explicar melhor o que aconteceu…

Vera, em geral, era quem tentava intermediar as discussões entre os primos. Como tinha quase a mesma idade de Rômulo, entendia suas colocações e dúvidas, mas também tinha muita afeição por Catarina, como se fosse sua irmãzinha mais nova, que sabia lidar bem com o temperamento explosivo da prima…

Por fim Tia Filomena retomou a narrativa:

Na verdade, não sei e creio que ninguém sabe, o que Bartolomeu e Tadeu disseram ao jovenzinho… o fato é que conseguiram o jumento e Jesus se aproximou de Jerusalém montado nele. As pessoas, ao verem isto, cortaram ramos e vieram ao seu encontro, eufóricas e gritando de alegria. Diziam que Jesus era o Filho de Davi, o rei de Israel! Foi um grande alvoroço…

Catarina olhou triunfante para o irmão e disse:

-Está vendo? Todos conheciam Jesus e sabiam que Ele era bom!

Vera, tocou no ombro da menina e fez um sinal com a mão para que não reiniciasse a discussão! Tia Filomena prosseguiu:

-… Sim, de fato o povo reconhecia em Jesus o Messias, o Filho de Deus, mas na cidade havia entre os líderes e os sacerdotes, alguns que não ficaram contentes com esta manifestação de alegria do povo. Seu coração estava endurecido pela inveja e não podiam aceitar que o povo prestasse mais homenagens a Jesus, um simples carpinteiro da cidadezinha de Nazaré do interior do país, do que a eles, que eram os mais eruditos e estudiosos nos assuntos da religião e da lei de Moisés. Eles consideraram que era um grande equívoco chamar Jesus de rei e, por isto, começaram a tramar um plano para mostrar ao povo que aquele homem que andava com rudes pescadores e pessoas simples, era um farsante…

-Amanhã continuamos! – disse tia Filomena – Meus queridos netinhos, agora é hora de ir para cama!

Deu um beijo de despedida em Catarina e Vera, que logo foram para o quarto onde dormiam juntas. Rômulo ficou ainda uns instantes e quando viu que a irmã e a prima já haviam fechado a porta do quarto, disse à tia-avó:

– Tia Filomena, a senhora percebe agora, por que já não consigo me alegrar com estas histórias? Tantas perguntas que não se sabe responder, tantas coisas que nem a senhora conhece… Para mim é importante saber melhor o que aconteceu naqueles tempos, assim eu poderia me interessar mais…

Tia Filomena olhou carinhosamente nos olhos do sobrinho-neto e disse:

– Rômulo, querido, você está coberto de razão: há tantos detalhes na vida de Jesus, que nem mesmo as pessoas mais estudiosas conseguiram descobrir exatamente como as coisas aconteceram, mas isto acontece também com muitas coisas na vida. Você sabe tudo o que acontece na vida de seus pais? Um dia você vai ser adulto e talvez queira contar a seus filhos histórias da sua infância e vai perceber que não conhece todos os detalhes daqueles adultos com quem você conviveu: seus pais, seus avó, de mim… Ainda assim, todos nós guardamos muitas memorias que são vivas e reais, mesmo que incompletas…

– Mas Jesus viveu há tantos anos, – replicou o menino – não existe mais ninguém que possa ter memória daqueles tempos, todos que viveram com Ele naquela época já morreram…

– Para isto existem as histórias que contamos às crianças e jovens como você, para que a memória seja transmitida e nunca desapareça! Agora está na hora de você também ir dormir. Tenha bons sonhos

Rômulo deu um beijo de boa-noite no rosto da anciã e foi para o seu quarto.

O menino permanecia inquieto com o que havia escutado e com suas perguntas sem resposta…. Vestiu o pijama, deitou-se e apagou a luz do abajur. Demorou a adormecer. No escuro do quarto, cavilava o tempo todo sobre como teria sido a conversa dos discípulos com aquele jovem que cuidava do jumento. Em algum momento Rômulo adormeceu e sonhou:

Estava sentado debaixo de uma palmeira, era cedo, o sol havia acabado de nascer no horizonte. Soprava uma brisa suave. Ao seu lado um jumento pastava alguns poucos tufos de grama que havia naquele chão pedregoso e seco. Rômulo percebeu que dois homens se aproximavam, um mais velho, de barba escura e longa, o outro mais jovem, que também possuía barba, ainda que mais rala e curta. Ao chegarem perto, fizeram uma saudação e Rômulo se levantou.

– Você está cuidando deste jumento? – perguntou o mais velho dos dois.

Rômulo sem titubear respondeu:

-Sim, ele pertence a meu pai, que me pediu para cuidar dele, enquanto ia esta manhã a Jerusalém.

O mais jovem, que se chamava Tadeu, lhe disse:

– Nosso mestre nos enviou aqui para pedir o jumento emprestado, depois nós o traremos de volta…

Rômulo se sentiu indeciso:

– Meu pai não está, não sei se posso emprestar… por que precisam dele?

Tadeu continuou:

-Nosso mestre, Jesus, está se dirigindo a Cidade Santa, pois queremos celebrar a festa de Pessah…

Bartolomeu, o mais velho, prosseguiu explicando:

– Há uma antiga profecia que diz que o Filho de Deus um dia entrará em Jerusalém montado num jumento. Cremos que este dia é hoje!

Rômulo sentiu algo estranho naquele momento ao escutar estas palavras. Era um misto de alegria e dúvida:

– Eu gostaria muito de poder colaborar com vocês, mas creio que meu pai ficará aborrecido se, ao retornar, não encontrar o jumento…

Tadeu olhou nos olhos de Rômulo e disse:

– Entendemos o que sente, pois afinal você está responsável pelo animal. Por que você não nos acompanha até a cidade? São apenas uns poucos quilômetros, assim pode pegar seu animal de volta, quando o mestre não necessitar mais dele.

