Parte 1
Todos o conhecem como João, o Batista. Seu nome original, em nossa escrita atual, seria aproximadamente Yohanan.
Yohanan era filho do casal de anciãos Elisabete e Zacarias. O arcanjo Gabriel no templo de Jerusalém anunciou a Zacarias, um sacerdote levita, o milagre de seu nascimento.
Seus pais já eram bastante idosos quando Yohanan veio ao mundo, sabiam portanto que não conseguiriam educar o menino até se tornar adulto, por este motivo enviaram o jovem Yohanan, aproximadamente com 12 anos de idade, para viver com um grupo de monges que habitavam em covas e cavernas naturais no deserto da Judeia, conhecidos pelo nome de essênios. Yohanan sentiu muito a separação, mas sabia que a decisão tinha sido correta, pois não passou muito tempo desde que o menino deixara a casa de seus pais, Elisabete e Zacarias vieram a falecer.
A vida no deserto era dura, todos se levantavam antes do sol nascer, começavam o dia fazendo suas orações e cantando salmos. A seguir era indicada pelos líderes da comunidade a tarefa que cada um deveria realizar naquele dia: abastecer com a água da chuva, que era recolhida em cisternas, a cozinha e os reservatórios das hortas, cuidar dos canteiros e das plantações que forneciam alimentos para toda a comunidade, pastorear as ovelhas e, quando fosse a época adequada, ajudar na tosquia da lã, trabalhar nas oficinas fiando a lã, tecendo e produzindo as roupas e tecidos que utilizavam e – a tarefa considerada a mais nobre e importante de todas – escrever em rolos de papiros os textos sagrados da lei e dos profetas.
Yohanan, quando chegou a esta comunidade no deserto, era o membro mais jovem. Apesar de sua pouca idade, participava como todos os outros dos trabalhos gerais. Era um menino inteligente e puro de coração, de modo que logo chamou a atenção de mestre Yehudah, o responsável pelos escritos sagrados. Yohanan havia aprendido bem cedo com seu pai a ler e a escrever, por este motivo mestre Yehudah permitiu que o jovem participasse nas oficinas de escritura, tarefa em geral realizada pelos monges aprendizes apenas quando já tinham passado dos vinte e um anos de idade. Yohanan gostava bastante desta tarefa e colocava muito empenho no que fazia. Havia também um momento do dia em que os monges aprendizes se reuniam com mestre Yehudah para ler e estudar passagens dos textos sagrados. Cada vez um deles recebia a tarefa de ler para os demais um trecho dos livros sagrados em voz alta, a seguir o mestre inquiria os jovens e esclarecia suas dúvidas. Era importante que os alunos se esforçassem para compreender o significado daquelas passagens. Certa vez um dos monges aprendizes chamado Yehoshua, que era apenas um pouco mais velho que Yohanan, foi contemplado com a leitura de um trecho do profeta Isaías que falava sobre a vinda do esperado Messias. O texto dizia que viria uma forte voz do deserto anunciando que os caminhos tortos se tornariam planos e o que fosse áspero seria aplainado a fim de preparar assim o caminho para a chegado do Messias.
Estas palavras impressionaram muito a Yohanan que ficou pensativo.
Yehoshua perguntou ao mestre:
— Como se pode entender que uma voz clame no meio do deserto? Aqui nestes lugares ermos quase não vive ninguém. Se algum de nós nos afastarmos das cavernas onde vivemos com nossa comunidade e formos até o grande lago conhecido com o nome de Mar Morto e lá começarmos a gritar, ninguém vai nos ouvir.
Yohanan também sentiu vontade de perguntar:
—Mestre Yehudah, do mesmo modo que Yehoshua, eu também não entendo o sentido destas palavras, não seria melhor que Deus enviasse um profeta, que com voz forte, falasse para o povo nas praças e mercados de Jerusalém? Lá com certeza haveria muitas pessoas que poderiam prestar atenção.
Mestre Yehudah ouviu ainda as dúvidas de outros discípulos até que após um tempo de reflexão disse:
– Vocês acham que todas as pessoas estão dispostas e preparadas para ouvir? Muitos de nosso irmãos monges, antes de nós, tentaram falar às pessoas que é necessário se purificar e se preparar, pois do contrário o Messias não virá. Infelizmente foram muito poucos os que ouviram… Os ricos estão preocupados em acumular mais riqueza, os negociantes estão preocupados com seu comércio e suas tendas, os velhos estão surdos e endurecidos demais para ouvir, os muito jovens estão preocupados com suas algazarras e prazeres. Creio que Isaías quis nos dizer que quando vier o profeta que anunciará com voz forte a chegada do Messias ele clamará no meio do deserto pois quase não haverá ouvidos para ouvi-lo!
Um dos discípulos falou então:
— Por este motivo nós escolhemos viver no deserto? Assim poderemos escutar quando vier este profeta, não é assim mestre?
Mestre Yehudah prosseguiu:
— Os mestres fundadores de nossa comunidade chegaram à conclusão de que grande parte de nosso povo não quer ouvir falar sobre o Messias pois estão mais preocupadas com outras coisas. Por este motivo alguns poucos consideraram que seria melhor viver aqui no deserto, afastado da balbúrdia das cidades, para poder se dedicar ao estudo destas palavras proféticas, como estamos fazendo agora.
