Com o sacerdote Julian Rögge
Diálogo online
Sábado, 17 de dezembro de 2022 das 17h às 18h30
Dados de acesso
ID: 844 4038 2306
Senha: comunidade
Contribuições livres podem ser feitas nas contas das comunidades
www.comunidade-de-cristaos.org.br
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Caros membros e amigos!
A Associação Sagres em Florianópolis gentilmente me convidou para uma live por volta do dia de finados.
O tema: “A morte pede passagem – Nossa homenagem aos falecidos.”
Disponibilizamos aqui e em nosso site o link para o vídeo.
https://youtu.be/edeAw1LpUgo
Estou à disposição para diálogos.
Abraço fraterno
Viviane Trunkle
Daremos aqui o terceiro passo sobre o tema da comunhão. Na primeira palestra olhamos para a comunhão com o pão e o vinho, que tem um caráter mais individual e, de um ponto de vista espiritual mais profundo, tem a ver com o impulso que recebemos para a formação do nosso carma e, assim, para o desenvolvimento do nosso eu. Na segunda palestra vimos o motivo da paz, que tem um caráter social, na comunhão com o outro. Vimos que necessitamos de uma ajuda, de uma força para formar o nosso carma, que tem a ver com a comunhão com o pão e o vinho, mas a substância que temos para formar o carma surge dos nossos relacionamentos, dos nossos relacionamentos sociais, uns com os outros. A partir da formação de um carma e do desenvolvimento do nosso eu, temos como meta formar relacionamentos com a qualidade da paz. Hoje, no terceiro passo, nos aproximaremos do tema da comunhão espiritual, e veremos que ela tem a ver com o nosso relacionamento com a Terra, com a natureza.
No âmbito vegetal da natureza vivenciamos processos de germinação, de crescimento, de florescimento, de formar frutos e sementes, e também os processos de fenecimento, de murchar, secar e apodrecer. É o lado do desenvolvimento das plantas na natureza. Esses processos acontecem no ritmo das estações do ano: primavera, verão, outono e inverno. Quanto mais próximos estamos da linha do Equador, menos podemos diferenciar essas quatro estações, e quanto mais próximos das zonas temperadas, mais nítidas elas são. Mas mesmo se vivemos numa região em que as estações estão como que misturadas, podemos aprender a observar as distintas qualidades. O germinar, o florescer, o formar frutos possuem uma qualidade relacionada à primavera e ao verão. Já o amadurecer, formar sementes e então perecer, mostram uma qualidade relacionada ao outono e ao inverno. A natureza se desenvolve no ritmo entre primavera verão e outono-inverno, entre o desenvolvimento e o perecimento da vida vegetativa. As sementes e os brotos formados nesses processos asseguram a continuidade da vida. Assim, no próximo ano, o ritmo da natureza pode se renovar. Mas é importante perceber que a natureza, nesse ritmo das estações do ano, em realidade não se desenvolve como algo novo, mas ocorre sempre como a repetição do mesmo. Ela é maravilhosa, mas não tem, em si, um desenvolvimento no mesmo sentido de que podemos falar do nosso desenvolvimento. As transformações que ocorrem na natureza, acontecem em períodos muito longos, de séculos e milênios. O principal aspecto que podemos observar é que, no passado, surgiu um impulso que levou à formação do que hoje temos como natureza. Existe como que uma inércia na continuação desse impulso, que mantém aquilo que temos hoje na natureza. Mas esse impulso de criação tem, em si, a tendência de se extinguir. A natureza não caminha na direção de formar um novo impulso para o futuro, mas tem a tendência de acabar, de morrer. Um dia não haverá mais a natureza, não haverá mais a Terra. Temos a grande responsabilidade de preservar essa natureza o máximo possível, esperamos que por muitos milênios. Mas a tendência natural é seguir um caminho para um fim, para uma morte. Esse pensamento que a natureza é temporal, que teve um início e terá um fim, encontramos tanto no âmbito da ciência natural, quanto da religião ou de uma ciência espiritual. A física, a partir do conceito da entropia, trata até do fim dos processos naturais como “o cemitério cósmico”. A energia que proporcionou o início da criação do universo tem a tendência de se equilibrar, e então nada mais acontecerá. Também encontramos, no Novo Testamento, as palavras de Jesus Cristo: céu e terra passarão. Embora seja a mesma ideia da temporalidade da nossa realidade, encontramos aqui uma esperança para um futuro, para a criação de algo novo, pois Ele prossegue, dizendo: minhas palavras nunca passarão. Essa ideia da criação de uma nova realidade futura se concretiza no Apocalipse com a descrição da “Nova Jerusalém”. E na Antroposofia, como uma ciência espiritual, encontramos os mesmos conceitos da temporalidade da nossa Terra, e da possibilidade da formação de uma nova realidade futura, descrita então como o Novo Júpiter, que seria o correlato para o que, no Novo Testamento, está descrito como a Nova Jerusalém. A consciência comum é aquela que está em relação com a temporalidade da Terra. Mesmo que observemos a maravilha da renovação da vida no ritmo das estações do ano, temos de nos conscientizarmos que, apesar da maravilha da natureza, esta não tem, em si, um impulso que possa criar um novo futuro, pois ela só consegue repetir o passado. Assim surge a pergunta de onde pode provir o impulso que possibilite a formação de um futuro para a natureza, a formação da Nova Jerusalém, do Novo Júpiter? Esse é o ponto onde temos de olhar para o ser humano, olhar para nós.
Nós temos um relacionamento com a natureza, e dela fazemos parte. Como seres que pertencem à natureza, estamos exatamente no mesmo caminho da natureza. Temos um impulso de criação que nos leva a formar o nosso corpo e a nascer. Esse impulso vem do tempo pré-natal, ou, melhor dizendo, da preconcepção. Ele possibilita viver, aqui na Terra, toda a nossa biografia, mas tem a tendência de se desgastar e ir para a morte. Seguramente iremos todos morrer um dia, assim como a Terra um dia terá um fim. Fazemos parte da natureza, mas somente no âmbito do nosso corpo e da nossa vitalidade. Mas o ser humano é um ser dotado de uma dupla qualidade. Não temos somente o lado natural do nosso ser, o corpo e a vitalidade. Temos também a nossa alma e o nosso eu, que não têm a sua origem na natureza. O nosso corpo faz parte da natureza, mas não a nossa alma.
Se observamos a nossa vida podemos ver que também nós nos desenvolvemos dentro de um ritmo e que, nesse ritmo, podemos encontrar as qualidades das estações do ano. Mas, na natureza, as qualidades das estações se revelam no ritmo de um ano, enquanto temos, em nós, essas qualidades no ritmo do dia. Olhando para um lado do nosso ser, para o nosso corpo, podemos ver que, durante a noite, enquanto dormimos, vivenciamos um processo de vitalização, e encontramos aqui a qualidade primavera verão. Já, durante o dia, quando estamos despertos, vivenciamos um processo de desvitalização, e encontramos a qualidade outono-inverno. Para o corpo, o sono é como o ciclo primavera verão, e nos vitaliza; a vigília, como o outono-inverno, nos desvitaliza. Vivenciamos esses processos também com a nossa alma, mas de uma maneira oposta à vivência do corpo. Durante o dia, quando estamos despertos, formamos a nossa vida anímica com os pensamentos, os sentimentos e os impulsos que germinam e crescem em nossa alma. Durante a noite, quando estamos dormindo, perdemos a consciência da nossa alma e a vida anímica perece em nós. Para a nossa alma, o sono é como outono-inverno, em que se perde a vida anímica; a vigília é como primavera verão, com o desenvolvimento da vida anímica. O ritmo do corpo e o ritmo da alma são, assim, opostos. Durante o dia, temos no corpo, outono-inverno, e na alma, primavera verão; durante a noite, primavera verão no corpo, e outono-inverno na alma.
Na natureza, quando é primavera verão, vemos tudo germinar, brotar, crescer, florir, formar frutos, porque nela atua a força de criação que vem do passado, renova a vida e eleva o mineral a um nível vegetal. Quando vem outono-inverno a natureza perde a ligação com esse impulso do passado e entra no processo de murchar, secar, perecer, e o nível vegetal tende para um nível mineral. Quando nós, seres humanos, estamos despertos, nosso corpo perde a ligação com as forças pré-natais que o formaram, e se desvitaliza. E exatamente essa desvitalização do corpo é o que possibilita a formação de uma vida anímica consciente. Quando nós dormimos e perdemos a consciência, o corpo pode unir-se novamente com essas forças pré-natais, revitalizando-se. O que impede a ligação do corpo com as forças pré-natais é a nossa consciência de vigília. Quando a perdemos no sono, o corpo pode ter novamente essa ligação. Assim, temos no corpo os mesmos processos que ocorrem na natureza: uma revitalização pela ligação com as forças criativas do passado, e uma desvitalização quando se perde essa ligação.
E como ocorre com a alma? Despertamos pela manhã para um novo dia. Recuperamos a nossa autoconsciência e criamos a nossa vida anímica, desenvolvendo o nosso eu. A base para a criação dessa vida anímica consciente é a desvitalização do corpo. À noite, deixamos o corpo, para que ele se ligue com as forças pré-natais e, assim, possa se revitalizar. A nossa alma segue agora inconscientemente, no sono, um caminho no mundo espiritual e se liga com a imagem arquetípica do ser humano, com a meta do nosso desenvolvimento, com aquilo que poderemos ser no futuro. Esse futuro, com o qual nos ligamos durante o sono, tem a ver tanto com o futuro da humanidade e do cosmo, quanto com o nosso futuro individual. Quando, no próximo dia, despertamos novamente, encontramos um corpo revitalizado pelas forças pré-natais, pelas forças do passado, e temos a nossa alma revitalizada com impulsos para o futuro. Isso é o que diferencia o ser humano de todos os outros seres da natureza: a possibilidade de trazer, do sono, impulsos que vem do futuro, de viver não apenas repetindo o passado, mas de criar realmente um futuro. Não podemos dizer, como o fazemos para nós, que a natureza dorme. Pois o essencial que acontece durante o nosso sono, é a possibilidade da alma receber um impulso para o futuro. Isso não acontece na natureza.
Enquanto estamos encarnados e despertos em nosso corpo, podemos ver a influência de duas correntes. Pelo corpo temos a influência daquilo que vem do passado. Isso nos dá a base para formar a nossa vida anímica consciente. Mas, durante o sono, na alma inconsciente, temos a influência daquilo que vem do futuro, com que nos ligamos. A influência do passado tem a tendência de determinar o nosso presente, o que se chama de causalidade. Mas também a influência do futuro tem a tendência de determinar o nosso presente, o que poderíamos chamar de finalidade. Tanto a realidade terrestre, a natureza, no princípio da causalidade, quanto o mundo espiritual, as metas e os ideais, no princípio da finalidade, tem a tendência de nos determinar e, assim, não nos deixam livres. Em nossa alma, no presente, temos o encontro dessas duas tendências, da causalidade que vem do passado e da finalidade que vem do futuro e, nessa polaridade, podemos criar a nossa liberdade, no equilíbrio entre causalidade e finalidade, entre passado e futuro, entre natureza e espírito.
E o ser humano é aquele que pode, em liberdade, no reino da natureza, no âmbito determinado pelo passado, pela causalidade, trazer os impulsos do mundo espiritual, do âmbito que tem, em si, as metas e a força para criar o futuro. E, do mesmo modo, oferecer à natureza, à Terra, a possibilidade de criar um futuro. Para isso precisamos desenvolver uma consciência de vigília capaz de se despertar para os impulsos futuros que, inconscientemente, recebemos no sono. Na medida em que os impulsos futuros se tornam uma realidade em nossa consciência, que tem como base o nosso corpo, que por sua vez, faz parte da natureza, impregnamos a natureza com esses impulsos.
O que acontece com a natureza, com as substâncias terrestres, quando estas passam a constituir o nosso corpo? As substâncias da Terra são minerais, que se formam e se comportam de acordo com as forças físicas. No reino mineral temos realmente a atuação das forças terrestres e da causalidade. No momento em que as substâncias minerais são assimiladas pelo nosso corpo vivo, elas perdem algo da sua mineralidade, passam a ser regidas por nossas forças etéricas e formam a base para a nossa vida biológica. No momento em que nós despertamos para uma vida anímica consciente, formamos essa consciência a partir da desvitalização do nosso corpo. A substância tem de perder algo da sua vitalidade para servir de base para a nossa vida anímica consciente. Temos agora a tarefa de, durante a nossa vida anímica, durante a nossa biografia, desenvolvermos o nosso eu. O que é necessário para formar uma vida na esfera do eu? Temos de aprender a sacrificar a nossa astralidade, para formar realmente uma espiritualidade. Partimos de substâncias minerais. Elas perdem a sua mineralidade para formar a vida biológica. Perdem a sua vitalidade para formar uma vida anímica. E tem que perder a sua astralidade, para formar uma vida espiritual.
Assim, vemos uma diferença entre uma vida anímica e uma vida espiritual. A vida anímica consiste nos sentimentos pessoais que formamos como simpatia e antipatia, e em pensamentos que, num primeiro nível, são meras associações e que, com a conquista da racionalidade, tornam-se abstrações intelectuais. A qualidade dessa vida anímica é que temos sentimentos pessoais e, dentre eles, o sentimento de que nós produzimos os nossos próprios pensamentos. Esses pensamentos não são, em si, realidades espirituais, mas imagens refletidas de uma realidade, assim, destituídas de vida. É o que se chama de pensamentos mortos. Uma vida espiritual começa quando o eu desenvolve a possibilidade de estar presente nos sentimentos e, num caminho de autoconhecimento e autoeducação, transforma a simpatia e a antipatia em uma empatia, ou seja, a possibilidade de sentir o que o outro está sentindo. O sentimento se liberta da subjetividade e passa a ser um órgão de percepção para o sentimento do outro. E quando o eu pode estar realmente presente no pensar, ele pode sacrificar o sentimento de ser o criador dos seus pensamentos e almejar receber as ideias do mundo espiritual e oferecer a sua consciência como um âmbito no qual as ideias possam viver aqui na Terra: na consciência do ser humano. A transformação dos sentimentos em empatia e colocar a consciência a serviço do mundo espiritual, esse é o sacrifício da subjetividade pelo eu, a perda da astralidade, aquilo que transforma a vida anímica numa vida espiritual. A alma torna-se então como um altar onde, pela força do nosso eu, sacrificamos a nós mesmos, para que algo superior a nós, possa viver em nós.
O caminho da natureza, da substância dentro de nós, dentro do nosso corpo, começa com as substâncias minerais que ingerimos. Elas perdem a mineralidade, para criar a base da vida biológica. Eles perdem a vitalidade para formar a base da vida anímica. Elas perdem a astralidade, para formar a base de uma vida espiritual. Nessa esfera, a substância é espiritualizada, humanizada, recebe do ser humano um impulso futuro que ela não teria por si mesma. Em nós acontece a transubstanciação da matéria. O caminho que seguimos como seres humanos começa no nascimento, ao nos encarnarmos em nosso corpo. No ritmo de dia e noite, formamos a nossa autoconsciência na vigília, e renovamos o nosso impulso espiritual durante o sono. Esse processo tem como meta, durante a vigília, desenvolvermos uma consciência que pode despertar para esses impulsos espirituais que vivem inconscientes em nós, com os quais nos ligamos durante o sono. Isso não atinge a sua realidade em sentimentos subjetivos de ligação com o mundo espiritual. Isso apenas se torna uma realidade quando conseguimos oferecer a nossa alma para que a ideia espiritual possa viver no palco da nossa consciência, aqui na Terra. Isso é possível quando superamos a subjetividade no sentir e, no pensar, a abstração e o intelectualismo, tornando assim o pensar, em algo vivo. Essa possibilidade do ser humano de unir, em seu ser, a realidade da natureza com a realidade das ideias, é o que podemos chamar de comunhão espiritual. Pela comunhão espiritual, a natureza recebe um impulso para o futuro, recebe uma semente espiritual, que a levará à formação de seu futuro.