Rômulo desamarrou a corda e a entregou a Bartolomeu.

Tadeu colocou sua mão sobre o ombro do menino e disse:

– Muito obrigado, o mestre ficará contente.

Rômulo acompanhou os dois discípulos até o grupo onde estava Jesus.

Simão Pedro, um dos discípulos, retirou seu manto e colocou-o sobre o lombo do animal. Alguns discípulos ajudaram Jesus a montar no jumentinho e o grupo prosseguiu a jornada até a cidade.

Rômulo se mantinha, por timidez, um pouco afastado dos demais, seguia mais próximo de Tadeu, em quem havia conquistado certa confiança.

Ao se aproximar de Jerusalém, Rômulo começou a ouvir os gritos das pessoas que corriam ao encontro de Jesus agitando ramos nas mãos. Alguns outros estendiam seus mantos sobre o caminho. O burrinho trotava tranquilo sobre o longo tapete assim formado. A emoção da gente era tamanha, que Rômulo não se conteve e começou a gritar com eles!

– Hosana, hosana, bendito o Filho de Davi, Rei de Israel!

Ao chegarem ao grande portal na muralha da cidade, Jesus desmontou, tomou a corda do jumento e entregou-a ao menino:

– Rômulo, eu te agradeço por teres me cedido teu animal. Aqui, toma-o de volta.

Jesus e os discípulos entraram na cidade. Tadeu ainda permaneceu na entrada ao lado do menino.

– Como ele sabia o meu nome? – perguntou Rômulo

– O mestre sabe muitas coisas e nos surpreende sempre, respondeu Tadeu.

Nisto o jovem discípulo retirou das pregas de seu manto um saquinho e o estendeu a Rômulo:

– Não, de modo algum! – recusou Rômulo a oferta – Eu não quero receber nenhum pagamento! Foi uma alegria poder ajudar o mestre Jesus.

Tadeu insistiu:

– Toma pega! Aqui não tens moedas! não se trata de um pagamento. Quero dar-te isto como um presente, creio que vai te alegrar no caminho de volta à tua aldeia. Aceita-o por favor!

Rômulo recebeu o saquinho. Dentro estava cheio de passas de uva.

Na manhã seguinte, Rômulo acordou alegre, fazia tempo que não se sentia assim. Levantou-se, trocou o pijama pela roupa do dia e começou a arrumar a cama. Na casa da tia Filomena as crianças sempre arrumavam a cama assim que se levantavam! Dobrou o cobertor e ergueu o travesseiro para sacudi-lo, quando percebeu que havia ali um punhado de passas de uva!

Na mesa do café da manhã, Rômulo contou para tia Filomena e para as meninas o que havia sonhado e mostrou o punhado de passas que havia encontrado debaixo do seu travesseiro;

– Tia Filomena, foi a senhora que as colocou ali? – perguntou Rômulo

– Não fui eu, meu querido netinho, não entrei no seu quarto esta noite…

Catarina bradou:

– Você não entende, Rômulo! Estas são as passas que você ganhou do discípulo Tiago! – estendendo a mão para pegar algumas acrescentou: Me dá umas? Quero provar!

Rômulo rapidamente recuou com a mão, impedindo a irmã de pegar as passas.

– Não toque!

– Eu só quero algumas! Devem ser bem docinhas!

Vera intercedeu:

– Tenho uma ideia. Rômulo, por que você não as entrega para a tia Filomena? Ela pode misturá-las na massa da trança de Páscoa.

A Rômulo lhe pareceu boa a ideia e colocou nas mãos em concha da anciã o punhado de passas de uva.

Quando o menino estava sozinho com a tia-avó, lhe perguntou:

– Como foi possível isto acontecer? Foi apenas um sonho! Mas tudo parecia tão real… Eu nunca esquecerei o olhar bondoso de Jesus quando me agradeceu!

Tia Filomena lhe disse:

– Meu querido, porque você sonhou não significa que não tenha sido real. Muitas vezes sonhos são uma forma diferente de realidade…

O menino ainda não estava satisfeito:

– Tudo isto aconteceu há tanto… como eu podia estar lá, naquele momento?

– Lembra-se do que lhe disse ontem? – comentou ainda tia Filomena: a memória mantém vivo e presente aquilo que é importante para nós!

Renato Gomes

Conto: A Nuvem

Em um dia quente de verão, uma pequena nuvenzinha subiu do mar e, leve e alegre como uma criança a brincar, passou pelo céu azul e sobre a extensa Terra, a qual, depois de prolongada seca, jazia queimada e triste.
Estando a nuvenzinha assim a flutuar, avistou lá embaixo os pobres seres humanos trabalhando com o suor do seu rosto e se esforçando, cheios de preocupações, ao passo que ela de preocupações nada sabia e era levada simplesmente por uma leve brisa da manhã, sem ter de dar nada de si.
“Ah”, disse ela, “pudesse eu fazer alguma coisa por essa boa e pobre gente lá embaixo, aliviar seu esforço, dissipar suas preocupações, proporcionar alimento aos que têm fome, refrescar os que têm sede!”
E o dia continuou a passar, e a nuvem foi ficando cada vez maior e, conforme crescia, seu desejo de se dedicar aos seres humanos ia ficando cada vez mais forte.
A Terra, porém, estava cada vez mais quente, o sol abrasador ardia e pesava penosamente sobre as pessoas em seu trabalho, e elas quase desfaleciam, mas tinham de trabalhar. E lançavam um olhar súplice à nuvem lá no alto, como se quisessem dizer: “Ah, se pudesses nos ajudar!”
“Sim, eu quero ajudar-vos”, disse a nuvem; e logo em seguida começou a se inclinar para baixo suavemente em direção a Terra. Nisto, porém, lembrou-se do que ouvira no regaço do mar, quando ainda era criança: que as nuvens, quando mergulham demais em direção a Terra, encontram a morte. Por um momento ela vacilou e se deixou levar para cá e para lá pelos pensamentos, mas, por fim, ficou quieta e disse, ousada e alegre: “Ó seres humanos, haja o que houver, eu vos ajudarei”.
Esse pensamento a tornou subitamente enorme, forte e poderosa. Ela mesma nunca imaginara que fosse capaz de atingir esse tamanho. Seu esplendor era tanto que os seres humanos e animais se assustaram com ela, e as árvores e as gramíneas se inclinaram diante dela, mas bem pressentiam que ela seria sua benfeitora.
“Sim, eu vos ajudo!” Exclamou a nuvem mais uma vez.
“Tomai-me! Morrerei por vós!” Era uma vontade imensa que a sacudia, uma luz superior que a abrasava, um trovão que ressoava através dela, um amor infinito que a atravessava.
Ela mergulhou, e desceu sobre a Terra, e se desmanchou em benfazeja chuva.
Essa chuva foi a sua ação, essa chuva foi sua morte, nela ela seria transubstanciada. Sobre toda a Terra, até onde a chuva se derramara, elevou-se um arco-íris formado dos mais puros raios do céu; era a última saudação de um grande amor que se doou em sacrifício. Também o arco-íris em pouco tempo se desvaneceu, mas a benção da nuvem ficou entre os seres humanos agora salvos e felizes.