Yohanan ficou de novo pensativo, ao ouvir a explicação de mestre Yehudah.
Certa vez Yohanan estava trabalhando na horta com Yehoshua. Na noite anterior havia ocorrido uma forte tempestade de areias do deserto que tinha coberto com pó grande parte das plantas nos canteiros. Os jovens precisavam ir às cisternas e, com baldes amarrados a cordas, içar a água, levá-la até os canteiros a fim de regar as plantas para limpá-las da grossa capa de pó que cobria suas folhas. A água é algo muito precioso para quem vive no deserto, por este motivo os jovens tinham que fazer o trabalho de limpeza das plantinhas com muita atenção para não desperdiçar o precioso líquido. Durante o trabalho Yohanan disse a seu amigo:
— Não consigo parar de pensar nas palavras do Mestre Yehudah! Será de fato que as pessoas não querem ouvir falar sobre a vinda do Messias? Afinal, isto representa o mais importante da mensagem dos profetas.
Yehoshua respondeu:
— Também sinto como você. Imagino que se alguém falar com propriedade sobre o Messias, as pessoas escutariam com alegria, ainda mais nestes tempos em que estamos vivendo, oprimidos pelo poder do Império Romano. Acredito que todos querem uma vida melhor e mais liberdade, nisto o Messias vai nos ajudar!
Acontece que de tempos em tempos um pequeno grupo de monges ia a Jericó, a cidade mais próxima do local onde viviam, para obter algumas poucas coisas que não conseguiam produzir, mas também para ouvir notícias sobre o que estava acontecendo em Jerusalém e no restante do país. Era comum que dois monges aprendizes acompanhassem o grupo de monges mais velhos para ajudar a carregar o que fosse necessário. Yehoshua e Yohanan foram indicados para a próxima ida a Jericó.
Na cidade os jovens tiveram tempo para caminhar pela praça do mercado, enquanto os monges resolviam os assuntos que necessitavam. Yohanan viu que numa tenda de frutas uma criança, maltrapilha e suja, apanhou alguns figos, os escondeu dentro de suas vestes e fugiu, sem que o vendedor o percebesse. O jovem seguiu o menino pelas vielas e becos da cidade até que o viu entrar numa ampla rachadura na muralha da cidade. Ao se aproximar da abertura, viu que no interior daquele buraco havia uma mulher também maltrapilha com outras crianças pequenas, que comiam os figos que o irmãozinho havia trazido. Quando aquelas pessoas viram o jovem encarando-os, ficaram assustados, pararam de comer e esconderam os restos no meio das roupas sujas e rasgadas que vestiam. A mãe das crianças, chorando, pediu a Yohanan que não os denunciassem, pois estavam famintos e não tinham dinheiro para comprar comida. O esposo dela e pai daquelas crianças havia morrido há tempos e por este motivo tiveram que vender tudo que possuíam. Yohanan tentou dizer-lhes que roubar não era uma coisa certa, mas a mulher chorou ainda mais e cobriu a cabeça com seu véu sujo e cheio de buracos. As crianças se agacharam próximas à mãe e choramingaram alto.
Yohanan regressou à praça do mercado e contou a seu amigo Yehoshua o que havia vivenciado. O jovem mais velho disse ao amigo:
— Há muita injustiça nestes tempos. Nosso povo tem que pagar muitos impostos aos romanos e as famílias estão cada vez mais pobres. Se não há um pai e esposo para trabalhar, as viúvas sofrem muito e não encontram meios para alimentar seus filhos.
Yohanan acrescentou:
— Justamente por estes motivos, é preciso que o Messias venha! Nosso povo precisa de ajuda. Contudo o que mais me impressionou e entristeceu foi ver que naquela família todos estavam tão sujos: suas roupas, seus cabelos, sua pele. Tudo isto me fez lembrar daquela noite em que a tempestade do deserto cobriu as plantas em nossa horta com todo aquele pó. O mestre jardineiro nos disse que as plantas poderiam morrer pois a sujeira deixada pelo pó impedia as plantas de receberem a luz, ainda que o sol brilhasse intensamente naquela manhã. Se não as tivéssemos limpado uma a uma elas poderiam ter sucumbido na sujeira. Sabe uma coisa, Yehoshua, creio que o sofrimento e a sujeira também deixam as pessoas meio “surdas”. Os ouvidos se enchem com algum tipo de sujeira. Eu não consegui dizer nada àquelas pessoas, tentei falar sobre as coisas bonitas e importantes que aprendemos com nossos mestres, mas elas estavam cobertas de medo e famintas, por isto não conseguiam ouvir. Com estes pensamentos os jovens retornaram à comunidade dos monges no deserto.
Renato Gomes
Este conto continua no próximo domingo.
Nota do autor para os pais:
A intenção deste conto é tentar trazer para as crianças a figura de João Batista (Yohanan) dentro do contexto de sua época a partir das poucas informações que encontramos sobre ele nos Evangelhos. O autor tomou a liberdade de criar personagens e situações, que até certo ponto pareceriam se ancorar em circunstâncias históricas, mas que, mesmo sem confirmação histórica, foram aqui colocadas para criar o ambiente necessário ao conto. O caráter fictício, porém, não invalida a tentativa de aproximar à alma infantil “a força e a intenção” de João Batista.