Podemos tentar concretizar, um pouco, como é possível exercitar essa comunhão espiritual. Não necessitamos fazer algo totalmente diferente do que praticamos agora, mas podemos fazer com uma outra consciência. Por exemplo, em uma oração. Podemos orar, por exemplo, o Pai Nosso, com a intenção totalmente válida de, a partir dessas palavras, sentirmo-nos mais unidos com o Divino e, assim, recebermos uma força para superar os desafios da vida. Podemos vivenciar, subjetivamente, sentimentos religiosos profundos. Mas podemos, também, orar o Pai Nosso com uma outra intenção, ao não nos perguntar qual a importância que essa oração pode ter para nós. Podemos nos conscientizar de que o Pai Nosso é, com certeza, uma realidade no mundo espiritual, que nunca estaria presente na Terra, se não fosse orado por um ser humano. É necessário que a consciência e a intenção de um ser humano, para que as palavras do Pai Nosso soem no ar da Terra, se impregnem na sua atmosfera. Quanto mais nos sentimos como palco, ou numa expressão mais profunda, como altar, e falamos ou pensamos as palavras do Pai Nosso com a intenção de unir a Terra com essas palavras, tanto mais proporcionamos a comunhão espiritual da Terra com o espírito, por meio de nós. Essa também pode ser a intenção de uma meditação, quando não a fazemos como caminho para o nosso desenvolvimento, mas como contribuição para a Terra, oferecendo a alma para que a presença da ideia espiritual possa se realizar na Terra. Um terceiro âmbito no qual podemos exercitar a comunhão espiritual, de uma forma muito profunda, é o sacramento, o Ato de Consagração do Homem. Pois no culto vivenciamos, de forma perceptível, “objetiva”, realidades espirituais. Com certeza é válido vivenciar o culto de uma forma subjetiva, com a atenção nos sentimentos religiosos que se formam, e com a esperança de receber uma ajuda para a própria vida. Mas também é possível, e talvez até seja o caminho que temos de exercitar mais, o de vivenciar o culto de uma forma objetiva, sacrificando a própria subjetividade e astralidade, se oferecendo para que aquilo que é realizado como uma imagem pelo sacerdote, possa viver no palco da nossa consciência, no altar da nossa alma, como uma realidade espiritual e, assim, por meio de nós, pela ligação da nossa consciência com o nosso corpo, contribuir para a comunhão espiritual, para o futuro da Terra.
As próprias palavras do Ato de Consagração do Homem querem nos despertar para o caminho da comunhão espiritual, quando escutamos as palavras do Cristo nos dizendo que devemos acolher isso em nosso pensar. Quando conseguirmos desenvolver um pensar vivo, que se ofereça para que o Cristo pense em nós, teremos chegado a uma meta do desenvolvimento da nossa autoconsciência. E o que, aparentemente, é a comunhão com substâncias, com o pão e o vinho, se revela nas palavras do culto, como aquilo que tem como meta se espiritualizar em nós, e transformar aquilo que é uma realidade temporal aqui na Terra, em um futuro atemporal da nossa existência.
João F. Torunsky
Na última palestra falamos da comunhão substancial, a comunhão com o pão e o vinho. O motivo espiritual mais profundo da comunhão com o pão e o vinho tem o sentido de uma ajuda para a formação do carma. Para o desenvolvimento do eu é necessária essa formação do carma. Pois só assim o eu pode desenvolver, tanto a liberdade quanto a responsabilidade.
Indo um passo à frente podemos nos perguntar o que forma o carma. O carma é consequência de tudo que fazemos ou deixamos de fazer. O carma tem a ver com a nossa força de vontade, com a possibilidade de atuar no mundo, ou com a decisão de não atuar. É importante sentir que, tanto na ação, quanto na omissão, temos responsabilidade. Naquilo que fazemos, ou deixamos de fazer, estamos em relacionamento com os outros, com a Terra. O carma é a consequência dos nossos relacionamentos. A comunhão com o pão e o vinho nos ajuda na formação do carma. Mas se vamos um passo à frente somos levados a nos perguntar, como são os nossos relacionamentos com os outros e o nosso relacionamento com a Terra. A questão dos nossos relacionamentos com os outros será o tema da palestra de hoje, a comunhão social. A formação do carma tem a ver com nossa vida social, com o nosso relacionamento com as outras pessoas. A questão do nosso relacionamento com a Terra será o tema da próxima palestra, a comunhão espiritual.
No Novo Testamento encontramos a anunciação dos anjos aos pastores sobre o nascimento do Jesus. As palavras dos anjos são muito conhecidas e as temos também escritas na imagem do altar de Natal: Revela-se Deus nas alturas, e paz na Terra aos homens de boa vontade. Podemos ver essa anunciação dos Anjos em relação ao nosso tema. O carma se forma no caminho da alma, entre a morte e um novo nascimento. Ele se forma pela digestão das nossas experiências, da nossa biografia, de acordo com a sabedoria divina. É uma revelação do Divino nas alturas. A consequência frutífera da formação do carma seria o desenvolvimento do eu, para que a paz possa se revelar na sua vontade.
No Ato de Consagração do Homem não recebemos somente a comunhão com o pão e o vinho, com as substâncias. Existe um terceiro elemento, a comunhão com a paz. Depois que recebemos o pão e o vinho, o sacerdote toca a nossa face e diz as palavras: A paz seja contigo. É a comunhão com a paz.
A formulação “A paz seja contigo” provoca, às vezes, um desagrado para pessoas que têm um sentimento aguçado para o idioma português. Sente-se que seria melhor formular: A paz esteja contigo. Aqui vemos esta possibilidade maravilhosa do nosso idioma de distinguir entre ‘ser’ e ‘estar’. Essa diferença se torna bem nítida quando temos a possibilidade de usar as duas formulações com intenções bem determinadas. É uma grande diferença se dizemos “estamos doentes” ou “somos doentes”. O estar tem a ver com um estado em nossa vida, que pode ser temporário. O ser tem a ver com uma qualidade do nosso próprio ser, que faz parte de nós. Assim, a formulação “A paz seja contigo” indica a direção de que essa paz não deve ser um estado temporário, mas uma qualidade do nosso ser. Os tradutores do Novo Testamento também sentiram essa diferença e optaram por formular a saudação do Cristo Ressurreto também assim: Paz seja convosco.
O desenvolvimento do eu exige a separação. Na última palestra vimos esse motivo da ‘separação’ como a separação do paraíso. A Bíblia relata ainda algo sobre a consequência social da separação, que também é necessária para o desenvolvimento do eu. No Antigo Testamento temos o relato da construção da Torre de Babel. O povo daquela época decidiu construir uma torre, a Torre de Babel, para atingir o céu. É uma narração imaginativa que expressa, por um lado, o desenvolvimento da técnica, de poder construir uma torre, e por outro lado o anseio de, a partir de uma técnica, atingir o mundo espiritual. Até o início da construção da torre, todos falavam o mesmo idioma, significando que havia uma compreensão de um para com o outro. Para impedir que continuassem construindo a torre, Deus diferenciou os idiomas. A partir de então, houve a formação de grupos, e cada grupo passou a falar o seu próprio idioma. A consequência foi que não se compreendiam, uns aos outros, e perderam a possibilidade de atuar conjuntamente. É o início da separação social, do caminho que nos leva a não nos compreendermos uns aos outros. Esse processo de separação social é necessário para o desenvolvimento do eu, e já estamos tão avançados nesse caminho que hoje, apesar de falarmos o mesmo idioma, temos muita dificuldade de nos compreendermos. Essa separação social também é necessária para o desenvolvimento do eu, mas como já dissemos na última palestra, a separação necessita de um contrapeso que nos possibilite formar um equilíbrio: a separação necessita da polaridade da comunhão. Vimos que a separação do mundo espiritual é necessária para que possamos nos encarnar e despertar para nossa consciência de vigília, para nossa autoconsciência. A polaridade para a consciência de vigília é o sono. Na vigília estamos desenvolvendo o nosso eu, mas separados do mundo espiritual. No sono estamos unidos com mundo espiritual, mas sem autoconsciência. Encontramos essa polaridade entre vigília e sono, de uma forma muito mais sutil, também nos relacionamentos sociais. Rudolf Steiner descreve essa polaridade como o fenômeno social arquetípico. Quando num encontro com o outro, procuramos nos unir a ele, temos a tendência de adormecer. Mas, inconscientemente, não queremos adormecer, não queremos perder a nossa autoconsciência. Assim, surge o impulso de nos mantermos despertos, e nos separamos do outro. O fenômeno social arquetípico está no oscilar, entre estarmos acordados em nós mesmos e dormindo no outro. Esse oscilar é muito sutil e inconsciente. Mas com um pouco de atenção podemos observá-lo em nossa alma. Enquanto escutamos o outro temos a tendência de formar os nossos próprios pensamentos e sentimentos. Mas, desse modo, a nossa alma fica preenchida de nós mesmos, do que nós pensamos e sentimos e, apesar de estarmos escutando o outro, estamos separados dele. Para realmente nos unirmos com o outro, temos de apenas escutá-lo, parar de formar os nossos próprios pensamentos e sentimentos. Mas, assim, perderíamos a nós mesmos. Oscilamos entre escutar o outro e formar os nossos próprios pensamentos e sentimentos, ou seja, dormimos no outro e acordamos em nós mesmos. Essa polaridade que podemos ver no encontro pessoal com o outro, vemos também na polaridade entre indivíduo e comunidade. Quanto mais olhamos exclusivamente para o desenvolvimento do nosso próprio eu, tanto mais nos tornamos antissociais e nos separamos da comunidade com os outros. Quanto mais queremos fazer parte de uma comunidade, cumprindo as nossas obrigações sociais, tanto mais corremos o risco de perdermos a nós mesmos. Para o desenvolvimento sadio do nosso eu, necessitamos também encontrar um equilíbrio entre a nossa individualidade e a vida em sociedade. Aqui também podemos ver a necessidade do desenvolvimento da sociedade. Rudolf Steiner descreve esse processo como a lei sociológica principal. Ela descreve que, no início da história da humanidade, se formaram comunidades onde o indivíduo tinha como tarefa servir ao desenvolvimento da comunidade. Sempre mais se tornará necessário que se formem comunidades onde a comunidade tenha como tarefa, servir ao desenvolvimento do indivíduo.
Estamos sempre diante do fato de que existe uma evolução, tanto do mundo, quanto em nós mesmos. Mas o que pode nos parecer ser óbvio, a ideia que existe uma evolução, nem sempre foi evidente na história da humanidade. Na realidade, a convicção ampla de que existe uma evolução é bem recente na história da humanidade, e surgiu há aproximadamente 200 anos. Foi Darwin o primeiro a formular pensamentos que conseguem explicar os processos de evolução de uma forma racional. A sua genialidade consiste em explicar a evolução, a partir de dois fenômenos básicos: a mutação por acaso e a luta pela sobrevivência. Essa compreensão da evolução, segundo Darwin, se tornou popular e determinou essencialmente o desenvolvimento das ciências naturais, mas também a própria formação da nossa sociedade. No decorrer do século XX formou-se também um darwinismo social, que considera a luta pela sobrevivência como uma necessidade para o desenvolvimento da sociedade. Essa é a concepção que está por detrás de uma sociedade capitalista. Mas, já desde o início da formação da teoria de desenvolvimento de Darwin, houve cientistas que se opuseram a ela. O principal deles foi Kropotkin que, como cientista também, observou a natureza e chegou à conclusão de que o que possibilita a evolução é o impulso do auxílio mútuo. Isso se torna muito nítido na observação dos insetos, a espécie com maior sucesso na evolução. Dentro de uma colmeia de abelhas ou de um ninho de formigas, não se observa nenhuma luta pela sobrevivência, mas, muito pelo contrário, o princípio de ajuda mútua. Essa ideia de ajuda mútua como impulso para a evolução, também teve a sua influência nos processos sociais e, pelo menos de uma forma idealista, está por detrás de uma sociedade comunista. Então, quem tem razão, Darwin ou Kropotkin? O desenvolvimento ocorre por luta pela sobrevivência ou por ajuda mútua?
Em 1905 Rudolf Steiner proferiu uma palestra sobre a paz social onde tematiza esta pergunta: quem tem razão, Darwin ou Kropotkin? A sua resposta pode nos ajudar a ir um passo à frente em nossas considerações: os dois têm razão. Mas o que podemos observar na natureza é que o impulso da ajuda mútua atua dentro de uma colmeia, dentro de um ninho, dentro de um grupo, enquanto o impulso da luta pela sobrevivência atua entre os diferentes grupos. Isso podemos observar muito facilmente, por exemplo, com formigas saúvas. Dentro de um ninho as formigas ajudam-se mutuamente. Mas quando formigas de dois grupos distintos se encontram, ocorre uma luta feroz, até a morte. Também podemos observar isso em relação às abelhas. Para entender por que isso ocorre na natureza, precisamos de um ponto de vista espiritual. Os animais não estão encarnados, cada qual com o seu eu, como nós seres humanos. Eles estão encarnados até o nível do corpo astral, mas possuem um eu comum, de grupo, que não está encarnado, que se conhece por alma de grupo. A partir do impulso dessa alma de grupo, surge o impulso da ajuda mútua dentro do grupo. Mas entre os diferentes grupos, encontramos o impulso da luta pela sobrevivência que, na realidade, é uma luta entre as almas de grupos.
Se olharmos para o desenvolvimento da humanidade, podemos encontrar também esses dois princípios. No início do desenvolvimento, nós ainda não tínhamos o nosso eu encarnado como hoje. A autoconsciência das pessoas estava muito mais ligada ao fato de pertencerem a um grupo: uma raça, um povo, uma nação, uma família. Esses grupos sociais também possuem uma alma de grupo. Na história da humanidade vemos os mesmos princípios que ocorrem na natureza: dentro de um grupo havia o mesmo ideal para impulsos sociais, de se ajudarem mutuamente. E essa ajuda mútua era determinada por leis, por autoridades. Mas sempre houve guerras entre os grupos, entre os povos. Surge então o fenômeno de que, para o desenvolvimento do eu, o indivíduo tem de se emancipar dos seus laços com o grupo consanguíneo. Hoje em dia, não é mais sadio se definir a si mesmo a partir de um relacionamento com uma raça, com um povo, com uma nação, com a família, ou mesmo com uma determinada classe social. Onde essas relações são colocadas como meta para uma sociedade, temos de reconhecer que há um impulso contrário ao desenvolvimento da individualidade. Nós desenvolvemos o nosso eu estando sempre mais encarnados em nós mesmos, nos emancipando do relacionamento com a alma de grupo. Mas surge, então, o problema social: ao nos emanciparmos da alma de grupo, perdemos o impulso da ajuda mútua, e desenvolvemos sempre mais o impulso da luta pela sobrevivência. Isso acontece em um nível muito mais profundo da nossa alma do que podemos ter consciência. Muitas vezes temos, na consciência, os ideais sociais, mas os instintos que nos levam a atuar trazem uma qualidade antissocial. Este é um processo natural do desenvolvimento da individualidade: quanto mais nos tornamos individualidades livres, tanto mais atua na sociedade o princípio da luta pela sobrevivência, e os ideais de ajuda mútua, que vivem de uma forma teórica em nossa consciência, não tem a força de formação social. Esse fenômeno social já se tornou muito claro no início do século XX, mas foi acelerado intensamente a partir da Segunda Guerra Mundial. Hoje podemos ver as duas tendências: o desenvolvimento natural da separação social e os impulsos políticos retroativos de querer formar uma sociedade a partir da consanguinidade e do nacionalismo. Temos um passado onde o indivíduo estava como que dormindo no grupo e havia uma determinada paz social, mas sem uma liberdade individual. Hoje acordamos em nós mesmos, estamos desenvolvendo a nossa liberdade individual, mas com o risco de perdermos totalmente a paz social.