Robert Reinick

Conto: O pão e os peixes

Era uma vez um menino chamado Pedro. Pedro morava em uma aldeia no campo, na pequena casa da sua família. Era uma casa muito simples. Seu pai e sua mãe trabalhavam nos campos da aldeia. Pedro cresceu na natureza e desde bem pequeno ajudava seu pai e sua mãe no trabalho do campo e nos serviços da casa.

Assim ele aprendeu a preparar a terra, semear os grãos, cuidar das plantas e colher o trigo no outono. Após a colheita, vinha a grande tarefa de debulhar o trigo e levar os grãos para o dono do moinho moê-los e transformá-los em farinha. Uma parte da farinha eles vendiam e uma pequena parte eles levavam para casa. Dessa farinha era feito o alimento que ajudava a família a passar pelo inverno, que era muito rígido naquela região.

Da farinha sua mãe fazia pães deliciosos. E o menino quis aprender também a arte de fazer pão.

-“Mãe, me ensina a fazer pão?”, disse Pedro.

-“Claro meu filho, fico feliz em te ensinar!”, respondeu sua mãe.

Então, em uma vasilha, misturaram um pouco de farinha com água e um pouco de fermento natural. Pedro quis logo saber como se fazia o fermento. Sua mãe lhe contou que a cada massa de pão que preparava, ela guardava um pouco da massa ainda crua em um potinho e o colocava no lugar mais frio da casa, até usar essa massa fermentada como o fermento do próximo pão. Quando a mistura que eles fizeram estava pronta, colocaram em um lugar quente, perto do fogão a lenha para que descansasse e crescesse. Pedro sempre voltava para ver se acontecia alguma coisa com a massa. Mas nada mudava. Depois de um tempo ele perdeu o interesse e foi brincar. Somente no final da tarde se lembrou: A mistura para o pão! Quando ele olhou, percebeu que ela havia crescido e estava cheia de bolhas de ar. Então misturaram essa massa com mais farinha, água e sal e modelaram o pão. Depois de um novo tempo de crescimento, colocaram o pão no forno a lenha para ser assado. Um cheiro maravilhoso se espalhou pela pequena casa. Que alegria quando o pão saiu do forno! Que sabor especial…

Em uma floresta não muito longe da casa havia um riacho. Ali Pedro aprendia a pescar com seu pai. Os peixes costumavam ficar próximos às pedras por onde passava a água límpida do riacho. Pedro até podia vê-los através da água clara. Era preciso muita paciência para pescar. Para o menino era quase impossível ficar sem se movimentar e esperar os peixes se aproximarem da vara de pesca. Um belo dia ele conseguiu pescar seu primeiro peixe. Toda a família ficou feliz, pois era uma grande ajuda para a alimentação.

Certa vez, Pedro teve um sonho: Ele, seus pais e uma multidão estavam no alto de uma grande montanha. Lá eles ouviam um mestre que ensinava e curava as pessoas. No final do dia, quando já estava escurecendo, Pedro se perguntou: “Aonde vamos passar a noite e o que todos vão comer?” Pedro havia trazido alguns pães e alguns peixes, mas será que aquela multidão havia trazido algo? Ele observava os companheiros do mestre que iam de um grupo de pessoas para outro à procura de alguma comida. Quando eles chegaram até ele, Pedro ofertou os pães e os peixes que havia trazido. Será que isso ajudaria? Era tão pouco para tantas pessoas, pensou Pedro.

Então, ele viu como o mestre pegou os pães e os peixes, fez as bençãos e os deu aos companheiros para serem compartilhados com a multidão. E assim foi feito. Pedro também recebeu um bocado de pão e um pouco de peixe. Ele comeu e se sentiu saciado. Passado um tempo, toda a multidão havia recebido algo para comer e estava saciada. Com o que sobrou dos pães e dos peixes foram cheios vários cestos. E Pedro se perguntava: – “Como isso é possível?”

Quando ele acordou, ainda estava com essa pergunta. Decidiu então ir até a casa de sua avó. Ela era uma senhora muito sábia. Quando lá chegou, contou seu sonho e perguntou: -“Vovó, como isso é possível?” A avó ficou um tempo em silêncio, pensando. Depois falou: “Meu filho, não é só o pão ou o peixe que nos alimenta. Pão e peixe você já conhece muito bem. Mas há um mistério por trás disso. Os gestos amorosos, as boas ações que fazemos para o outro e o que recebemos de amor e boas ações dos outros é que nos alimenta. O amor e a compaixão que temos com as outras pessoas são tão importantes como o pão. Você pode descobrir isso na sua vida.”

Ao ouvir essa sabedoria, Pedro pensou: Será que posso descobrir mais sobre esse milagre? Ele guardou essa pergunta no fundo do seu coração e viveu com ela durante toda a sua vida…

Julian Rögge

Conto: A lenda do quarto rei mago

Dizem que houve um quarto rei mago que também viu a estrela brilhar e decidiu segui-la. Como presente, pensou em oferecer ao menino um baú cheio de pérolas preciosas.
No entanto, em seu caminho, ele encontrou várias pessoas que estavam pedindo sua ajuda.
O rei mago os auxiliou com alegria e diligência e doou uma pérola a cada uma dessas pessoas. Ele encontrou muitos pobres, doentes, aprisionados e miseráveis e não podia deixá-los sem ajuda. Ficou o tempo necessário para aliviar a dor de todos eles, depois partiu. Mas novamente encontrava outro desamparado pelo caminho. O rei tinha um coração nobre e bom e, mesmo ficando atrasado para chegar até o menininho, parava sua viagem e socorria todos os que dele necessitavam.  Ao partir entregava sempre uma de suas pérolas preciosas…
A estrela guia brilhava luminosa no alto céu noturno e o rei pôde segui-la com confiança.
Aconteceu que, quando finalmente chegou a Belém, os outros reis magos já não estavam mais lá. José, Maria e o menino Jesus também não estavam na casa indicada pela estrela-guia que agora brilhava cada vez mais suave até desaparecer no céu infinito. Os pais do menininho haviam recebido a visita dos anjos celestes a anunciar: “José, Maria, peguem o menino divino e fujam para as distantes terras do Egito. Herodes, o rei caído nas sombras, quer matar o menininho”. Eles imediatamente haviam se colocado a caminho.
O quarto rei mago decidiu, mesmo sem ter a estrela guia no céu, continuar sua busca até encontrar a criança divina. Ele sentia que a estrela brilhava também em seu coração e de lá ela o conduziria.
Ele procurou e procurou e procurou… e dizem que ele passou mais de trinta anos viajando pela terra, procurando a criança e ajudando os necessitados. Até que um dia chegou a Jerusalém justamente no momento em que o Cristo era crucificado. Conseguiu perceber, ao redor dele, o mesmo brilho da estrela que o guiara primeiro do céu e depois de dentro de seu coração. Eis a criança que ele havia procurado por tanto tempo.
A tristeza encheu seu coração, já velho e cansado pelo tempo. Embora ainda guardasse uma pérola na bolsa, era tarde demais para oferecê-la à criança que, agora, transformada em homem, pendia de uma cruz. Ele havia falhado em sua missão. E sem ter mais para onde ir, ficou em Jerusalém para esperar a morte chegar.
Apenas três dias se passaram quando uma luz, ainda mais brilhante do que mil estrelas, encheu seu quarto. O Ressuscitado veio ao seu encontro! O rei mago, caindo de joelhos diante dele, pegou a pérola que restava e estendeu-a a Jesus Cristo que a segurou e carinhosamente disse: “Você não falhou em sua missão. Pelo contrário, você me encontrou por toda a sua vida. Eu estava nu e você me vestiu. Eu estava com fome e você me deu comida. Eu estava com sede e você me deu de beber. Eu fui preso e você me visitou. Eu estava em todas as pessoas pobres que você ajudou no seu caminho. Muito obrigado por tantos presentes de amor! Agora você estará comigo para sempre, porque o céu é a sua recompensa”.