Qual é o caminho que nos leva para um futuro social, uma comunhão social entre individualidades livres? Necessitamos da união com uma alma de grupo que não tenha as qualidades do passado, que não mais se define pela consanguinidade ou pela nação. O eu é o que de mais humano temos em nós, ele não pertence a uma raça, a uma família, a uma nação, a um gênero. O eu pertence à humanidade, e qualquer indivíduo pode se definir como um eu, pelo fato de pertencer à humanidade. Como individualidades livres necessitamos do relacionamento com uma alma de grupo que seja o espírito de toda humanidade. Esta é a qualidade do Cristo: Ele é o espírito da humanidade, o Representante da Humanidade. Não é possível criar diretamente a paz social, a comunhão espiritual, somente a partir de nós mesmos, apesar de termos as melhores intenções e os maiores ideais. Precisamos da ligação com um espírito de grupo comum. Para toda a humanidade, esse espírito é o Cristo. Pelas comunidades às quais pertencemos, precisamos procurar um relacionamento com um anjo que queira servir com Cristo nesse sentido, que não seja um anjo com impulsos retroativos ligados ao passado. Não é suficiente querer se ligar com um anjo, é necessário decidir com qual anjo queremos nos ligar.
Para alcançar a união com o Cristo existem dois caminhos. Um deles é o caminho individual, que podemos encontrar na frase formulada pelo apóstolo Paulo: não eu, mas Cristo em mim. O outro é o caminho social que encontramos nas palavras do Jesus Cristo: onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, estarei entre vós. Na realidade não é possível seguir um ou outro caminho: temos de seguir nos dois ao mesmo tempo, pois eles se complementam. Não é possível ter realmente um relacionamento com Cristo sem querer ter um relacionamento com o próximo. Não é possível ter um relacionamento como individualidade livre com o próximo, sem ter se encontrado a si mesmo, o seu próprio eu, o Cristo em nós. Mas quando começamos a perceber a realidade do eu em nós mesmos, começamos a nos emancipar da consanguinidade, do gênero, do nacionalismo, e podemos também, começar a perceber que essa realidade do eu existe também no outro. O caminho para o relacionamento individual com o Cristo nos leva a perceber: não eu, mas Cristo em mim. O caminho para a comunhão social nos leva a perceber: não eu, mas Cristo em ti. Nesses dois “não eu” se revela uma individualidade livre, que a partir da força do eu aprendeu a dizer não eu.
Para isso necessitamos desenvolver o interesse pelo outro, querer reconhecer como a qualidade do humano se encarna também no outro, apesar de ele ser completamente diferente de mim. Para podermos ter o interesse pelo outro, precisamos de uma paz interior, não estarmos ocupados com as nossas próprias preocupações. Mas não é possível criar a paz interior a partir de nós mesmos. Ela é um presente, uma graça, quando conseguimos dizer não eu, e desenvolvemos o interesse pelo outro. A paz depende do interesse pelo outro, ou, mais profundamente dizendo, depende do amor, um pelo outro. Precisamos desenvolver ativamente o interesse pelo outro e, então, receberemos paz em nós. E quanto mais paz tivermos, mais interesse pelo outro poderemos desenvolver e, assim, seguirmos o caminho da comunhão social.
Na última parte do Ato de Consagração do Homem, temos três orações antes da comunhão. Na primeira oração vemos descrito a fonte da comunhão social: “Estou em plena paz com o mundo, esta paz com o mundo pode estar também convosco, porque eu vo-la dou”.
João F. Torunsky
Em todo desenvolvimento podemos observar o desenvolvimento da consciência. Os diferentes seres têm consciências distintas. É difícil, para nós, compreender o que significa a consciência de uma pedra. Já para uma planta, podemos imaginar uma consciência com uma qualidade similar à nossa, quando estamos em um sono profundo, e, por assim dizer, em um estado vegetativo. Os animais têm uma consciência semelhante à nossa consciência de sonho, mesmo quando estão acordados, como se fossem sonâmbulos. Podemos sentir isso ao comparar a nossa consciência desperta, onde temos, além da qualidade da consciência de um animal, também a nossa autoconsciência. E se passamos para a esfera dos anjos, encontramos consciências sempre superiores à nossa, sempre mais abrangentes, até chegar a uma consciência plena, de tudo e de todos, o que chamamos Deus. Todo o desenvolvimento é, assim, o desenvolvimento da consciência. Mas para que ocorra esse desenvolvimento, cada ser necessita de um corpo, que esteja adequado à sua consciência. Por isso o corpo de uma pedra é diferente do corpo de uma planta ou de um animal. Nós temos o nosso corpo, que corresponde ao estado da nossa consciência. E os anjos, nas distintas hierarquias, têm seus corpos celestes, cada um de acordo com a sua consciência. Temos assim duas evoluções que ocorrem paralelamente e que são interdependentes entre si: a evolução do corpo e a evolução da consciência. Em nossa época de evolução, nós, seres humanos, estamos na etapa de desenvolvermos o nosso eu.
Assim as perguntas que podem nos interessar neste contexto são:
Quais são as metas desse desenvolvimento?
Qual o caminho para alcançar essas metas?
O que pode nos ajudar e o que pode nos dificultar nesse caminho?
E no contexto do nosso tema podemos ainda perguntar:
Qual o papel da comunhão para o desenvolvimento do nosso eu?
A meta do desenvolvimento do ser humano, aqui na Terra, é que nos tornemos individualidades livres. Podemos ver a liberdade como uma das principais metas para o desenvolvimento do nosso eu. O caminho que proporciona esse desenvolvimento nos leva, necessariamente, a um período de separação da nossa origem divina espiritual. Pois só em um espaço livre da atuação direta do mundo divino espiritual, se cria a possibilidade do ser humano desenvolver a sua própria liberdade. Podemos reconhecer, assim, a intenção divina de possibilitar o desenvolvimento do ser humano como uma individualidade livre, pois, desde o primeiro momento da criação do mundo, temos o impulso da separação: Deus cria a luz, e separa a luz das trevas. Separa as águas. Separa os mares dos continentes. Separa o ser humano em um ser masculino e um ser feminino, Adão e Eva. E, por último, separa o ser humano do paraíso, o afasta da sua origem divino espiritual. São passos necessários para criar um espaço livre, onde o ser humano possa desenvolver a sua autoconsciência e a sua liberdade. Se nós tivéssemos permanecido no paraíso, unidos com o divino, nunca teríamos tido a possibilidade de desenvolver o nosso sonho, nos desenvolvermos como individualidades livres. Nos separamos do mundo divino espiritual, desenvolvemos uma autoconsciência fundamentada na qualidade da separação, estamos a caminho de nos desenvolvermos como individualidades livres, mas correndo o perigo de, nessa liberdade, perdermos o relacionamento com a nossa origem divino espiritual e, assim, que a liberdade seja apenas separação e não, realmente, o desenvolvimento do eu, da individualidade com qualidade humana. Assim, podemos ver o caminho do nosso desenvolvimento em quatro etapas:
Iniciamos a nossa existência no estado paradisíaco, unidos com o divino espiritual, mas sem autoconsciência e liberdade.
Nos separamos do paraíso, estamos a caminho de desenvolver o nosso eu em liberdade, mas corremos o risco de perder o relacionamento com a nossa origem divino espiritual.
Temos a tarefa de procurar um novo relacionamento com o divino espiritual, mas autoconscientes e em liberdade. Isso significa desenvolver uma autoconsciência, a partir da decisão livre de querer se unir com o outro. Podemos também dizer: querer aprender a amar.
Temos como meta do desenvolvimento, nos unirmos com o divino espiritual, em liberdade, no âmbito do nosso eu.
Assim, podemos ver que a comunhão e a separação formam uma polaridade necessária ao nosso desenvolvimento. As quatro etapas também podem ser assim descritas:
Comunhão sem liberdade.
Liberdade a partir da separação.
Superação da separação, pela decisão livre de querer aprender a amar.
Comunhão em liberdade.
Podemos ver os processos de separação em três níveis dos nossos relacionamentos: no relacionamento com a natureza, no relacionamento social e no relacionamento com o mundo espiritual. E podemos ver esses três níveis também nos processos de comunhão: a comunhão substancial, a comunhão social e a comunhão espiritual. No Ato de Consagração do Homem encontramos os impulsos para fortalecer o nosso eu, no caminho de superar a separação e alcançar a comunhão nesses três âmbitos: no relacionamento com a natureza, com corpo e o sangue, pela comunhão com pão e o vinho; nos relacionamentos sociais pela comunhão na paz; no relacionamento consciente com o divino, pela comunhão espiritual por meio do pensar.
Hoje queremos abordar o primeiro nível, a comunhão substancial do pão e do vinho.
O sacramento da Eucaristia está, desde a origem do cristianismo, relacionado à comunhão com o pão e o vinho. E isso tem, evidentemente, um relacionamento com a Santa Ceia. Mas na Santa Ceia nos deparamos com um enigma. A data da Santa Ceia tem a ver com a cultura judaica, com a festa de Pessach, que se tornou a nossa festa da Páscoa. A Santa Ceia foi celebrada na primeira lua cheia, depois do solstício da primavera. Mas Pessach é celebrada com o sacrifício do cordeiro, em recordação ao êxodo do Egito. Não existia, naquela época, uma tradição judaica de celebrar Pessach com pão e vinho. O momento em que a Santa Ceia aconteceu, segue a tradição judaica, a festa de Pessach, o culto levita. Mas o modo como aconteceu, compartilhando o pão e o vinho, não tem raízes na tradição judaica. De onde vem o impulso do Jesus Cristo de celebrar Pessach com a comunhão com o pão e o vinho? No Antigo Testamento encontramos uma única referência a um culto feito com pão e vinho, em Gênesis, no capítulo 14. Toda a cultura judaica foi iniciada por Abrão. Na época em que ainda ocupavam as terras da Palestina houve uma guerra em que Ló, o filho do irmão de Abrão, foi preso após ser derrotado numa batalha. Abrão saiu com seus guerreiros para libertar o sobrinho. Ele venceu os inimigos e libertou Ló. Quando está no caminho de volta, Abrão segue primeiro até o lugar da atuação de um sacerdote rei, que servia o Deus Altíssimo: Melquisedeque. Abrão oferece o dízimo de tudo o que conquistou, recebe a comunhão com pão e vinho e a benção do Deus altíssimo. Essa é a única referência ao culto em que Melquisedeque celebrava com pão e vinho, servindo o Deus Altíssimo. A Antroposofia pode nos ajudar a compreender o significado de Melquisedeque e o culto com pão e vinho.
Na formação da cultura judaica existiram duas correntes: uma corrente exotérica voltada para o povo, fundamentada nas festas e no culto levita; e uma outra corrente, esotérica, cultivada por poucos iniciados, fundamentada no culto de Melquisedeque, na comunhão com pão e vinho. Na Santa Ceia essas duas correntes fluem em conjunto: a festa esotérica de Pessach, e o culto esotérico com pão e vinho. O rei Davi, em seu salmo 110, já cita profeticamente o Senhor como sacerdote na ordem de Melquisedeque. E no Novo Testamento, na carta aos Hebreus, encontramos, muito ressaltada, a importância de reconhecer que o Jesus Cristo é o sacerdote na ordem de Melquisedeque.
Na Santa Ceia essas duas correntes fluem juntas: a exotérica e a esotérica. Assim a Eucaristia tem um significado exotérico, voltado para o povo, e um significado esotérico, voltado àqueles que querem reconhecer a essência espiritual do culto. O significado exotérico, popular, podemos resumir numa recordação da Santa Ceia, que aconteceu na Quinta-feira Santa e no sentimento de estarmos, em nossa alma, unidos com o Cristo, quando recebemos a comunhão do pão e do vinho. Mas qual é o significado esotérico da Eucaristia, da comunhão com pão e vinho? Para encontrarmos uma resposta para essa pergunta precisamos voltar à questão: o que necessita o eu para se desenvolver? Necessitamos da separação do mundo espiritual para desenvolver autoconsciência e liberdade. Mas corremos o perigo de perder o relacionamento com a nossa origem divina. Por isso é necessário renovar continuamente o relacionamento com a nossa origem. Mas no anseio de nos religarmos com o mundo divino espiritual, corremos o risco de perder o impulso de desenvolver o nosso eu em liberdade. A solução para esse paradoxo está na sabedoria divina, ao ter estabelecido um ritmo de mudança entre esses dois estados. Num primeiro nível temos esse ritmo entre vigília e sono. Na vigília estamos autoconscientes, desenvolvendo o nosso eu em liberdade, mas separados do mundo divino espiritual. No sono estamos unidos com a nossa origem divino espiritual, mas inconscientes, sem a possibilidade de desenvolver o nosso eu. A cada dia podemos fazer experiências de aprender algo novo. A cada noite podemos nos revitalizar e digerir essas experiências. No dia seguinte podemos continuar aprendendo. Mas para podermos seguir um caminho de aprendizagem durante a nossa biografia, precisamos, no momento em que acordamos, retomar a vida que tínhamos no dia anterior. Aqui temos um grande mistério da nossa vida. A nossa autoconsciência é descontínua. Durante a noite não temos uma autoconsciência. Temos nossa autoconsciência durante a vigília e a perdemos no sono. Para podermos desenvolver o nosso eu, precisamos de uma ajuda que supere a descontinuidade, que nos possibilite nos sentirmos hoje os mesmos que éramos ontem. De outro modo, começaríamos cada dia sempre de novo, do começo, não seria possível aprender, pois aquilo que conquistamos durante o dia perderíamos durante a noite. Não seria possível se desenvolver durante a biografia. O que nos ajuda a nos sentirmos nós mesmos, quando acordamos em um novo dia é, por um lado, o nosso corpo físico. Acordamos todos os dias com o mesmo corpo. Por outro lado, o que nos ajuda é o nosso corpo etérico, pois ele é a base das nossas recordações. Acordar sempre no mesmo corpo físico e se recordar do que aconteceu no dia anterior, é o que nos ajuda a manter a consciência do nosso eu, apesar da descontinuidade da nossa autoconsciência.
Foi dito que a meta do nosso desenvolvimento aqui na Terra é desenvolver o nosso eu em liberdade. Mas um aspecto muito importante do desenvolvimento da liberdade reside no fato de que, paralelamente, necessitamos desenvolver a responsabilidade. A maturidade de um eu revela-se no impulso de assumir a responsabilidade por aquilo que se faz ou se deixa de fazer. Podemos ter hoje a liberdade de decidir fazer algo, ou não. Mas amanhã, aquilo que hoje é exercício da liberdade terá de se transformar em minha responsabilidade. Para isso, nosso relacionamento com a recordação e a consciência contínua do eu na biografia, são essenciais. Desenvolvemos esses processos durante uma vida, no ritmo de vigília e sono. Mas uma única biografia não é suficiente para desenvolvermos o nosso eu. Precisamos de várias biografias, de várias vidas. Aqui temos o segundo nível da atuação da sabedoria divina para nos ajudar no desenvolvimento do nosso eu: o ritmo entre estar encarnado na Terra e o período entre a morte de um novo nascimento. Assim como na vigília e no sono temos o ritmo entre estarmos autoconscientes para desenvolvermos o nosso eu, e estarmos unidos com a nossa origem divino espiritual, temos essa mesma qualidade, mas de uma forma ainda mais profunda, no ritmo de estarmos encarnados ou não. Se já entre a vigília e o sono temos uma descontinuidade da nossa autoconsciência, essa descontinuidade é muito mais profunda entre o tempo que estamos encarnados e o tempo que estamos no caminho entre morte de um novo nascimento. Quando acordamos, todas as manhãs, temos a ajuda de estarmos sempre no mesmo corpo para nos recordarmos do dia anterior. Isso possibilita a continuidade da consciência do nosso eu. Mas quando morremos, nosso corpo físico se decompõe no âmbito terrestre. E nosso corpo etérico se dissolve no âmbito etérico. Nascemos com um novo corpo físico e com um novo corpo etérico. Em um novo corpo, não nos sentimos os mesmos que fomos na vida passada, e não podemos dela nos recordar. O que assegura a continuidade do eu de uma encarnação para outra? O que nos ajuda a continuar com nosso desenvolvimento sem perder os frutos da vida passada? A ajuda que temos para prosseguir o desenvolvimento do nosso eu, o que forma a ponte entre duas encarnações, é o nosso carma. Nascemos com novo corpo físico e etérico. Mas nascemos com dons e deficiências que estão impregnados em nossos corpos. Os dons e as deficiências que temos em nossa constituição são as recordações da vida passada. No relacionamento com nosso corpo físico e etérico, com os nossos dons e, muito mais ainda, com as nossas deficiências, podemos desenvolver a continuidade da consciência do nosso eu entre as encarnações.