Autor /a desconhecido/a
Ampliada por Viviane Trunkle

Conto: A boa lanterna

Há muito tempo atrás numa aldeia, viviam três camponeses que eram muito bons amigos. Certo dia eles ouviram dizer que havia nascido o Menino-Deus, lá em Belém, num curral. Contaram também do milagre que aconteceu quando, por onde Maria havia pisado, nasceram pequenas florezinhas brancas e brilhantes que mais pareciam estrelinhas luminosas caídas do céu. Animados os três amigos disseram:
– Para lá também iremos!
Pegaram seus casacos, seus gorros – pois lá fora fazia muito frio – e já estavam quase saindo quando um deles disse: – Não levaremos nada para a criancinha? Dizem que seus pais são muito pobres.
– Ó sim, disse Knut, o mais velho. eu levarei uma garrafa de leite fresquinho.
– E eu levarei um pouco de açúcar e de semolina para que sua mãe lhe faça um mingau bem docinho – disse Holley, o do meio.
Hannes, o mais novo, ficou pensando no que levar. Foi quando viu em cima da mesa o cesto de ovos que acabara de colher no galinheiro e disse:
– Eu levarei uma cesta de ovos – e colocou entre eles feno bem cheiroso para que não se quebrassem no caminho.
Os três então partiram, levando consigo suas lanternas, pois já estava escurecendo. Iam caminhando com pressa pois não viam a hora de conhecer o Menino-Deus. Já tinham andado um bom trecho quando encontraram uma criança sentada num tronco de árvore, chorando.
– O que tens, porque choras? – perguntaram os camponeses ao menino.
– Está escuro e não consigo encontrar o caminho de volta para casa. Meus pés e minhas pernas estão doendo e estou tão cansado que nem consigo mais andar.
Hannes olhou bem para o menino e disse:
– Eu te conheço, você não é o filho do moleiro? Venha Holley, pegue minha lanterna e o cesto de ovos que eu carrego o menino para casa.
– Ah não – disse Knut – eu não vou com vocês, pois o moleiro mora muito longe daqui e eu quero ser o primeiro a ver o Menino-Deus.
– Espere um pouco – disse Hannes – andaremos rápido e logo estaremos de volta!
Mas Knut nem ouviu seus dois amigos e saiu correndo morro abaixo. Chegou numa encruzilhada e, como não sabia qual caminho tomar, uma rajada de vento apagou sua lanterna e, desorientado, ele só encontrou o caminho que o levou de volta para sua casa.
Hannes e Holley chegaram logo ao moinho e encontraram os pais do menino muito aflitos, procurando e chamando por ele. Aliviados, abraçaram o filho e agradeceram muito aos dois camponeses.
Os dois amigos retomaram então o seu caminho pela estrada, até que se embrenharam pela floresta. Já estava muito escuro e somente as estrelas cintilavam por entre as árvores. De repente Hannes segurou Holley e disse:
– Psiu, tem alguma coisa se mexendo por trás daquele arbusto!
Devagarinho, com cuidado, foram se aproximando quando viram um veadinho por trás das folhagens. O coitadinho parecia estar machucado, pois nem se movia. Parecia ter machucado uma perna, pois não conseguia se levantar.
Hannes ficou ali pensando em como ajudar o animalzinho. Holley, porém, foi logo dizendo:
– Vamos continuar nossa caminhada, não podemos perder mãos tempo, não quero ser o último a ver o Menino-Deus!
Como Hannes ficou parado, Holley foi embora sozinho atravessando a floresta. Chegando a uma clareira, soprava um vento tão forte que apagou a sua lanterna. Desorientado na escuridão, só encontrou o caminho que o levou de volta para casa.
Enquanto isto, Hannes pegou um graveto, rasgou um pedaço do seu lenço e com eles fez uma atadura para do bichinho. Depois carregou-o para uma pequena caverna, onde ficaria protegido do vento frio da noite. Pegou um pouco de água do seu cantil, colocou nas mãos e deu de beber ao veadinho que estava com muita cede. E pensou:
– O bichinho deve estar com fome… – e lembrou-se do feno que havia colocado entre os ovos; pegou com cuidado da cesta e deu de comer ao veadinho que comeu com vontade.
Tranquilo, pegou o cesto com os ovos, a lanterna e retomou a caminhada para levar seu presente ao Menino-Deus.
Quando Hannes saiu da floresta, viu que a luz da sua lanterna estava diminuindo e logo a chama se apagou. Temendo perder o caminho, ou mesmo tropeçar em alguma pedra, ou cair num buraco, foi andando bem devagarzinho olhando atentamente para o chão, quando viu um pouco adiante uma florzinha branca, brilhante como uma estrela. Ao acercar-se dela, notou que havia outra um pouco mais adiante e assim foi seguindo as florezinhas, percebendo, cheio de alegria, que as florezinhas foram as que nasceram aos pés de Maria e lhes indicariam o seu paradeiro.
Finalmente avistou o curral e já de longe ouviu o maravilhoso canto dos anjos. Com suas flautas, violinos e harpas tocavam melodias jubilosas, jamais ouvidas por ele.
Da manjedoura irradiava uma intensa luz, onde Maria deitara a Criança Divina. Maria acenou para que ele chegasse mais perto e Hannes aproximou-se devagarinho e, ao ver o lindo Menino, sentiu-se como um sedento a saciar a sede e como um faminto a saciar a fome.
Estava tão feliz e contente que não conseguia tirar os olhos do Menino Jesus, de tão lindo que Ele era!
Até que se lembrou que havia levado um presente para o menininho. Pegou a cesta de ovos e a entregou a Maria dizendo:
– Somente uns ovos eu trago para a criancinha, como gostaria de dar-lhe algo melhor e mais bonito! Então perguntou a Maria:
– O que será que o menino Jesus desejaria?
Maria sorriu e lhe disse:
– Os homens tem muitos desejos, mas o Menino Jesus tem um só: que todos os homens da Terra, pequenos e grandes, se amem e se entendam.
Depois, olhando para a lanterna de Hannes, disse:
– A luz da sua lanterna se apagou. Aqui tens uma vela para reacende-la e regressar à sua casa.
Hannes agradeceu a Maria, inclinou-se diante do Menino Jesus e, radiante de alegria, com o coração cheio de luz, saiu do curral. Porém, olhando para a velinha que Maria lhe havia dado, pensou:
– Com esse toquinho de vela não conseguirei ir muito longe…
Entretanto, depois de ter caminhado por longo tempo sobre os vales e montanhas, percebeu com admiração que o toquinho de vela não tinha se apagado, apesar do vendo e da tempestade balançarem a lanterna para lá e para cá.
Chegou em casa muito feliz e agradecido por tudo que havia vivenciado. Sua esposa, contente lhe disse:
– Graças à Deus que estás em casa pois, com essa tempestade, temi que a sua luz se apagasse e não encontrásseis o caminho de volta.
Então ela ajudou-o a tirar o casaco, o gorro, e serviu-lhe um chá quentinho enquanto ele se aquecia ao lado da lareira. Hannes contou-lhe tudo sobre o Menino Jesus, sobre o maravilhoso canto dos anjos, sobre as florezinhas brancas e brilhantes que lhes indicaram o caminho e também sobre a vela que havia ganhado de Maria e que não apagara nem com a tempestade.
Quando finalmente foram dormir, tentaram apagar a vela da lanterna, mas esta não queria se apagar, e não se apagou, e continuou brilhando no dia seguinte, e no outro, e no outro, e assim por muito tempo.
Certo dia, porém, quando a mulher foi à cozinha para preparar o café da manhã, reparou que a vela da lanterna estava apagada. Então foi acordar o seu esposo e viu que ele tinha se posto a caminho, a seu último caminho, levando a luz consigo, de volta para o céu.

Conto: Rosa Huettner
Tradução: Jacy Mendonça
Adaptação: Karin Stach e Viviane Aranha

Conto: Os elementos no caminho a Belém

Parte V

A noite estava fria.
José e Maria estavam deitados no chão duro da gruta, onde encontraram guarida com a ajuda do velho Pétreo.
 — José, aqui está muito frio! – disse Maria.
 — Querida esposa, respondeu José, bem sei que está frio, o vento gelado sopra pela entrada da cova… Pena que não há lenha para acender uma fogueira…
Depois de um tempo, José prosseguiu:
— Vou juntar um pouco da palha que está no cocho do jumento e acender uma fogueirinha no círculo de pedras… Não durará muito, mas talvez consigamos nos aquecer um pouco!
Enquanto José, agachado, se esforçava para produzir labaredas na palha seca, atritando as duas pedras de fogo, as pederneiras que possuía, Maria prosseguia deitada no manto estendido sobre o chão duro, olhando para o céu estrelado do lado de fora da gruta e murmurou: – Se ao menos a entrada desta cova não fosse tão grande… talvez o vento frio não soprasse tão forte aqui dentro…
Naquele instante ela sentiu a terra tremer, como havia sentido pela primeira vez quanto se despedia do ancião Pétreo. Percebeu também que o tremor repercutia nas enormes rochas que formavam a entrada da caverna e subitamente teve a sensação de que as rochas se moviam. Elas se aproximavam umas às outras. O tremor só cessou quando as rochas tinham se apertado e se encostado umas às outras de tal modo que a entrada da cova havia se tornado bem mais estreita, impedindo assim, em grande parte, que o vento que soprava do deserto da Judeia entrasse na caverna.
Agora que havia menos vento, José conseguiu com maior facilidade acender as brasas.
— Maria, aproxima-te um pouco! Aproveita o calor destas flamas, pois logo se extinguiram!  – disse José.
Maria acomodou-se o mais próximo que conseguiu da pequena fogueira no círculo de pedras. Nesse instante, José virou-se e notou a mudança que havia acontecido na entrada da caverna.
 – Tenho a impressão, disse, de que quando aqui chegamos, a entrada desta cova era bem mais ampla…
— De fato, José, respondeu Maria, tu tens razão, mas parece que estas rochas ouviram minha súplica e se sacudiram e se acomodaram para fechar um pouco mais a abertura da caverna, protegendo-nos assim do vento frio de fora. Isto aconteceu enquanto acendias o fogo.
José levantou-se, tocou as duras e frias rochas da entrada, como se quisesse se certificar de que de fato eram pedras de verdade. Retornou, se deitou ao lado de Maria próximo ao fogo e disse: – Creio que não só as rochas ouviram tuas súplicas, Maria! Há pouco eu tentava sem sucesso lançar algumas fagulhas com as pederneiras para acender a palha dentro do círculo de pedras, mas minhas mãos tremiam e eu nada conseguia… Lembrei então daquela noite que encontramos o jovem Ígneo e da fogueira de gravetos que ele acendeu com a maior facilidade usando a luz de sua lanterna. Meu coração se encheu de alegria naquele momento. De repente ao atritar as pederneiras uma contra a outra, inúmeras fagulhas saltaram e a palha pegou fogo imediatamente!
José e Maria ficaram longo tempo admirando as labaredas que crepitavam da fogueira de palha. O fogo era vigoroso, preenchia com luz e calor a caverna, não dava sinais de diminuir, ao contrário, se mantinha robusto, apesar de que as palhas que ali estavam, mal teriam conseguido alimentar chamas tão intensas. Maria rompeu o silêncio e disse: 
— José, também o fogo veio em nosso auxílio! Vê como a pouca palha queima e parece não se consumir, mantendo assim acesa essa linda fogueira!
Aquecidos pelas chamas e protegidos do gélido vento do deserto, José e Maria, abraçados, adormeceram. Havia chegado as altas horas da noite, quando Maria sacudiu José e disse: 
 — José, acorda! Levanta-te, vai lá fora e busca um pouco de água. Pétreo disse que há uma fenda na parede rochosa de onde jorra um manancial. Sinto que a hora do nascimento está se aproximando. Tenho sede…
José, prestimoso, se levantou de imediato. Pegou uma pequena tina de madeira que fora abandonada no fundo da caverna e foi verificar no exterior onde se encontrava o tal manancial. Vagou um pouco pelas proximidades da cova, observando com atenção as paredes rochosas. O luar iluminava a rocha escura. Por fim José encontrou a fenda, contudo, de seu interior, escorria um mirrado filete de água. Ele tentou apoiar a borda da tina contra a rocha, mas o filete era tão insignificante que água passava direto e não dava vazão a encher o recipiente…
José retornou cabisbaixo à caverna:
– Maria, encontrei a fonte, mas está quase se extinguindo… por muito que me esforcei, mal consegui umas gotas no fundo da tina!
Maria, num gesto de desapontamento, levou as mãos ao peito. Nisto sentiu que o pequeno frasco, que havia recebido de Aquália na margem do rio e que guardara entre as pregas de seu manto, tocou seu coração. Um sorriso brilhou em seu rosto:
— José, toma, leva-o até a fonte! – disse Maria, entregando o frasco ao esposo. Pingue algumas gotas sobre a fenda, pois pode ser que o manancial esteja sedento já que suas águas estão se acabando… A generosa Aquália disse que com esta água, podemos saciar qualquer sede.
José tomou o fraquinho nas mãos e se dirigiu para fora. Fez como Maria lhe havia dito. Para sua alegria e surpresa, pouco tempo depois que as gotas miraculosas do frasquinho de Aquália caíram na escuridão da fenda rochosa, José ouviu um ruído borbulhante. Logo a seguir um jorro intenso foi lançado para fora da fenda. José rapidamente aproximou a tina da rocha e num instante ela se encheu de água fresca.