A sabedoria divina da formação do carma tem a mesma qualidade da digestão em nosso metabolismo. Pela alimentação proporcionamos a revitalização do nosso corpo etérico e a formação do nosso corpo físico. Sobre as substâncias da terra e dos processos de alimentação poderíamos dizer: nos alimentamos de pão e vinho, digerimos, e transformamos o pão em nosso corpo, o vinho em nosso sangue. Isso é como uma imagem arquetípica. A transubstanciação é uma realidade fisiológica em cada um de nós. Sobre a formação do carma como uma digestão cósmica: as experiências desta vida serão digeridas nos processos pós-morte e se transformarão no corpo físico e etérico da próxima vida. As experiências são como o pão e o vinho, que se transubstanciarão em corpo e sangue, em uma próxima vida. A formação do carma estabelece o equilíbrio entre as experiências aqui na Terra e o relacionamento com o divino espiritual, com a sabedoria cósmica.
No arquétipo do pão temos a qualidade do nosso relacionamento com a Terra, com o impulso de nos encarnarmos. No arquétipo do vinho temos a qualidade do nosso relacionamento com o mundo espiritual, com o impulso de nos excarnarmos. Necessitamos encontrar o equilíbrio entre essas duas tendências. O que nos ajuda a encontrar o equilíbrio entre matéria e espírito, entre querer desenvolver o próprio eu e almejar estar unido com a nossa origem divino espiritual, é o impulso do Cristo. Encontrar esse equilíbrio é o que nos leva a desenvolver o nosso eu de uma forma sadia. Cristo, aquele que nos ajuda a encontrar o equilíbrio, é o representante da qualidade humana em nós, é o representante da humanidade.
Quando celebramos a Eucaristia no Ato de Consagração do Homem, e recebemos a comunhão do pão e do vinho, escutamos as palavras que indicam que o sacramento é o remédio sanante, para curar a doença do pecado. Podemos nos perguntar: o que sana a doença do pecado?
No cristianismo se desenvolveu a prática da absolvição do pecado. Com certeza receber a absolvição dos nossos pecados nos faz sentir animicamente bem. Mas será que é uma ajuda para o desenvolvimento do nosso eu? Em relação a uma criança, que ainda não desenvolveu a possibilidade de assumir toda a consequência por aquilo que faz, é necessário que os pais assumam a responsabilidade e vejam, de uma forma pedagógica, o que é possível oferecer de consequência para criança. Proceder sempre assim, em relação ao jovem, ou muito mais, em relação a um adulto, não seria realmente uma ajuda, seria um empecilho para o desenvolvimento do eu. Hoje, no século XXI, o que sana a doença do pecado não é a absolvição, mas uma força que ajude o eu a assumir responsabilidade por aquilo que faz ou deixa de fazer. Durante a nossa biografia, necessitamos desse impulso de querer assumir a responsabilidade. Mas disso necessitamos ainda mais entre duas encarnações. Precisamos não apenas assumir a responsabilidade por aquilo que fizemos nesta biografia, mas também por aquilo que fizemos numa vida passada.
Quando no altar celebramos a transubstanciação do pão e do vinho em corpo e sangue do Cristo, e recebemos a comunhão, estamos recebendo uma ajuda para a formação do nosso carma futuro e, assim, uma ajuda para o desenvolvimento do nosso eu. Na antiguidade essa ajuda estava sob responsabilidade de poucos iniciados, como Melquisedeque. Na Santa Ceia, o Cristo renovou o sacramento do pão e do vinho, se unindo, ele próprio, com seu corpo e seu sangue, no impulso de ajudar o eu humano a formar um carma.
Hoje, é importante que sempre mais pessoas despertem para esse conhecimento e para o impulso de querer desenvolver o próprio eu, em liberdade e responsabilidade.
Quando recebemos a comunhão do pão e do vinho no Ato de Consagração do Homem é completamente válido que nos sentimos animicamente unidos com Cristo. Mas precisamos extirpar da nossa alma o desejo de receber uma absolvição dos nossos pecados. O que podemos receber do Cristo, através da comunhão com o pão e o vinho, é a ajuda de desenvolver a força do nosso eu para assumir a responsabilidade por tudo o que fazemos ou deixamos de fazer, tanto nesta vida como numa vida futura.
João F. Torunsky
Palestra proferida domingo, 26 de julho de 2020
Eu gostaria de compartilhar algumas reflexões e leituras que tem o propósito de lançar luz sobre a crise atual, sobretudo sob o ponto de vista moral. De antemão é preciso ressaltar que temos de ter cuidado quando tratamos do tema, pois pode trazer mal-entendidos, pois queremos tratar do tema da moral sem ser moralistas. Quero começar citando uma palestra de Rudolf Steiner em que o tema veio à baila justamente num tempo de crise mundial. Trata-se da palestra proferida em Dornach em 3 de janeiro de 1915, portanto em meio à Primeira Guerra Mundial (de 28/7/1914 a 11/11/1918) e também durante a construção do primeiro Goetheanum (1913–1923). Estamos numa situação semelhante, no sentido de uma crise mundial sem precedentes. Como naquela época, tratava-se de uma crise moral com contradições enormes e as consequências foram drásticas, mas de importantes mudanças. Por meio dela surgiram iniciativas fundamentais, como a própria construção do Goetheanum, embora tenha sido destruído depois. Mas as fundamentais inciativas que emanaram da Antroposofia foram a partir dessa crise. Creio que o fato de, durante a guerra o projeto de construção ter atraído trabalhadores voluntários de toda a Europa, é muito significativo, pois tratava-se de construir o futuro em meio à destruição. Isso pode nos inspirar a pensar que a crise atual pode também engendrar projetos de construção de futuro.
A questão que Steiner colocava naquela ocasião era até que ponto as pessoas da época estavam trabalhando na preparação do futuro evolutivo da humanidade, pois o comportamento humano como um todo pode contribuir para essa evolução ou, ao contrário, impedi-la. Há algo em nossa evolução terrena que só pode realizar-se a partir de aspirações ou ideais fundados na moralidade. O homem, como um ser terreno, deve diferenciar em que medida ele é um ser dominado por seus instintos, ou se ele é capaz de dominá-los. Essa voz da consciência nunca é algo que nos fala como um impulso, mas algo que nos fala de uma maneira puramente espiritual.
Steiner diz que “o comportamento moral ou imoral do homem pode ser visto na respiração aquosa, e a respiração aquosa é bem diferente para um homem que tende à moralidade do que o é para um homem que tende à imoralidade”. Essa forma de expiração engendra algo que lembra as entidades que ainda não existem na Terra. Nessas entidades, prepara-se o futuro da Terra. Mas, por outro lado, os atos que não estão imbuídos dessa qualidade engendram outros seres demoníacos, que ao contrário, atrasam a evolução. Vemos nas primeiras palavras do Gênesis como a respiração exalada pelos Elohim formaram o ser humano. Então, vemos que nossa moralidade terrena é realmente um poder criativo, nosso comportamento humano molda os acontecimentos na Terra e demonstram o quanto somos corresponsáveis por esses acontecimentos.
É interessante a coincidência que a pandemia atual seja transmitida justamente pelas gotículas que se propagam pelo respirar humano. Podemos dizer que a origem dessa crise é sobretudo moral. Nós vivemos as contradições de um mundo materialista que desrespeita as reais necessidades dos seres humanos: as espirituais. A imoralidade do respirar cria seres parasitários que agem sob o poder de seres luciféricos e isso tem consequências para a evolução da humanidade e para a evolução planetária. Assim como a crise da época em que Steiner escreveu essa palestra fazia com que uma parcela de pessoas se engajasse na construção do Goetheanum, como um centro de concentração de forças espirituais, a crise atual também conclama pessoas que possam compreender a urgência de nossos tempos para também se unir num processo de renovação, de construção do futuro.
Ao final daquela palestra, Steiner coloca como lema fundamental que se baseia na força do pensamento. Duas frases podem ser princípios orientadores para nós, podem ser extremamente importantes para nós: “Esforce-se para que o pensamento morra no Todo”. E a segunda: “lute para a ressurreição do destino no Eu”. Quando você faz isso, une o pensamento renascido no interior com o eu ressuscitado agindo no exterior. Olhar para a relação entre dentro e fora da maneira certa é particularmente difícil para as pessoas. Quanto mais aprendermos sobre moralidade no sentido da ciência espiritual, tanto mais estaremos aptos a agir de acordo com o que é necessário para uma direção futura no sentido evolutivo.
Essa noção do que está dentro e fora do ser humano é também tema do que Jesus fala em Marcos 7, 18-23: “Tudo o que de fora entra no homem não o pode contaminar. O que sai do homem, isso o contamina: maus pensamentos, …”. No Evangelho o contexto é a crítica de fariseus e doutores da Lei judaica que criticavam a atitude de Jesus e seus discípulos de comerem sem lavar as mãos. Sabemos que na situação da epidemia que estamos vivendo, não lavar as mãos é blasfêmia, mas fica claro que aqui se trata do tipo de contaminação mais essencial, os sentimentos e pensamentos que carregamos em nossos corações.
Buscando essa fundamentação, podemos dar uma olhada numa outra série de palestras que Rudolf Steiner proferiu na Escandinávia, de 28 a 30 de maio de 1912 (traduzida em português e editada pela Editora Antroposófica com o título “A moral Teosófica).
Ele fala do velho João Evangelista, pouco antes de morrer, falava aos seus irmãos: “Minhas crianças. Amai-vos uns aos outros”. Essas palavras só podem ser proferidas sem que sejam um chavão moralista por quem obteve o direito de proferi-las após uma vida inteira de profundas experiências espirituais e sabedoria adquirida por aquele que produziu os textos mais elevados da humanidade.
Aí há também um contexto que nos remete à nossa situação atual. Steiner explica como as invasões bárbaras provocaram tanto medo na população da Europa e de como isso teve consequência para a disseminação da lepra. Fala também de como as forças transmutadas da coragem cavaleiresca estavam presentes no jovem Francisco de Assis e de como, a partir de sua conversão milagrosa a virtude da coragem se transmuta em forças amorosas. Francisco ia aos lugares onde se mantinham os leprosos reclusos e amorosamente tratava de suas feridas, curando-os.
Aí as forças morais estavam presentes no atuar de Francisco de Assis elas permitiram que ele entrasse em contato sem medo com leprosos. Tratava-se também de cura de uma doença altamente contagiosa, mas a moralidade que não se tratava de preceitos ou normas morais, mas de ação moral permitia reverter a doença.
Segundo Steiner, a moralidade é um dom original da humanidade compartilhado por todo o ser humano e, potencialmente, todo ser humano tem a capacidade de buscar em si essas forças. Elas estavam presentes na antiguidade ainda de uma forma instintiva, mas pôde se manifestar quando do milagre do despertar do pensamento em uma forma ainda muito próxima da herança de sabedoria da antiguidade, por exemplo, na obra filosófica de Platão, quando ele fala das quatro virtudes fundamentais: sabedoria, coragem, prudência e justiça.
Hoje, quando o ser humano vive na época da alma da consciência, essas virtudes se transmutam a partir de um eu consciente em virtudes que podem se desenvolver no ser humano a partir do pensar intuitivo puro. Na segunda parte da Filosofia da Liberdade de Steiner ele fala das intuições morais e do individualismo ético. Evolução moral é não mais obedecer a preceitos externos, leis morais ou pregações bíblicas, mas intuir por si mesmo, quando se eleva a um pensar puro, como deve dirigir suas ações e como pode agir por amor à ação. O conjunto de indivíduos livres desenvolvendo-se nesse sentido é o que cria um corpus moral para a evolução da humanidade.
A antiga sabedoria, atuando mais no âmbito da alma da sensação como herança dos deuses numa época em que os seres humanos recebiam essa sabedoria na forma de inspiração pelos deuses, em sonhos e imagens místicas, se transmuta na época da alma da consciência em veracidade: a capacidade de discernir por seus próprios pensamentos morais o que é verdadeiro e noque é falso e agir de acordo com a verdade. Isso é bastante importante em nossa época em que se dissemina Fake News mais do que os vírus da atual pandemia. A virtude da coragem que se propagou na época da alma da razão e do sentimento, na época greco-romana teve seu auge na época cavalheiresca arturiana. Ela se transmuta, sobretudo pelo impulso crístico em amor, compaixão (eis o exemplo de Francisco de Assis). A virtude da prudência, capacidade de equilibrar os impulsos mais básicos do ser humano como desejo, cobiça, etc., se transmuta em arte de viver em nossa época. A harmonização dessas três virtudes em justiça é ainda tarefa para o futuro. Mas o desenvolvimento desses atributos no futuro da humanidade é o que irá formar os envoltórios do Cristo. Ele é filho de Deus, mas também filho do Homem. Mas esse ser humano do qual ele é filho não está pronto, está em processo, em vir-a-ser. É nesse sentido que o maior valor que podemos cultivar em nossa época é o sentido de corresponsabilidade do que fazemos e de como atuamos no mundo.
Pode ser que pareça ingênua a afirmação de que o momento atual nos dá a oportunidade de repensar nossas atitudes no pós pandemia e que isso deverá significar uma mudança de direção. Muito são céticos a esse respeito e creem que tudo voltará à mesma situação de antes. Mas, se consideramos que as mudanças relevantes não são o que esperamos que os outros façam, mas o que cada um de nós pode fazer, então teríamos um grande potencial de mudança no despertar do indivíduo livre que toma decisões de mudanças conscientes a partir das intuições que obtém espiritualmente. Nós nos ligamos ao Cristo e ele nos salva, a fé e o amor que ele desperta em nossos corações nos permitem ser, com ele, os salvadores do mundo.
Carlos Maranhão
Quando se fala em esquecer alguma coisa, o fato de que esquecemos algo, muitas vezes, está ligado a um sentimento negativo. Considera-se ruim esquecer algo. Podemos ter até o desejo de não esquecer nada, ter sempre tudo à disposição da nossa recordação. De fato, existem pessoas que têm um dom extraordinário para se recordar das coisas, e delas se fala que possuem uma memória fotográfica. Esse desejo de nada esquecer vive bem forte nas pessoas mais jovens. Podemos vivenciar como positivo poder recordar-se de algo ou, num caso extremo, recordar-se de tudo e, como negativo, podemos vivenciar o não poder se recordar e, também no caso extremo, nada poder se recordar. Os conceitos esquecer, recordar, memória, usamos em nosso dia a dia, de uma forma nem sempre bem definida. Por isso, para esta reflexão, é importante definir melhor o que queremos expressar com essas palavras.