José retornou à caverna. Deu de beber à sua esposa e colocou a tina próxima ao jumentinho para que este também saciasse a sede.
Maria tomou uns poucos goles e ficou satisfeita, sentia-se cansada, pediu a José que se sentasse ao seu lado e a abraçasse. A fogueira generosa, continuava a flamejar com intensidade. Assim ficaram em silêncio por um bom tempo. Apesar do cansaço, Maria não conseguia adormecer… fechava os olhos por alguns momentos, mas tornava a abri-los a seguir. Tudo à sua volta estava sereno. O burrico se deitara na palha ao fundo da caverna, José adormecera abraçado a esposa, o fogo soltava labaredas delicadas que pareciam dançar ao som de uma melodia inaudível… Foi num destes abrir e fechar de olhos que subitamente Maria teve a impressão de ouvir um som que parecia provir de lugares distantes. No início não soube identificar, mas aos poucos reconheceu que se tratava de uma melodia. Era o som de vozes que vibravam no ar cantando uma melodia desconhecida, um cântico novo que ela jamais havia ouvido. 
A melodia foi ficando cada vez mais audível para Maria. As vozes cantavam com grande alegria! Não eram vozes humanas, pareciam vozes de anjos, que faziam coro com a voz da  suave brisa que soprava na caverna; a fogueira cantava e dançava no ritmo daquela melodia. As paredes da caverna também reverberavam produzindo uma profunda e grave vibração que harmonizava com o canto celestial; até mesmo a água no interior da tina de madeira vibrava em ondulações circulares no compasso da música. Maria estava admirada com tudo o que ocorria a sua volta! Foi neste momento especial que nasceu o seu filho, embalado pelo canto jubiloso dos elementos: terra, água, ar e fogo!
Maria envolveu a criancinha num tecido de linho branco e não se cansava de admirar seu rosto luminoso.
José acordou e ficou alegremente surpreso com o nascimento do menino. Levantou-se, recolheu um pouco mais de palha do fundo da cova, acomodou-a cuidadosamente no cocho dos animais e disse à esposa:
– Deita a criança aqui na manjedoura, Maria. A palha macia lhe servirá de colchão.
Maria deitou carinhosamente o menininho na manjedoura, o cocho que se usa para dar de comer aos animais e que lhe serviu de berço.
 José falou:
– Vamos dar-lhe o nome de Jesus, pois foi assim que, em sonho, o Anjo do Senhor me disse que lhe chamasse.
Maria assentiu com um gesto de cabeça e acrescentou:
– Esta foi uma noite muito especial, José. Eu vi e ouvi todos os elementos da natureza cantando junto com os céus por causa do nascimento desta criança.
O jumentinho também se levantou e veio observar de perto o que estava acontecendo. Ficou parado junto a manjedoura, com as suas grandes orelhas erguidas, atento a cada movimento que o menininho fazia.
Ouviram-se vozes humanas do lado de fora da caverna. Na abertura da entrada surgiram então as cabeças de alguns pastores que um pouco assustados perguntaram:
— Sabeis dizer, se é aqui o lugar onde acaba de nos nascer o salvador?
Outro dentre eles acrescentou:
— Estávamos dormindo no campo, junto ao nosso rebanho, quando fomos acordados por um enorme coro de anjos, cantado uma música maravilhosa.
E o próximo prosseguiu:
— Eles nos anunciaram que hoje havia nascido em Belém o novo rei, o nosso salvador e que o encontraríamos envolto em linho branco, deitado numa manjedoura…
Ao pronunciarem estas palavras, todos os pastores olharam ao mesmo tempo para o lugar onde se encontrava o menino Jesus.
José fez-lhes um sinal para que se aproximassem.
Os humildes pastores se ajoelharam diante da manjedoura e permaneceram longo tempo observando em silêncio.
Maria então lhes perguntou:
— Vós também ouvistes a linda música celestial?
Os pastores assentiram com as cabeças.
— Ainda a podeis ouvir? Perguntou mais uma vez Maria.
Desta vez eles balançaram as cabeças, em sinal de negação e acrescentaram:
— Enquanto vínhamos apressados para cá, percebemos que música foi desaparecendo de nossos ouvidos…
Maria ficou admirada com esta resposta, pois continuava a ouvir o som e a vibração da música dos elementos. Somente neste instante compreendeu que aquele canto não era audível para os que ali se encontravam.
Mais uma vez todos os que estava na cova de Belém fizeram silêncio. Apenas Maria ouvia a música no silêncio e neste momento reconheceu nas labaredas do fogo da palha no pequeno círculo de pedra o rosto vivaz do jovem Ígneo, que havia alimentado durante toda a noite as chamas da fogueira; no movimento da água na tina percebeu, emoldurado pelos ondulantes cabelos claros, o rosto sereno de Aquália, que mais uma vez lhes havia saciado a sede; dirigindo o olhar para as rochas da entrada da cova, notou emergir da rocha a face enrugada e bondosa do ancião Pétreo que os havia protegido do frio, estreitando a entrada da caverna e, pairando no ar, na entrada da gruta, entre seus véus flutuantes, viu o sorridente rosto de Brisa, que com sua melodia havia trazido pelo ar até os ouvidos de Maria o canto do coro dos anjos.
Este foi o primeiro Natal no mundo!
A cada ano podemos relembrá-lo e deste modo renovar a alegria em nossos corações. Podemos também ter a certeza de que toda a Natureza e os elementos se alegram conosco:
O jovem Ígneo-Fogo,
A alegre Brisa-Ar,
A generosa Aquália-Água
E o bondoso Pétreo-Terra.

Renato Gomes

Natal 2020

Conto: Os elementos no caminho a Belém

Parte IV

Depois de vários dias de viagem, José e Maria chegaram a Belém. A cidade não era grande e possuía poucos habitantes, mas nestes dias estava repleta de pessoas. Numerosas caravanas tinham chegado, provindas dos extensos desertos do sul. Belém ficava num pequeno oásis e muitas rotas de caravanas que vinham da Arábia e se dirigiam a Jerusalém paravam ali para repousar antes de prosseguir viagem.

José se dirigiu a casa de alguns de seus antigos conhecidos, para ver se encontravam acolhida, mas não teve muita sorte. Os forasteiros haviam chegado primeiro e solicitaram pousada pagando bem pela hospedagem.

Maria e José não tinham muitos recursos e por mais que procurassem não encontraram ninguém que os pudesse receber em sua casa.

— Fizemos tão longa viagem – disse Maria – e agora que chegamos não achamos lugar para pernoitar!

— Maria – consolou José – não desanimemos! Vamos cruzar a cidade. Quem sabe os moradores do sul, que vivem mais próximos do deserto da Arábia, talvez possam nos ceder um lugar; uma simples choupana para passar esta noite já estaria bem.

O casal cruzou a cidade de Belém de uma extremidade a outra. Por onde passaram, viram tendas armadas nos quintais das casas, pessoas circulando, de um lado para o outro, camelos ajoelhados no chão arenoso, de aparência cansada após a travessia do deserto… Ouviam-se muitas vozes, havia cheiro de comida no ar e sons de música e canto. A pequena cidade de Belém estava alvoroçada. O decreto do Imperador Romano era a causa de tamanha movimentação. Muitas famílias que residiam em regiões distantes e em outros países se viram obrigadas a retornar às suas cidades de origem para colocar seus nomes nas listas.

Também José deveria fazê-lo, mas haveria tempo para isto no dia seguinte. Neste momento ele sabia que o mais importante era encontrar um lugar abrigado para que Maria pudesse descansar da longa jornada.

Ao chegarem nos limites da cidade viram umas poucas casas de pedra. Perguntaram também ali, mas nada obtiveram. Eles não podiam prosseguir, pois a sua frente havia apenas o grande deserto de areia e formações rochosas… José ajudou Maria a desmontar do burrico. Desanimada, ela se sentou numa pedra e pôs-se a olhar as pedrinhas do chão. Apanhou algumas e as moveu de uma mão para a outra, enquanto dizia:

— Pedrinhas pequeninas, não sentem frio, nem fome, nem cansaço… Podem repousar em qualquer lugar onde caem… nós, porém, seres humanos, precisamos de um lugar abrigado para passar a noite!

Nisto aproximou-se deles um homem; parecia bem velho, tinha uma comprida barba cinzenta, andava encurvado pelo peso dos anos e se apoiava num grosso bastão que tinha o aspecto de uma raiz envelhecida e retorcida. Tinha sobre o corpo ossudo uma túnica feita com um tecido áspero, cuja cor não se podia identificar bem por causa da pouca luz do início da noite, mas que lembrava tons de terra escura.

O velho se aproximou de José e de Maria e perguntou:

— Viajantes, o que vos traz aqui nos limites do deserto?

José lhe respondeu:

— Ancião, fizemos longuíssima viagem de Nazaré a Belém. Tínhamos esperança de encontrar, na casa de algum amigo ou conhecido, um lugar para passar esta noite, mas a cidade está repleta de pessoas e não sabemos onde poderemos repousar. Minha esposa Maria espera o nascimento da criança que deve acontecer em breve, portanto não será bom passarmos a noite ao relento…

O velho de barba cinzenta lhes disse com sua voz rouca e grave:

— Não vos posso oferecer nem casa nem choupana, mas se me acompanhardes vos indicarei uma gruta, onde achareis abrigo por esta noite.

— Meu bom homem – disse Maria – te agradecemos de coração! Não procuramos nem luxo nem riqueza, apenas um lugar onde possamos nos deitar e estender nossos membros cansados da viagem.

O ancião caminhava com passos pesados à frente dos viajantes para indicar-lhes o caminho. Afastaram-se das últimas casas de pedra de Belém e se encaminharam por uma trilha pedregosa em direção ao deserto. Chegaram, por fim, à entrada de uma caverna. O seu interior era espaçoso; no chão de terra batida, via-se um pequeno círculo de pedras em cujo interior havia cinzas de uma fogueira extinta há muito tempo. Num dos cantos havia um cocho com palha.

— Nas noites mais frias do ano – disse o velho barbado – alguns pastores de Belém costumam passar a noite nesta caverna. Acendem um fogo para se aquecer e alimentam aqui suas ovelhas. – enquanto falava, apontou com o bastão retorcido a manjedoura cheia de palha. – mas esta noite eles estarão nos campos com seus rebanhos. Vós podeis dormir sossegados aqui.

José conduziu o jumento até a manjedoura. Separou, porém, um pouco de palha e a espalhou sobre o chão. Estendeu seu manto por cima e ajudou Maria a se acomodar naquela cama improvisada.

O ancião prosseguiu, dirigindo-se a José:

— Do lado de fora da gruta encontrarás um filete de água fresca que brota numa fenda na rocha. Podereis saciar vossa sede.

José inclinou-se diante do ancião e disse:

— Agradecemos tua generosidade!

O velho respondeu com um gesto de cabeça e fez menção de retirar-se, encaminhando-se para a entrada da caverna. Maria porém, chamando-o, perguntou:

— Meu bom homem! Dou-te também graças por compartilhar esta singela gruta! Como é teu nome?

O velho fez um giro e, apoiando-se em seu bastão, recostou-se na parede rochosa da entrada da caverna antes de responder com sua voz pesada:

— Costumam me chamar de Pétreo. Em verdade sou eu quem agradece por ter a oportunidade de receber aqui a mãe daqu’Ele que será capaz de entender até o que as pedras clamam! Ele, um dia, também repousará numa gruta profunda e escura, mas com sua força divina removerá a pesada pedra e compenetrará com luz até as rochas mais profundas da Terra.

No momento seguinte, Maria, que estava deitada sobre o chão de terra batida, sentiu um pequeno tremor no solo e percebeu que Pétreo simplesmente havia sumido. Parecia que seu corpo tinha se incorporado ao rochedo da entrada da gruta.

José veio se acomodar ao lado de sua esposa e, abraçados assim, se sentiram mais aquecidos, já que não havia lenha na caverna para acender uma fogueira no círculo de pedras.

Renato Gomes