Partimos do fato de que o nosso dia a dia, no estado de vigília, está repleto de experiências, percepções, impressões do mundo, tanto do mundo externo, como do nosso próprio interior. O primeiro passo denominamos percepções. Surge então a vivência. Ela surge porque nos tornamos conscientes daquilo que percebemos. O segundo passo da vivência acontece quase que imediatamente com a percepção. No momento da percepção nos conscientizamos do que estamos vivenciando. Enquanto estamos dirigindo a atenção para uma determinada percepção, ela permanece em nossa consciência, como vivência presente. Quando dirigimos nossa atenção para uma outra percepção, passamos a ter uma segunda vivência e a primeira vivência desaparece da nossa consciência. Mas ela não se perde completamente. A percepção e a vivência, que temos num determinado momento, se impregnam em nosso ser e ficam preservados no que podemos chamar de memória. Mas o que definimos aqui como memória, é algo totalmente inconsciente em nós. Para que percepções e vivências passadas voltem a estar presentes em nossa consciência, precisamos nos recordar delas. E passamos pela experiência que, em relação às vivências passadas, temos as duas possibilidades. De algumas vivências temos a possibilidade de nos recordar, mas de outras, não. No entanto, independente se podemos ou não nos recordar de algo, tudo que vivenciamos fica impregnado em nós.
Podemos então definir os seguintes passos:
“Poder se recordar” não significa “não esquecer”. Muito pelo contrário, somente podemos nos recordar daquilo que esquecemos. O que vivenciamos como um problema é que não podemos nos recordar de tudo o que esquecemos, mas somente de uma parte do que vivenciamos. Esquecemos, temporariamente, de uma parte das vivências e delas podemos nos recordar quando o queremos; outra parte esquecemos completamente e não temos mais a possibilidade de nos recordar. Na verdade, o que nos causaria um enorme problema seria nunca esquecer de nada, isto é, que tudo o que vivenciamos ficasse continuamente em nossa consciência. Isso não é possível e, mesmo quando acontece parcialmente, torna-se um grande problema, uma forma de loucura, um estado realmente doentio. Provavelmente todos nós conhecemos a situação de não conseguirmos adormecer pelo fato de não podermos esquecer um problema. Ou mesmo o problema social que surge quando não conseguimos esquecer algo de mal que alguém nos fez. A insônia, a depressão, o rancor, e outros problemas podem estar ligados ao fato de não conseguirmos esquecer.
Do ponto de vista que tratamos aqui, é importante ver que recordação não é o mesmo que memória. Recordar é a atividade de resgatar aquilo que está guardado em nossa memória. A recordação é a vivência presente de algo que vivenciamos no passado e está em nossa memória. A Antroposofia pode nos ajudar a entender como surge a memória e a recordação. O que forma a base para a nossa memória é o nosso corpo etérico. Tudo o que vivenciamos se impregna em nosso corpo etérico e fica aí guardado como memória. A força de recordar é uma força do nosso eu, principalmente quando a recordação acontece por um impulso próprio e não por meio de uma associação que surge a partir de uma vivência. O eu tem a possibilidade de, aleatoriamente, resgatar para a consciência algo que foi uma vivência passada, que está impregnado no corpo etérico como memória, e se torna assim uma vivência no presente. Quando recordamos de algo, não temos novamente a mesma vivência que tivemos no passado; é uma vivência nova, no presente; não é a vivência do passado, mas a vivência do que está na memória. Quando o eu não tem a possibilidade de resgatar para a consciência algo que está na memória, quando esquecemos completamente algo, temos o sentimento de que a vivência do passado se perdeu completamente. Mas isto não é assim, pois não perdemos nenhuma vivência que tivemos, por mais insignificante que ela possa nos parecer. Tudo fica guardado em nosso corpo etérico. Isso se evidencia quando, nos primeiros dias depois da morte, o falecido vivencia toda a sua vida num grande panorama, com todos os menores detalhes dessa vida passada se expandindo ao seu derredor, como um grande panorama. É a vivência do que se impregnou no corpo etérico como memória.
Em nosso dia a dia temos a experiência daquilo que esquecemos e depois podemos nos recordar, e a experiência daquilo que esquecemos completamente e não podemos mais nos recordar. Para a nossa vida consciente, faz uma diferença muito grande se podemos nos recordar de algo ou não. Mas como a memória está relacionada com o nosso corpo etérico, podemos nos perguntar se há uma diferença para o nosso corpo etérico, se nos recordamos ou se nos esquecemos completamente de algo. Tudo está impregnado em nosso corpo etérico. Algumas coisas ficam lá guardadas e o eu tem acesso a elas quando quer, e outras, que estão também guardadas lá, o eu não tem mais acesso. Que diferença isso faz para o nosso corpo etérico? Para responder a essa pergunta, temos de fazer um paralelo com a nossa fisiologia, com o processo da alimentação, que conhecemos muito bem. No esquecer e poder recordar estamos num nível anímico etérico. No esquecer completamente, e não poder mais recordar, estamos num nível etérico fisiológico. Quais são os passos, no processo da alimentação, que nos levam a uma nutrição e vitalização? A primeira questão é que nem todo alimento tem uma força nutritiva. Temos hoje, principalmente nos processos industriais de preparação de alimentos, ofertas de produtos que não oferecem realmente um valor nutritivo para o nosso corpo etérico. Eles preenchem o nosso estômago, mas não nos nutrem. A primeira tarefa é valorizar a qualidade nutritiva dos alimentos. O segundo passo seria a forma como preparamos uma refeição. Aqui temos de distinguir entre o que se chama de fast-food e slow-food. Para que uma refeição seja nutritiva, também é necessário prestar atenção à forma como ela é preparada: com tempo, dedicação, cuidado, estética. Quando temos então a refeição e vamos agora comer a comida que nos é servida, podemos fazê-lo em estresse, dirigindo a nossa consciência para outras coisas, ou, por outro lado, nos ligando realmente com o processo da alimentação: em gratidão, em apreciação da aparência, do cheiro, do paladar, mastigando com calma e completamente, deixando a saliva começar a transformar o alimento, ainda em nossa boca. E assim, se nos ligamos conscientemente com a refeição, chega o momento em que engolimos o alimento e então o esquecemos. No estômago, e mais ainda no intestino, o alimento se retira da nossa consciência. E é muito agradável quando perdemos o alimento da consciência. Pois não esquecer o alimento significaria ter um mal-estar ou uma dor de barriga. Em um processo saudável, nós realmente “esquecemos fisiologicamente“ o alimento. Uma vaca pode se „recordar fisiologicamente“, por algumas vezes, do pasto que comeu; ela rumina o alimento até o ponto que o esquece para sempre. Quando „esquecemos“ o alimento, ele pode inconscientemente nos nutrir, formar a base para a formação e revitalização do nosso corpo.
Se traçamos o paralelo com o processo anímico de vivenciar e esquecer, chegamos a um pensamento muito importante para a nossa vida. Aquilo que esquecemos completamente tem a tarefa de nutrir o nosso corpo etérico, assim como o alimento que esquecemos ao digerir, tem a tarefa de nutrir o nosso corpo físico. Se nós não nos esquecêssemos de nada, nosso corpo etérico ficaria totalmente desvitalizado. Nada esquecer seria como não digerir nenhum alimento, como se mantivéssemos tudo o que comemos na boca, ou engolir, mas sempre resgatar o que comemos do estômago, de novo. Vê-se que, lidar com alimentos desse modo seria uma ideia absurda, assim como seria não querer esquecer nada, assim como também querer ter a possibilidade de a qualquer momento poder se recordar de tudo que vivenciamos. O esquecer é tão importante para o nosso corpo etérico, como a alimentação e a digestão são importantes para o nosso corpo físico. Fazendo o paralelo com o processo de alimentação, vemos que vivenciamos muitas coisas no mundo. Mas quais vivências têm realmente uma força nutritiva, ou quais apenas preenchem momentaneamente a nossa alma, não sendo capazes de nos nutrir? Vivemos continuamente em estresse, sem tempo para elaborar aquilo que vivenciamos, usando técnicas que nos “ajudam” a fazer tudo cada vez mais rápido, ou tomamos o tempo para vivenciar o presente com calma, ligando-nos realmente àquilo que vivenciamos, com interesse, dedicação, apreciando o que os sentidos nos proporcionam, querendo nos ligar animicamente com o mundo e com o outro? Para nutrir a nossa alma e o nosso corpo etérico, necessitamos de tempo, atenção, dedicação, o esforço de compreender o que estamos vivenciando, de encontrar um sentido. Em nossas vivências do mundo é bom que sejamos seres ruminantes: vivenciar algo, esquecer por um tempo, e retomar de novo a nossa ligação com a vivência. Mas chega o momento, e este momento é muito importante, onde a tarefa agora é esquecer o que vivenciamos, deixar a vivência ir à níveis inconscientes em nossa alma, para podermos digerir o que vivenciamos. E o que alimenta o nosso corpo etérico é aquilo que esquecemos completamente. Não aquilo que esquecemos e depois podemos recordar, mas o que esquecemos completamente.
Olhando agora para a função do corpo etérico, vemos que ele tem a possibilidade de formar e manter as funções vitais do nosso físico, mas que também ele é a base, não só da memória, como também do nosso temperamento, costumes, idioma que falamos etc. Na sua origem, o corpo etérico foi criado com a potência de formar o ser humano como imagem e semelhança divina. Ele poderia criar o ser humano ideal, ele tem essa potência, mas não a usa em nossa encarnação. Já o fato de que nos encarnamos como homens ou mulheres, deixa uma parte da potência do corpo etérico sem atuação direta no corpo físico. Pois o corpo etérico de cada um de nós tem a possibilidade de criar um corpo, tanto masculino como feminino. Quando formamos apenas uma das formas de gênero, a potência que poderia criar a outra forma permanece, em nós, livre do corpo. Mas podemos ainda imaginar quanto de potência do corpo etérico ainda não está sendo usada hoje, pois não desenvolvemos todos os níveis do ser humano, pois para o futuro temos ainda muito a desenvolver. O corpo etérico já está predisposto a servir a esse desenvolvimento. É possível distinguir duas partes do corpo etérico: uma parte que está atuando na formação do ser humano como ele é hoje, e uma parte que é potência criadora e que ainda não está atuando, pois ainda não atingimos esse nível de desenvolvimento. Essa é a grande diferença entre o corpo etérico de uma planta e o corpo etérico do ser humano. Na planta, o corpo etérico está completamente a serviço e atuando na germinação, no crescimento, no florescer e no frutificar. O corpo etérico está completamente ligado ao processo de criação daquilo que a planta é hoje. Ele não tem uma parte livre, uma potência de algo para o futuro. Por isso uma planta é perfeita no seu modo de ser atual, mas não tem a possibilidade de se desenvolver como tem o ser humano. O nosso corpo etérico tem uma parte livre, uma parte que ainda não é atuação no corpo, uma parte que é potência do que no futuro poderia surgir. Por isso, o ser humano pode, individualmente, se desenvolver. Temos a possibilidade de desenvolvimento, graças a essa parte livre do nosso corpo etérico. Essa parte livre do nosso corpo etérico se alimenta, é nutrida daquilo que nós esquecemos completamente. O esquecer é necessário para que a nossa vida anímica não se torne doentia. O esquecer, e poder se recordar novamente, são necessários para a nossa vida no dia a dia, para que possamos cumprir as nossas tarefas. Para o nosso futuro, para o desenvolvimento do ser humano, é muito importante o esquecer completamente.
Até aqui, olhamos para o processo de vivenciar e esquecer, focando mais as vivências do mundo exterior. Poderíamos agora nos perguntar qual consequência tem esse pensamento, por exemplo, para a pedagogia. A importância do esquecer é um pensamento fundamental para a pedagogia. A pedagogia tem a tarefa de levar a criança a ter vivências. Pode ser uma vivência do mundo exterior, mas as crianças são levadas, na sala de aula, a ter vivências independentemente da natureza. Elas devem aprender alguma coisa. Mas seria um erro muito grande entender que a meta seria que a criança não esqueça aquilo que aprendeu. A meta pedagógica é exatamente o oposto: ajudar a criança a aprender algo e depois acompanhar a criança no processo de esquecer aquilo que aprendeu. Somente quando esquecemos o que aprendemos é que desenvolvemos habilidades. Todo o ensinamento que se torna uma habilidade precisa passar por um processo de esquecimento. Aquilo que não esquecemos, mantemos em nossa alma como informação, mas não se torna necessariamente uma habilidade. O reconhecimento da importância do esquecer é o que leva a Pedagogia Waldorf a formar o currículo em épocas. Entre duas épocas da mesma matéria a criança tem a possibilidade de esquecer o que aprendeu, para que, na próxima época, possa formar habilidades, ao retomar a matéria num nível mais elevado.
Na nossa relação com a natureza espiritual do ser humano, com os ideais humanos, com a moralidade e a religiosidade, o esquecer atinge o seu grande significado. Muitas vezes se sente uma certa impotência quando nos damos conta de quão pouco podemos mudar as coisas no mundo e no ser humano, a partir dos pensamentos e sentimentos espirituais, ideais, morais e religiosos. Mas quanto mais nos relacionamos com a realidade divino espiritual do mundo e do ser humano, a partir de uma ciência espiritual, da arte e da religião, os pensamentos e sentimentos que desenvolvemos ganham realmente uma força nutritiva, e podem se tornar um alimento para o nosso ser. Mas para que realmente se tornem uma nutrição, é necessário passar pelo processo do esquecimento total, de uma digestão espiritual. Precisamos nos ligar intensamente com pensamentos e sentimentos espirituais, e depois esquecer completamente o que pensamos e sentimos, para depois de um tempo nos esforçarmos novamente para nos ligarmos a eles. Precisamos de um ritmo, como fazemos com a alimentação do nosso corpo. Precisamos nos unir com conteúdos espirituais e esquecê-los, para poder digeri-los. Na alimentação do corpo nos é evidente que, a cada pão que comemos, temos de nos esforçar para mastigá-lo de uma maneira adequada. O pão que mastiguei ontem, não me poupa do trabalho de ter de mastigar o pão de hoje novamente. Quando trabalhamos conteúdos espirituais, talvez tenhamos o desejo de que o nosso trabalho se torne cada vez mais fácil, de que aquilo que trabalhamos ontem nos alivie do trabalho de nos esforçarmos hoje, novamente. Isso só é assim para os conteúdos que mantemos na memória e que podemos nos recordar. Acumulamos assim muitas informações que temos à nossa disposição e que nos dá a ilusão de que estamos nos desenvolvendo espiritualmente, cada vez mais. Acumular informações sobre o mundo divino espiritual não é um desenvolvimento espiritual. Para isso temos de esquecer completamente o que aprendemos, nutrir a parte livre do nosso corpo etérico, para poder, assim, formar habilidades. Provavelmente todos temos essa experiência do esquecimento, na procura de um caminho espiritual. Às vezes lemos um livro com um conteúdo profundo, que nos toca e nos preenche. Depois de algum tempo, por vezes anos, lemos o livro novamente e encontramos pensamentos que nos parecem completamente novos, que nos tocam ainda mais profundamente, como se nunca tivéssemos lido aquele livro. Esquecemos o que lemos na primeira vez, mas isso nos tornou hábeis para abrir ainda mais a nossa alma, quando o lemos pela segunda vez. Se não tivéssemos esquecido, somente iríamos, na segunda vez, encontrar os pensamentos que já conhecemos da primeira leitura, e não faríamos nenhum passo de desenvolvimento. Quanto mais passarmos por essa experiência, tanto mais poderemos sentir que estamos indo no caminho certo: vivenciar conteúdos espirituais que nos tocam profundamente, como se fosse a primeira vez na vida, mas que sabemos que já nos relacionamos intensamente com eles no passado, e os esquecemos completamente. Pois se nota, que o entusiasmo, a possibilidade de se ligar com o essencial de um conteúdo, é maior do que era antes.
Por fim, olhemos para uma criança quando ela nasce. O corpo etérico formou, na gestação, o nosso corpo físico, e continua, depois do nascimento, atuando intensamente nele. Mas é somente uma parte do nosso corpo etérico. A parte livre, relacionada à potência de criar o ser humano futuro, não atua nesta fase da formação do corpo físico. E ela não está sendo alimentada por aquilo que vivenciamos e esquecemos. A consciência de vigília ainda não está desperta, vivenciando e esquecendo. Mas essa parte livre do nosso corpo etérico não fica nessa fase da nossa vida sem nutrição. É um dos pensamentos mais profundos que podemos receber da ciência espiritual, saber que nessa fase do desenvolvimento, nos primeiros três anos da nossa vida, o Cristo está existencialmente unido com a criança. Podemos imaginar que a parte livre do nosso corpo etérico está, nesta fase, sendo nutrida pelo Cristo. Por sua força impregnada em nosso corpo etérico recebemos a possibilidade de nos elevarmos além do nível natural que se formou na gestação e, assim, podemos desenvolver as três qualidades essenciais humanas, do andar ereto, do falar e do pensar. O essencial não é que a criança aprenda a andar, falar e pensar. O essencial é que ela desenvolva esses dons, não como um desenvolvimento natural do corpo, mas como um aprendizado a partir de sua própria força de vontade, superando o aprisionamento do corpo pela gravidade, se desenvolvendo a si mesma. Isso só é possível porque uma parte do corpo etérico está livre da atuação no corpo, e porque está sendo alimentada e impulsionada pelo próprio Cristo. Com o desenvolvimento da consciência de vigília, o processo de nutrição da parte livre do corpo etérico é feito sempre mais por nós. Na infância e juventude temos a responsabilidade de acompanhar a criança e o jovem no aprender a nutrir o seu corpo etérico pelo esquecer. Como adultos, assumimos a responsabilidade por nós mesmos, para que possamos nos desenvolver, possamos desenvolver sempre mais as qualidades humanas em nós.
Para nos ligarmos com o Cristo, conscientemente, precisamos de pensamentos espirituais, sentimentos de amor, impulsos de atuar moralmente, que possam ligar nossa alma com Ele. Estaremos assim unidos com Ele na esfera daquilo que é possível realizar hoje. Iremos com certeza realizar algo, mas também iremos vivenciar a impotência dos nossos pensamentos, sentimentos e impulsos. Se queremos nos desenvolver como seres humanos, para que no futuro possamos realizar o humano mais intensamente do que já nos é possível hoje, precisamos reconhecer a importância do esquecer em nossa vida, a responsabilidade que temos de nutrir, em nós, aquilo que tem a potência de desenvolver habilidades futuras. O Cristo nos deu a responsabilidade de nutrirmos o nosso corpo etérico, por respeitar a nossa liberdade. Quando o fazemos Ele se une novamente conosco, como nos primeiros anos da nossa infância, e nos ajuda a nos tornarmos realmente seres humanos.
João F. Torunsky
A vivência da luz e da escuridão é algo essencial para a nossa vida. Na natureza vivenciamos a grande polaridade do dia e da noite. Vivenciamos luz durante o dia e escuridão durante a noite. Mas, na realidade, não vemos a luz. A luz é, em si, invisível para nós. O que nós vemos são as coisas, iluminadas pela luz. A luz possibilita que nós vivenciemos a natureza. Também a escuridão, nós não a vivenciamos diretamente. Quanto está tudo completamente escuro, não vemos nada. Podemos vivenciar a natureza iluminada pela luz, ou nada vivenciar, quando está tudo preenchido pela escuridão. Tanto luz, quanto escuridão, são, para nós, algo para o que normalmente não temos uma percepção. Necessitaríamos de outros órgãos de sentido para ter uma percepção direta da luz e da escuridão. O que nos dá a vivência de luz ou de escuridão, é a possibilidade de ver o mundo, ou de nada ver.
A luz e a escuridão se diferenciam, entre si, também pelo fato de que a luz irradia de um ponto, de uma fonte de luz, enquanto a escuridão não tem uma fonte, preenchendo todo o espaço, imediatamente, quando não há luz. O sol é a grande fonte de luz do nosso universo, mas também temos a possibilidade de criar uma fonte de luz, seja um fósforo, uma vela ou a luz elétrica. A escuridão preenche todo o espaço que não está iluminado, e não temos a possibilidade de acender ou apagar a escuridão. Só nos é possível acender uma luz, afastando assim a escuridão; ou se desligamos a luz e a escuridão volta a ocupar imediatamente o espaço. Isso é evidente no âmbito da natureza, mas no âmbito anímico esse fenômeno também se repete e é muito importante reconhecer que, em nossa alma, não temos a possibilidade de nos libertar da escuridão que nos preenche, a não ser que possamos criar uma luz interior. A luz que nos ilumina interiormente tem a possibilidade de afastar a escuridão. Não somos nós mesmos que podemos afastar a escuridão, o que podemos fazer é gerar luz.
Normalmente se fala da luz como algo real, mas da escuridão somente como ausência de luz. Fisicamente é difícil reconhecer a realidade da escuridão, mas podemos vivenciar animicamente, tanto luz como escuridão, como coisas opostas e reais. Mas o pensamento e o sentimento de que o espaço, tanto físico como anímico, possa realmente estar preenchido de luz ou preenchido de escuridão, pode nos levar a uma compreensão mais espiritual do mundo. Esse espaço nunca está vazio.
Resumindo, podemos dizer: não vemos nem a luz, nem a escuridão. Vemos, ou o mundo iluminado pela luz, que irradia de uma fonte, ou nada vemos, quando o espaço está preenchido pela escuridão.
Quando dizemos que vemos algo, por exemplo uma árvore, o que estamos vendo de fato? Na realidade não vemos uma árvore, mas formas e cores que reconhecemos como uma árvore. Vemos uma superfície verde, numa determinada forma, e a reconhecemos como uma folha. Uma outra, de tonalidade marrom, de forma alongada, reconhecemos como um caule, ou um galho. Outra forma, redonda e vermelha, reconhecemos como uma maçã. E assim por diante, vamos reconhecendo o todo, como uma macieira. Mas o que nós realmente vemos são distintas cores, sob distintas formas. As cores se nos mostram, ou mais claras, ou mais escuras. Se prestamos atenção, vemos que a luz e a escuridão estão mescladas nas cores. É possível aguçar a sensibilidade para perceber a luz e a escuridão em todas as cores, e ver como elas se mesclam de diferentes modos, formando diferentes cores e diferentes tonalidades. Uma superfície amarela não é idêntica a uma outra superfície amarela. Os amarelos podem ser muito diferentes entre si, mais claros ou mais escuros, com mais luz ou mais escuridão. Assim, as diferentes cores apresentam, também, uma relação particular com a luz e com a escuridão. Existem amarelos claros e amarelos mais escuros, e existem azuis-claros e azuis profundos. Mas o amarelo é, em si, diferente do azul, pois o amarelo se relaciona mais com a luz e o azul, mais com a escuridão. Os pintores desenvolvem uma possibilidade imensa de sentir as diferentes qualidades das cores e o seu relacionamento com a luz e a escuridão. Mas podemos também prestar cada vez mais atenção para o modo como luz e escuridão se mesclam e se revelam nas cores.
Uma outra vivência é o fato de que algo possa estar exposto à luz, ou envolto em sombras. O encontro da luz e da escuridão forma as cores, mas forma também as sombras. Podemos prestar atenção que, em tudo que olhamos, vemos as cores e vemos a diferenciação entre superfícies, ora mais iluminadas, ora com mais sombra. Aqui também podemos prestar atenção como a nossa vivência do mundo nos revela a atuação da luz e da escuridão, seja nas cores, ou nas sombras. Uma possibilidade muito valiosa está na observação das nuvens. Principalmente quando o céu está completamente nublado, poderíamos pensar que as nuvens são sempre cinza. A vivência prolongada do céu nublado, cinza, pode até nos deixar um pouco depressivos, cinzas em nossa própria alma. Mas é um exercício muito frutífero procurar prestar atenção nas diferentes intensidades do cinza, e descobrir que o cinza tem, muito suavemente, também uma cor. Existem cinzas mais vermelhos, outros mais azuis, e assim por diante. As cores não estão apenas em superfícies muito coloridas, mas também na sombra, no cinza. Em tudo o que vemos na natureza, podemos perceber a atuação da luz e da escuridão que se revelam como cor.
Goethe pesquisou bem as cores e reconheceu duas fontes para a sua formação, a partir da atuação da luz e da escuridão. A primeira é quando a fonte de luz está atrás da escuridão, ou seja, a escuridão está entre nós e a luz. Aí se formam as cores mais vermelhas, amarelas. Esse fenômeno conhecemos bem na vivência do nascer e do pôr do sol. Quanto mais escuridão existe na atmosfera, por exemplo pela poluição do ar, mais belos são esses momentos da aurora e o do crepúsculo. A outra fonte temos quando a escuridão surge por detrás da luz, ou seja, a luz está entre nós e a escuridão. Aí se formam as cores mais azuis. Esse fenômeno conhecemos muito bem no azul do céu. A escuridão do universo está atrás da atmosfera preenchida pela luz do sol.
Quando a luz ilumina o mundo e nos dá a possibilidade de vivenciar as cores, as sombras, toda a natureza, nós sempre estamos vivenciando o lado externo das coisas. A luz revela o lado exterior do mundo. No interior das coisas sempre temos escuridão. Por exemplo, numa pedra vemos a sua superfície externa, mas não o seu interior. Dentro dela é escuridão. Normalmente se queremos ver o que existe dentro da pedra, nós a quebramos ao meio. Mas podemos também pensar que, no momento em que a quebramos, apenas criamos uma nova superfície exterior para a pedra. Temos então duas pedras, menores que a original, e vemos, novamente, somente a superfície externa das pedras. O interior continua escuro e se ocultando a mim. A luz natural sempre nos dá a possibilidade de ver o exterior das coisas, mas não o seu interior. No interior, o mundo é escuridão. Mesmo quando o sol está irradiando no céu, e todo o mundo está iluminado, revelando-se nas mais belas cores, o mundo permanece, em seu interior, preenchido por escuridão.
A luz é uma entidade espiritual, imaterial, não visível para nós, e nos revela o lado exterior do mundo material. A escuridão também é uma entidade espiritual, também não visível, mas relacionada com o lado material do mundo, com a matéria. Todo o espaço em que vivenciados algo, onde vivenciamos matéria, está preenchido pela escuridão. A luz nos dá a possibilidade de vivenciar o lado exterior do espaço preenchido por matéria, preenchido por escuridão, se revelando em cores e sombras.
Onde podemos encontrar a origem da luz e da escuridão? Nos primeiros versículos de Gênesis vemos a descrição de que, no início, existia a escuridão. Então Deus criou a luz e separou a luz da escuridão, surgindo, assim, o dia e a noite. A escuridão existe como base para toda a criação. Depois é criada a luz, a partir da escuridão. Podemos também encontrar ajuda na Antroposofia e ver como Rudolf Steiner descreveu o início do desenvolvimento do mundo, em seu livro Ciência Oculta. Nele encontramos uma relação com a Bíblia. Pois, no início do mundo, Rudolf Steiner descreve um primeiro estado de desenvolvimento, o chamado antigo Saturno. Nesse primeiro estado, temos apenas calor e escuridão. Todo esse primeiro estado de desenvolvimento acontece na escuridão. Somente no segundo estado de desenvolvimento planetário, o chamado antigo Sol, é que surge a luz. Existe uma transição entre o estado de escuridão e a criação da luz. Mas, com a criação da luz, não se extingue a escuridão, ela continua tendo uma tarefa. Surge então a polaridade entre luz e escuridão, entre dia e noite. Podemos agora perguntar: o que, de fato, foi criado nesse estado original de escuridão, no antigo Saturno? Foi criada toda a base espiritual para o físico. Todo o físico, que nós vivenciamos como matéria, tem a sua origem, sua criação, nesse primeiro estado de desenvolvimento, na escuridão, antes da criação da luz. Isso pode nos ajudar a compreender por que aquilo que vivenciamos como matéria, a realidade física do mundo, é preenchida por escuridão. Com a criação da luz, no antigo Sol, inicia-se um caminho que leva à formação de consciência. E, na interação entre luz e escuridão, entre consciência e corporalidade, se forma a vida. Podemos encontrar esses processos em nosso dia a dia. Quando o sol nasce e preenche o mundo de luz, normalmente nós acordamos, despertamos a nossa consciência. Quando vem a noite e o espaço se preenche com escuridão, nós dormimos, perdemos a nossa consciência, mas revitalizamos o nosso corpo. A nossa ligação com a luz tem a ver com a formação da nossa consciência. A nossa ligação com a escuridão tem a ver com a formação e revitalização do nosso corpo.
Como nós vivenciamos animicamente a luz e a escuridão? A luz tem a tendência de nos despertar, de nos tornar conscientes. A escuridão tem a tendência de nos adormecer, retirar a nossa consciência. A maioria das pessoas se sente, num dia muito claro e luminoso, mais dispostas, mais alegres, preenchidas interiormente. A luz reforça o sentimento de estarmos em nós mesmos. Quando vivenciamos a natureza repleta de luz, é como se a luz iluminasse o interior da nossa alma. Pode nos surgir até mesmo o sentimento de estarmos alimentados animicamente, pela vivência do mundo iluminado pela luz. Mas a luz também pode vir a ser excessiva, e dela temos de nos proteger. Já, da escuridão, podemos ter uma vivência bem diferente. A maioria das pessoas vivencia a escuridão como algo que está nos sugando, como que nos afasta de nós mesmos. Muitas vezes, num lugar muito escuro, desconhecido, podemos ter esse sentimento de ser sugado, de nosso ser estar sendo levado, o que muitas vezes forma o medo. O sentimento de medo, perante a escuridão, tem também um aspecto natural, sentimos que estamos sendo sugados pela escuridão, correndo o risco de perdermos a nós mesmos. A luz nos ajuda a estarmos despertos, e preenchidos de luz, e nos ajuda a vivenciar o exterior do mundo. Mas a luz natural, como a vivenciamos na natureza, nos afasta da realidade espiritual. Pois, tanto na vivência subjetiva de nós mesmos, quanto na vivência objetiva do lado exterior do mundo, não chegamos a vivenciar a realidade espiritual do mundo. Já, a escuridão, nos afasta da vivência do exterior do mundo e nos conduz a questionar a nós próprios, nos levando ao limiar da nossa consciência e provocando o medo. Mas a escuridão nos aproxima de uma realidade espiritual. A luz tem a sua essência espiritual e, ela própria, é imaterial, mas nos leva à vivência de nós próprios e do lado material do mundo. A escuridão é, também, uma entidade espiritual, mas ela preenche o mundo com a qualidade física, que vivenciamos como matéria, ela nos afasta de nós mesmos e entramos num caminho totalmente inseguro, que provoca medo, mas que pode nos levar a vivenciar o interior do mundo, o espiritual.
Assim, podemos ver a origem do caminho do nosso desenvolvimento na escuridão, como uma entidade espiritual, que formou a base para o físico material. Temos então a criação da luz, que, como luz natural, nos possibilita desenvolvermos a nossa consciência e vivenciarmos o exterior do mundo material. O nosso caminho de desenvolvimento nos leva a desenvolver sempre mais a atenção para a luz, para as cores, para as sombras, para então procurar na natureza a realidade espiritual. Esta realidade espiritual é, para nós, escuridão, pois não se revela na luz natural. Aquilo que se revela pela luz como aparência do mundo não é uma realidade espiritual. Mas o que está oculto por detrás dessa aparência, que ainda está coberto pelo véu da escuridão, isso podemos pressentir. Precisamos vivenciar conscientemente o mundo e sentir a realidade espiritual que se oculta no mundo material. Quando conseguimos penetrar nessa escuridão espiritual, que está por detrás da luminosidade natural, podemos seguir o caminho para encontra a luz espiritual na escuridão. Partimos inconscientes de uma escuridão espiritual, desenvolvemos uma consciência a partir da luz natural, encontramos agora conscientemente, na luz natural, a escuridão espiritual, para então encontrar conscientemente, na escuridão espiritual, a luz espiritual.
Em nossa vida fazemos esse mesmo caminho. Durante a gravidez onde, no calor e na escuridão do ventre materno, nosso corpo físico é formado. É a qualidade do estado do antigo Saturno. No momento do parto, a criança é dada à luz. Entramos agora na esfera da luz natural e seguimos o caminho de desenvolver a nossa consciência. Mas, diariamente, voltamos a nos relacionar inconscientemente com a escuridão, durante a noite, no sono, para revitalizar o nosso corpo. Nessa polaridade de luz e escuridão, de dia e noite, de vigília e sono, trilhamos o nosso caminho de desenvolvimento. E temos, como meta, desenvolver a consciência no âmbito da luz natural, para podermos ter uma consciência no âmbito da escuridão espiritual e encontrar, assim, a luz espiritual. O que nos possibilita esse desenvolvimento é a polaridade entre luz e escuridão, é o ritmo entre vigília e sono, o equilíbrio entre matéria e espírito. Não vivemos somente na luz ou na escuridão. Vivemos num mundo de cores, tanto na natureza quanto em nossa própria alma. Perdemos a qualidade humana quando perdemos o equilíbrio, e ligamo-nos demais com a luz ou com a escuridão. Pois viver demais no âmbito da luz nos leva ao perigo luciférico, que quer nos levar a uma realidade espiritual, imaterial, mas que nos deixa vivenciar apenas a nós próprios, e somente a aparência do mundo. Já viver demais no âmbito da escuridão, nos leva ao perigo arimânico, de perder a nossa consciência individual e nos ligarmos existencialmente com a matéria, sem despertar para a realidade espiritual. A qualidade do equilíbrio entre luz e escuridão, a qualidade das cores, é a qualidade do Cristo.
João F. Torunsky
O título desta palestra é uma citação do Ato de Consagração do Homem. Aqueles que conhecem o culto da Comunidade de Cristãos poderão se recordar que, no momento da comunhão do sacerdote, quando ele próprio comunga com o vinho, ele pronuncia estas palavras, que o sangue do Cristo fortaleça a nossa alma para que ela não venha a morrer. Mas mesmo vivenciando o Ato de Consagração e escutando várias vezes essas palavras, nem sempre se forma uma consciência tão precisa do que elas podem significar. Quando prestamos atenção nessas palavras, surge a pergunta se a alma realmente pode morrer. Que o nosso corpo morre, nos é evidente. Mas a nossa alma, pode ela morrer? E quando aqui nos referimos à alma, não se trata somente dos aspectos anímicos do nosso ser, se trata da nossa individualidade, do cerne do nosso ser, do que chamamos de nosso eu. Pode o nosso eu morrer?
No Novo Testamento esta ideia, de que a alma pode morrer, está descrita muito forte no Apocalipse, nos capítulos 20 e 21. É descrito que a terra e o céu não existem mais, e que é criada uma nova existência: a Nova Jerusalém. Esse momento é chamado de Juízo Final, quando acontece uma decisão sobre aquelas almas que poderão habitar a Nova Jerusalém, e aquelas que, não podendo, sofrerão a morte da alma. O critério dessa decisão consiste em que o nosso nome esteja ou não escrito no Livro da Vida. Durante a evolução da humanidade temos a possibilidade de que o nosso nome seja escrito nesse livro e, caso isso não aconteça, haverá uma consequência, a segunda morte, a morte da alma. Muito resumidamente podemos descrever assim a imaginação que João nos deu em seu Apocalipse, com suas imagens muito fortes. O motivo da morte da alma é uma ideia essencial no cristianismo. Mas, no decorrer da história, essa ideia assumiu um papel muito problemático. A ideia do Juízo Final e da morte da alma, foi usada para, de um lado, criar medo nas pessoas e, de outro, oferecer a salvação por meio da instituição religiosa, muitas vezes com o propósito de vender essa salvação. Infelizmente esse método de vincular as pessoas a um movimento religioso não faz parte somente da história passada do cristianismo, mas algo que, ainda hoje, é usado por vários movimentos religiosos que se autodenominam cristãos, mas que, em realidade, não o são. Pois atuar pelo medo, subtraindo a liberdade e, às vezes, também o dinheiro das pessoas, não é, de maneira alguma, a forma de atuação do Cristo. Para tentar entender o que pode significar a morte da alma, temos de superar esses medos criados no cristianismo. Todos nós estamos nos desenvolvendo, desenvolvendo a nossa alma, o nosso eu. A meta é nos tornarmos individualidades livres. E o medo nunca será um motivo que possa orientar uma individualidade livre. Mas, para ser livre, é muito importante ter a consciência das consequências que resultam das nossas decisões e o impulso de assumir a responsabilidade por essas consequências. Por isso, é muito importante, para o desenvolvimento do nosso eu, ter uma consciência sobre a consequência desse desenvolvimento seguir uma determinada direção. Pela Antroposofia temos a ajuda para reconhecer que o ser humano é um ser espiritual, que temos uma origem divina e que, em nossa origem, temos uma existência atemporal. Aquilo que normalmente se chama de eterno não deveria ser entendido como um tempo de duração infinita, mas como uma realidade que não pertence ao âmbito do tempo, portanto, atemporal. E, mesmo reconhecendo a origem divino espiritual e atemporal do nosso ser, a Antroposofia também reconhece o perigo da morte da alma, da morte do nosso eu. Isso ocorre porque o nosso eu não é algo que possuímos como, por exemplo, o nosso corpo. A origem divino espiritual do nosso eu é como uma potência, a possibilidade de que algo seja criado. É como uma semente, que não é ainda a planta, mas tem em si a potência de germinar, crescer e se tornar uma planta. Existe a possibilidade de que da semente cresça uma planta, mas existe também a possibilidade de que da semente nada cresça. Como potência, somos seres divinos espirituais, atemporais, mas não ainda como realidade.
A ciência espiritual relata o desenvolvimento do mundo e do ser humano em diversas etapas, diversos estados planetários, chamados de antigo Saturno, antigo Sol, antiga Lua, a nossa Terra atual e um estado futuro chamado Júpiter. Na Bíblia encontramos a descrição do desenvolvimento do mundo e do ser humano, começando pela criação e o paraíso, passando pela existência terrena que temos e chegando até a criação de um novo céu e uma nova terra, a Nova Jerusalém. Prestando atenção à descrição da Nova Jerusalém podemos ver que ela é, por um lado, uma metamorfose do Paraíso, com a árvore da vida e a do conhecimento, com as quatro correntes de água, e, por outro lado, é uma espiritualização dos elementos terrestres. Existe um relacionamento muito profundo entre a descrição da Bíblia e a descrição que encontramos na Antroposofia, pois ambas relatam a mesma verdade, de modo distinto. Aquilo que na Bíblia é descrito como o final da Terra e a criação da Nova Jerusalém, na Antroposofia encontramos como a descrição da transição da forma de existência da nossa Terra para uma nova forma chamada Júpiter. Nas duas descrições temos uma transição de uma existência material, temporal, para uma existência espiritual, atemporal. Surgirá então a consequência de ter sido possível ou não, durante o desenvolvimento na Terra, de se ter formado uma existência espiritual atemporal. Poderíamos ainda dizer que, nas palavras do Apocalipse, terá sido possível escrever o nosso nome no livro da vida, para poder habitar a Nova Jerusalém. O Juízo Final não é uma recompensa ou uma punição, mas a consequência do nosso desenvolvimento, a colheita dos frutos de uma existência.
Como podemos compreender o significado da morte da alma? Nossa experiência com a morte está relacionada ao nosso corpo físico. Aqui é mais fácil vivenciar o que é a morte. As substâncias que preenchem o nosso corpo, e que vivenciamos como matéria, são substâncias da natureza, do reino mineral. Em si, elas não têm vida. Fora do nosso corpo, as substâncias se comportam como qualquer elemento mineral sem vida, mas, dentro do nosso corpo, as substâncias são elevadas a processos de uma vida biológica e tomam formas completamente distintas dos minerais encontrados na natureza. O nosso corpo físico tem uma vida porque as substâncias são elevadas de um nível mineral para um nível de uma vida biológica. Isso é possível porque em nosso corpo físico atuam forças mais elevadas que aquelas encontradas nele, forças que chamamos de forças vitais ou etéricas. As forças etéricas elevam o corpo físico ao nível de uma vida biológica e, no momento que essas forças vitais param de atuar, o chamado corpo etérico se desliga do corpo físico, e este morre, ou seja, volta a ser um aglomerado de substâncias minerais. O sentido da existência do nosso corpo físico é o fato de que ele se coloca à disposição para que um nível superior, o nível etérico, atue nele e assim possa se formar uma vida biológica. Em si próprio e só para si próprio, um corpo físico não tem um sentido. Seu sentido é colocar-se à disposição, servir ao corpo etérico, para que as forças vitais possam nele atuar. Se olhamos para o nível superior, as forças vitais, podemos ver que esse corpo etérico tem a possibilidade de atuar no físico e criar essa vida biológica. Mas agora podemos nos perguntar qual é o sentido de existir essa vida biológica. Em nossa existência, a nossa vida biológica também não tem um sentido em si própria. O sentido do nosso corpo etérico é formar uma vida biológica que possibilite a nossa vida anímica. Temos o nosso corpo físico, que serve ao corpo etérico, para formar uma vida biológica. E temos o corpo etérico, que forma a vida biológica, e serve à nossa alma, para que possamos formar uma vida anímica, nossos pensamentos, sentimentos, força de vontade, nossa consciência. Na realidade, o corpo etérico já não consegue formar essa vida biológica somente a partir de si próprio. Ele atua na matéria, no físico, formando os processos vitais, mas necessita também, para o seu trabalho, de uma orientação espiritual. Ele é como o pedreiro que constrói uma casa, mas necessita da orientação de um arquiteto. O corpo etérico necessita das imagens arquetípicas do ser humano, que orientam como ele pode atuar. Essas orientações, essas imagens arquetípicas do ser humano, o corpo etérico tem de receber de um nível superior a ele; ele as recebe, assim, do que chamamos nosso corpo astral, que é a base da nossa vida anímica. Se o corpo etérico não tivesse essa orientação do corpo astral, ele perderia a possibilidade de atuar. Aquilo que pode parecer abstrato, é uma experiência que fazemos todos os dias. O sentido do corpo físico está em que o corpo etérico possa nele atuar e formar a vida biológica. O sentido do corpo etérico é formar essa vida biológica para que nós, com a nossa alma, possamos nos encarnar nesse corpo vivo, formar a nossa consciência e desenvolver a nossa individualidade. Não apenas desenvolvermos a nossa consciência, mas, principalmente, a nossa autoconsciência. Podemos nos desenvolver como individualidades livres ao encarnar em nosso corpo, nos separando da realidade divino-espiritual e nos ligando com a realidade da Terra, da matéria. E surge aqui o problema que nos aproxima do nosso tema. Quanto mais formamos uma autoconsciência, a consciência do nosso eu, quanto mais nós direcionamos a nossa consciência para a natureza, para as tarefas do nosso dia a dia, tanto mais nós perdemos inconscientemente o relacionamento com as imagens arquetípicas divino espirituais do ser humano, e perdemos a possibilidade de dar a orientação para o nosso corpo etérico. O corpo etérico vai perdendo, assim, a possibilidade de atuar sobre o corpo físico. Mas o corpo etérico tem um truque. Ele forma na alma o sentimento de cansaço. O cansaço não ocorre porque gastamos a energia do nosso corpo físico, mas surge pelo anseio do corpo etérico por uma orientação espiritual. Ele perde essa orientação porque a nossa alma se preenche de conteúdos do mundo material. Com o cansaço, o corpo etérico consegue adormecer a nossa consciência e, no sono, nos unimos novamente com as imagens arquetípicas divinos espirituais do ser humano, damos novamente a orientação ao corpo etérico e acordamos vitalizados.
Seguindo um passo adiante, podemos agora nos perguntar: qual é o sentido da formação dessa vida anímica, da nossa consciência e da nossa autoconsciência? O sentido está em podermos desenvolver o nosso eu, formar as circunstâncias nas quais essa semente divino espiritual possa germinar e crescer em nós. Nos deparamos agora como o que, à primeira vista, possa parecer um paradoxo: o nosso eu se desenvolve formando uma consciência própria, se tornando uma individualidade livre, se separando do mundo espiritual e se ligando com o mundo material. Mas, quanto mais nos ligamos com o mundo material, tanto mais nos ligamos com os processos desvitalizantes, com os processos que levam à morte do corpo físico. Pois podemos ver que, no sono, nos vitalizamos, mas durante a nossa biografia, a balança entre vitalização no sono e desvitalização na vigília, não mantém o equilíbrio, pois as forças desvitalizantes vencem e o corpo morre. Assim, no decorrer do tempo, vamos desenvolvendo o nosso eu, mas, ao mesmo tempo, nos unimos, sempre mais, com as forças que nos levam à morte, que atuam somente na esfera terrestre temporal. Aqui, se torna muito importante entender a natureza do eu, como já mencionamos no início. O eu não é uma realidade como, por exemplo, o nosso corpo. O eu é uma potência de que algo possa ser criado. No seu livro Teosofia, Rudolf Steiner descreve o eu como uma entidade que recebe a sua essência e o seu significado daquilo com o que se liga. Essa descrição tem uma consequência muito profunda. Ela expressa que o eu não tem, em si, uma essência e um significado, ele os recebe daquilo com o que se liga. Assim, se desenvolvemos o nosso eu nos separando do mundo divino-espiritual, e nos ligando com o mundo terrestre temporal, o nosso eu adquire uma essência e um significado terrestre temporal. Ou seja, não terá uma essência e um significado espiritual atemporal. O que aqui pode parecer abstrato, temos como experiência em nossa vida. O que me preenche interiormente, o que dá significado para a minha vida? É aquilo com o qual eu desenvolvo um interesse de me ligar, de me unir. Muitas vezes passamos pela experiência de como é difícil conversar com pessoas que não tem interesse para o tema sobre o qual queremos falar ou, de outro lado, desejam falar sobre um tema para o qual nós não temos interesse. É sempre possível falar sobre algo que não conhecemos. Mas é necessário que tenhamos interesse em conhecer esse algo novo. Mas, quando falta o interesse de se unir com algo que provém do outro, torna-se impossível ter um encontro com o eu do outro. Querer se unir com algo, abre o eu para receber uma essência e um significado. Mas cada um deveria ser livre para decidir com o que quer ou não se unir. Não é sempre que, em nossos relacionamentos sociais, conseguimos realmente deixar o outro decidir em liberdade aquilo com que ele quer, ou não, se unir. Mas o mundo divino-espiritual, para que possamos desenvolver o nosso eu, nos deixa sempre mais livres para que possamos decidir, em liberdade, com o que queremos nos unir, qual a essência e significado que queremos dar para o nosso eu.
O nosso corpo possibilita a vida biológica, a nossa vida biológica possibilita a vida anímica, a nossa vida anímica possibilita a autoconsciência, a consciência do nosso eu, e o nosso eu ganha a liberdade de poder escolher aquilo com que quer se unir. Qual a essência e o significado que nós mesmos queremos nos dar a partir daquilo com o que nos unimos? Agora podemos começar a pensar quais são as consequências para o desenvolvimento final do ser humano, dependendo da sua escolha. Poderíamos, hipoteticamente, imaginar, qual seria a consequência, se uma pessoa, no decorrer de todas as suas encarnações, se unisse, sempre mais, apenas com a realidade temporal da Terra, até chegar a preencher-se completamente dessa realidade? A consequência seria que a essência e o significado do nosso eu seria temporal. Todos nós nos unimos, em nosso dia a dia, com muitas coisas que só tem um significado temporal. Mas, se não existisse em nossa vida nada além desses conteúdos temporais, isso teria uma consequência terrível. No momento em que a Terra passar de seu atual estado temporal para um futuro estado espiritual atemporal, o nosso eu careceria de qualquer essência e significado, não teríamos uma existência. Não poderíamos, assim, ter uma existência no futuro Júpiter, ou habitar a Nova Jerusalém. É aquilo que, no cristianismo, se chamou de segunda morte, a morte da alma. Ainda teremos muitas encarnações no futuro, mas vivemos hoje numa fase decisiva da nossa evolução. Com o desenvolvimento de uma consciência materialista, a alma corre o perigo de ganhar uma direção no seu desenvolvimento que a leve, sempre mais, a ter interesse de se unir apenas à realidade terrestre temporal e, aquilo que existe de vida religiosa espiritual corre o perigo de perder a força de direcionar o eu para uma realidade espiritual atemporal.
Precisamos encontrar o equilíbrio de nos ligarmos com a nossa encarnação, com a realidade terrestre, para podermos desenvolver a nossa individualidade, desenvolver a nossa liberdade e, ao mesmo tempo, procurar onde é possível nos unirmos com realidade atemporais, que tenham uma existência espiritual. Podemos fazer isso a partir do nosso pensar, nos unindo com ideais da humanidade, que tenham uma qualidade atemporal, e também desenvolvendo um modo de pensar que não seja apenas causal e temporal. Podemos tentar desenvolver um sentir que não seja apenas um sentir de si próprio, mas que o sentir seja realmente uma possibilidade de me unir com a natureza e com os outros. Não somente perceber a aparência temporal, mas sentir a realidade atemporal que está se revelando na natureza e no outro. E, o mais importante, se podemos desenvolver um querer que anseia por servir essa realidade espiritual atemporal que procuro reconhecer e sentir.
O nosso eu foi semeado no passado por Deus, como uma semente em nossa alma. Mas hoje estamos numa etapa da evolução, na qual essa semente já germinou, se enraizou e cresceu na realidade terrestre. Hoje o nosso eu é como uma flor que está desabrochando. Este é um ponto decisivo no desenvolvimento de uma planta, e estamos num ponto decisivo do desenvolvimento do nosso eu. Pois, se uma flor dará frutos, ou se murchará e morrer sem dar frutos, depende se ela será fecundada. A flor precisa se abrir para um ser superior, no caso um inseto, e se oferecer para ser fecundada. Então ela poderá formar um fruto. Estamos num ponto da evolução da humanidade em que o nosso eu poderá ser fecundado, se abrindo, tendo interesse, querendo se unir com os seres divinos espirituais. Mas corremos o risco de ficarmos fechados em nós mesmos, em nosso egoísmo, nos ligando apenas com a realidade terrestre temporal. O sentido do nosso corpo é servir à vida biológica. O sentido do nosso corpo etérico é servir à nossa vida anímica. O sentido do nosso corpo astral é servir ao nosso eu. Mas qual é o sentido de desenvolvermos um eu em liberdade? O nosso eu recebe uma essência e um significado divino espiritual atemporal se, em liberdade, decidimos querer servir aos ideais da humanidade, querer servir ao desenvolvimento da humanidade, querer servir ao mundo, de modo que o nosso dia a dia se torne sempre mais humano, na consciência da realidade espiritual que se revela em toda a natureza, que se revela em cada um de nós.
João F. Torunsky
Na Comunidade de Cristãos, costumamos tratar das festas sob o ponto de vista da vivência de Cristo no ritmo anual. Além da visão comum da festa, como costumamos vivenciá-la no Brasil, de uma forma bastante extrovertida, com muita alegria, danças, comidas típicas, fogueira. Tudo isso é muito bom e fará falta neste ano, por conta da situação excepcional em que estamos vivendo. Mas hoje eu quero enfatizar o significado interior da festa e sua relação com o ritmo anual do Cristo. Além disso quero estabelecer uma relação entre os temas principais de João Batista e nossa situação atual, bem como nossa preparação de caminho para o futuro pós-pandemia.
Os grandes eventos da história da humanidade foram marcados por algum precursor. Eram grandes iniciados que traziam como tarefa a preparação de caminho para o grande evento. Eles encarnavam o que era necessário para transmitir às pessoas as bases para o que deveria ser renovado na humanidade. Se consideramos que a principal inflexão de direção na história da humanidade foi a vinda do Cristo e o Mistério de Gólgota, então podemos dizer que João Batista, foi o principal precursor entre os precursores. Trata-se do precursor arquetípico, por assim dizer. Sua missão já estava presente antes mesmo de nascer. Lembremos do encontro de Maria e sua prima Isabel em que esta se ilumina do Espírito Santo quando o feto de João Batista se move em sua barriga ao receber Maria grávida de Jesus. Depois do nascimento eles vão se separar. João, cedo na vida adulta se retira para a vida no deserto,onde tem contato com os essênios. Sua preparação iniciática é feita sobretudo no deserto. “Conforme está escrito no profeta Isaías: Eis que envio ante a tua face o meu mensageiro, que há de preparar o teu caminho; voz do que clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas; assim apareceu João, o Batista, no deserto, pregando o batismo de arrependimento para remissão dos pecados”. (Marcos 1, 2-4). A ideia de deserto é bastante comum entre os grandes iniciados. No caso do Batista, é aquele que tem uma relação muito íntima com a natureza. Ele é essa figura do homem primordial, veste-se com peles de camelo, alimenta-se de ervas, mel silvestre e gafanhotos. Se tomarmos o termo original em grego para deserto “Eremos”, temos a mesma raiz da palavra eremita. Trata-se do âmbito da solidão, do deserto da alma. Trata-se de uma preparação distante do meio social comum. Eis o aspecto dos grandes iniciados que necessitam de uma preparação especial para sua tarefa futura, mesmo quando ainda nao tem uma clareza de qual será tal missão. Assim foi com Paulo antes de iniciar o seu apostolado. Nos conhecemos hoje o que é solidão, porque nos desenvolvemos para uma individuação que não estava disponível para a maioria das pessoas antigamente. A solidão de João não tinha uma conotação negativa, mas uma necessidade pelo clamor do processo iniciático.
Outro elemento importante é o termo “batismo de arrependimento”. Nos não gostamos do termo arrependimento por ter uma conotação negativa de culpa, remete aos nossos erros do passados dos quais devemos nos arrepender, e também da ideia de dever que aparentemente tolhe nosso sentimento de liberdade. Mas se buscamos também o termo original grego para essa palavra: “Metanoia”, que significa, “para além do pensar”, uma transformação de nossa concepção ou postura na vida, baseada na forma de pensar, então a ideia toma uma nova dimensão, pois marca uma possível transformação fundamental do indivíduo. Esse clamor de João, quando ele volta do deserto e se reúne novamente com a sociedade, com os judeus e começa a batizar, é um convite às pessoas para que se convertam, para que sigam um caminho novo e se preparem para a vinda do Messias.
Quanto ao batismo, temos o fato de João ter batizado o próprio Jesus no momento em que este recebe o Cristo. Sabemos pela Antroposofia que o Cristo só viveu no corpo de Jesus por três anos – os seus últimos três anos de vida, pois esse era o período em que um ser espiritual tão elevado poderia permanecer no corpo de um ser humano na Terra. João ainda não sabia o significado dessa vinda, pois se recusou a princípio a fazer o batismo, mas Jesus insistiu, pois foi a partir desse momento que desceu o Espírito Santo e Jesus recebeu o Cristo. Mas antes disso João dizia: “Eu batizo com água. Virá ainda quele que batizará com o fogo ou o Espírito Santo”. É importante distinguir. Qual é a diferença entre o batismo com água que João praticava e o novo batismo com o fogo, que Jesus trará. O que era esse batismo com água? Ele tinha essa força de ligação com a tradição em mais de um sentido, não só na sua ligação com a Terra como homem primordial, mas também com sua relação com a iniciação antiga, tal como era praticada em tempos desde as épocas culturais anteriores nas escolas de mistério, em que o hierofante colocava o discípulo por três dias numa condição de quase morte, porque ali havia o que acontece com o ser humano quando ele morre e, a partir da morte, há uma separação do corpo etérico do corpo físico e então ele tem uma visão panorâmica de sua vida pregressa. O iniciado no seu processo de quase morte tinha então uma dimensão do que fora sua vida até aquele momento e renova seu propósito quanto ao futuro. O batismo de João, de certo modo reproduzia essa vivência ao mergulhar o batizando em água até seu quase afogamento. Isso provocava algo semelhante à iniciação antiga, pois o batizando como que renascia da água para a nova vida: eis o batismo da metanoia. É curioso que haja relatos hoje em dia nas chamadas vivências de quase morte que nos dão uma ideia desse tipo de vivência. Eu li recentemente um desses relatos que trouxe uma metáfora muito interessante. Trata-se do livro “Dying to be Me” de Anita Moorjani. A autora relata sua vivência de quase morte quando, após quatro anos de tratamento de câncer, se encontrava em estado terminal em que os médicos consideravam sua morte iminente. Ela entrou em estado de coma, mas manteve a memória dessa experiência. Tratava-se de um estado em que tinha plena consciência de tudo que se passava ao seu redor, sem limitação no espaço e tempo. A metáfora que ela usa foi a de que sua vida até então fora como se vivesse num grande armazém totalmente escuro, em que tinha à disposição somente uma pequena lanterna. A luz dessa lanterna só lhe permitia reconhecer as coisas num foco muito pequeno e pontualmente. Na vivência no estado de quase morte, ao contrário, vivenciava o armazém totalmente iluminado e assim podia perceber que ele era muito mais amplo e rico do que jamais imaginara. Ele sentia ao mesmo tempo uma grande alegria e compreendeu pela primeira vez, não só o porquê de sua doença, mas também que precisava retornar e tinha certeza que podia se curar. Ela retornou e, de fato, em pouco tempo recuperou-se totalmente da doença. Ela voltou ao armazém escuro, mas desta vez sabia da realidade por trás das sombras e, principalmente, que sua missão era transmitir aos demais sobre essa realidade. Isso nos lembra do batismo com água de João Batista, mas trata-se de uma vivência excepcional em nossos dias. A nova iniciação é bem distinta por que, em primeiro lugar o ser humano só terá essa separação do corpo etérico quando ele de fato morre. O que se espera do novo batismo em Cristo é que a nova iniciação cristã seja uma vivência a partir do Eu. Essa mudança é potencial, pois dependerá do quanto o ser humano individual estabelece uma relação com o Cristo e, a partir da autoconsciência, desperta para Eu, que está intimamente ligado com o sangue. Daí o fogo. Essa chama do Eu que desperta para o Cristo. O Batista como preparador de caminho anunciava o que viria a ser o batismo com o fogo, pois aquele que viria, o Jesus Cristo traria ao ser humano o que lhe permitiria desenvolver esse Eu, a autoconsciência. A vivência de Nicodemos no Evangelho de João também alude a isso ao perguntar a Jesus sobre o que é necessário para alcançar a vida eterna e este lhe responde que é necessário nascer da água e do espírito. Isso nos indica que nascer pela água ainda é necessário, pois aponta para nossa condição natural na Terra, mas não basta porque a partir do momento que temos a noção de termos um Eu, uma interioridade espiritual que é a semente para o Eu Sou trazida pelo Cristo, despertamos para a possibilidade de transformação consciente, ou seja em liberdade.
Um outro elemento tem haver com o fato de os discípulos de João, incitando-o a uma disputa com Jesus, lhe falavam que aquele a quem ele havia batizado, batizava batizava mais do que ele junto com seus discípulos do outro lado do Rio Jordão. João responde que ele deve diminuir e Jesus Cristo deve crescer. Se pensarmos em sua morte trágica e prematura, percebemos que sua missão já havia sido cumprida, mas isso não significa que sua atuação havia terminado. Lembremos de uma das imagens de Mathias Grünewald no Retábulo de Eisenheim, em que aparecem simultaneamente as figuras de João Batista e João Evangelista. Realisticamente isso era impossível, pois o Batista já havia sido decapitado. Grünewald teve a inspiração ou percepção espiritual de que O Batista estava ali espiritualmente presente e que, de alguma forma, acompanhava também os caminhos do Evangelista. Não foi casual que Lázaro após sua iniciação pelo Cristo tomasse o nome de João quando passa a ser o discípulo que Jesus amou. Assim, temos o fenômeno de que mesmo após sua morte, João continua sua missão, mas agora sob o efeito da iniciação Cristã. Isso nos serve de exemplo de como nós também podemos nos tornar precursores de nós mesmos, na medida em que algo em nós deve diminuir para dar lugar ao nosso Eu superior, ou em outras palavras, dar lugar ao Cristo em nós.
O João Batista foi o último dos profetas. No Antigo Testamento há menção a vários profetas que anunciavam a vinda do Cristo. Por isso João Batista foi o primeiro e o último profeta do Novo Testamento. Isso para nós é muito interessante, pois nós hoje não precisamos mais de profetas. Na verdade podemos dizer que nós somos profetas de nós mesmos.
Nós podemos ver hoje, quando vivenciamos a época de João, não só nas festas externas onde vemos o fogo fora e ele remete ao nosso fogo interior que queremos desenvolver nessa elevação do eu menor para o nosso Eu maior. Voltamos a sentir esse espelhamento entre a festa de João e a festa do Natal. No ritmo anual, quando nos aproximamos do Natal, nos aproximamos da época em que o céu está mais próximo da Terra: a inspiração cósmica do Cristo nas Noites Santas, que nos proporcionam forças que nos revigoram. Elas continuam e vão se arrefecendo até a época da Ascensão. A partir da festa de João, no ritmo anual do Cristo, temos ao contrário uma expiração, e aí precisamos de buscar elementos para nos fortalecer durante o seguinte semestre que seria o grande Advento em comparação ao pequeno Advento a partir de Novembro. Ele é o período da grande espera ou período de preparação de caminho para a vinda da época de inspiração nas próximas Noites Santas ente o Natal e a Epifania, período tão forte e tão rico. Assim temos a possibilidade, a oportunidade de tomar consciência de que, nessa respiração anual do Cristo, precisamos nos preparar para o nascimento do Cristo em nós. Nós temos também nossa preparação interior. O que devemos diminuir em nós, para abrir espaço para a atuação do Cristo em mim? Por isso podemos ser profetas de nós mesmos. Essa força espiritual que nos alerta – a mudança de perspectiva – a nova Metanoia.
Essa ideia para nós hoje tem um significado bastante relevante. Estamos vivendo uma época fundamental na história da humanidade, pois esta crise da Pandemia, aponta para um despertar da Consciência. O que provocou essa crise foi uma série de contradições: a usurpação da natureza, a visão materialista de mundo, o conflito e as diferenças de renda e de oportunidade entre as pessoas, o consumismo por um lado e a fome por outro. Tudo isso são sintomas de um mundo em convulsão que precisa mudar. O mundo pós-pandemia não pode ser mais igual ao mundo de antes, pois se as contradições continuarem, teremos novas crises e talvez piores do que esta. Mas não sejamos ingênuos de pensar que tal mudança se dará automaticamente após o início da nova “normalidade”. Não podemos ficar na expectativa de mudanças externas. Tudo dependerá das transformações que formos capazes de efetuar individualmente. A crise é um alerta. Uma oportunidade de aproveitar o isolamento social para usá-lo como preparação de caminho. Não precisamos de vivências de quase morte para tomar consciência de que temos usado sim uma lanterna pequena que ilumina insuficientemente em pequenos focos, mas que focam no lugar errado. Na medida em que internalizamos os motivos da época de João para preparamos o caminho para o Cristo em nós nesse semestre que se aproxima, o grande advento, semeando e cultivando para que quando tivermos um novo momento de inspiração entre Natal e Epifania, saibamos o que precisamos mudar no mundo. Viver em função do eu pequeno, do egoismo significa estar aprisionado. Abrir espaço para o Cristo em nós nos permito conquistar a liberdade e agir conforme valores condizentes com a nova humanidade. É nesse sentido que, a exemplo de João Batista, somos precursores do ser humano do futuro. Essa humanidade do futuro só florescerá na medida em que os indivíduos despertarem para isso.
Carlos Maranhão