Fé – Amor – Esperança

O significado espiritual das virtudes cristãs – Resumo da terceira palestra

 

“A natureza faz de nós seres naturais e a sociedade, seres sociais. Somente por nós mesmos podemos nos tornar individualidades livres.”

Rudolf Steiner

Como adultos temos a responsabilidade pelo nosso próprio desenvolvimento, num caminho de autoconhecimento e autoeducação. Na infância e na adolescência desenvolvemos os nossos corpos. E, como vimos nas duas primeiras palestras, os corpos que temos e os seus desenvolvimentos têm a ver com as forças da fé, do amor e da esperança. Como adultos desenvolvemos a nossa alma, nos seus diferentes níveis. Num primeiro nível, a nossa alma estabelece uma relação com o mundo a partir das percepções. Temos em nosso corpo os órgãos dos sentidos. Por intermédio desses órgãos percebemos o mundo ao nosso derredor, mas também o nosso próprio corpo e os seus processos. Percebemos as cores, os tons, os paladares, os odores, as qualidades sensoriais na natureza. Mas percebemos também se temos fome ou sede, sentimos frio ou calor, se estamos dispostos ou cansados. Normalmente se fala de cinco órgãos dos sentidos, mas de uma forma mais profunda se pode dizer que são doze. O fato de termos órgãos dos sentidos possibilita que nossa alma não esteja prisioneira dentro de si mesma, que ela pode ter um relacionamento com aquilo que sentimos existir fora de nós. Os órgãos sensoriais são como janelas pelas quais podemos nos relacionar com o mundo. As sensações entram em nossa alma e nós reagimos com sentimentos. Mas não são apenas as sensações que entram em nossa alma. Como que do fundo da alma, de uma esfera que nos é totalmente inconsciente, emergem instintos, desejos, impulsos, que também preenchem a nossa alma. A alma se preenche com tudo o que recebe, e reage com sentimentos. Esse primeiro nível da alma é denominado a alma da sensação. Independente do nome que damos a esse nível da alma, todos nós temos a experiência da sua realidade. Podemos observar como a nossa alma é permeada pelas sensações que temos do mundo e de nós mesmos, como surgem os desejos, afetos, impulsos evolutivos, e como nossa alma reage a tudo isso por meio de sentimentos. Podemos perceber que aqui surge um primeiro nível da nossa consciência desperta: a consciência do que percebemos e a vivência dos sentimentos que isso provoca em nós. Esse nível de consciência temos comum com os animais. O que então acontece, nesse nível de consciência, é que surge a tendência de reagir àquilo que vivenciamos. Temos sensações, surgem sentimentos e temos a tendência de reagir. Assim também acontece no reino animal. A partir de uma sensação surge no animal uma reação. A diferença entre nós e os animais, é que nessas reações instintivas que atuam no reino animal há uma grande sabedoria. Os instintos dos animais são repletos de sabedoria. O mesmo não podemos dizer sobre os nossos instintos e reações. A perda dos instintos sábios é necessária para que possamos desenvolver a liberdade. Esse impulso, da alma reagir instintivamente àquilo que percebe, pode ser um grande problema para nós. Pode se tornar algo inadequado e até mesmo destrutivo. Podemos ver que as pessoas são diferentes entre si e têm, por exemplo, diferentes temperamentos, reagindo, assim, de diferentes formas a uma mesma situação. Um colérico pode às vezes perder o controle, ser possuído por uma raiva e reagir com agressão, o que pode chegar a tornar-se destrutivo. Já um melancólico, talvez na mesma situação, reaja de uma forma oposta, se retirando, e ser tomado por uma tristeza e uma força destrutiva que se volta para dentro, chegando mesmo a uma depressão. É nesse ponto que podemos elevar a nossa alma a um nível humano. Podemos observar como a nossa alma reage àquilo que vivencia. A partir da força da nossa individualidade, da força do nosso eu, podemos aprender a controlar as nossas emoções, a controlar as nossas reações. Aqui começa o caminho do autoconhecimento e da autoeducação. Aprender a controlar as nossas emoções não significa olhá-las como algo negativo. O problema está em reagir de um modo instintivo. As emoções em si podem nos ajudar a conhecermos a nós mesmos, quando nos perguntamos: por que reagimos desta ou daquela maneira? Por exemplo, por vezes uma reação colérica tem a ver com um sentimento de que algo não está correto, não é verdadeiro ou mesmo não é justo. Temos de aprender a controlar a reação colérica, mas ela pode despertar nos para o fato de que temos em nós um sentimento do que seria o correto, o verdadeiro, o justo. Muitas das nossas emoções surgem porque existe em nós um sentimento para os ideais humanos mais elevados. A reação instintiva pode ser destrutiva. Mas a conscientização da origem elevada de um ideal, do qual surge a emoção, pode nos orientar para aquilo que traz um sentido à nossa existência e, se atingimos uma serenidade, podemos, a partir do controle da emoção, direcionar as nossas ações de uma forma que possamos servir de uma forma construtiva aos ideais que vivem em nós. Isso não significa que temos de atuar sempre de uma forma mansa, sem emoção. A pergunta deve ser: o nosso modo de agir é uma reação instintiva a partir de emoções ou a emoção nos desperta para algo importante e, a partir da nossa individualidade, atuamos de modo que pode exigir uma atitude colérica. No Evangelho há um relato arquetípico: quando Jesus Cristo percebeu que o templo estava sendo usado como um mercado de venda, compra e câmbio, Ele, de uma forma colérica, expulsa a todos. Não se trata de uma reação emocional. Se trata do reconhecimento que o sagrado está sendo profanado e da necessidade de reestabelecer a função primordial do templo.
A partir do autoconhecimento em relação às nossas emoções, e da autoeducação, aprendendo a controlar as emoções e despertando para os ideais humanos, que nos provocam as emoções muitas vezes inconscientes, podemos sempre mais direcionar as nossas ações para algo que faça sentido, que seja construtivo. Estamos assim no âmbito das forças da esperança, do ponto de vista de que a esperança é a convicção que algo tem um sentido, independente do que acontecerá. Se procuramos atuar de uma forma que faz sentido, estamos criando a base para podermos ter esperança. Para podermos desenvolver um autoconhecimento em relação às nossas emoções, a nossa alma já tem que se elevar a um nível superior à alma da sensação. Temos que ter a possibilidade de pensar, refletir sobre o que estamos vivenciando, analisar, reconhecer o que está acontecendo. O pensar que temos no nível da alma da sensação, possui um caráter mais associativo e, assim, ele também é uma reação àquilo que vivenciamos. Necessitamos de um pensar mais racional, que seja também mais controlado pela nossa individualidade, pelo nosso eu. Esse nível mais elevado da alma todos nós temos e conhecemos. Todos nós temos uma determinada forma racional de pensar e a possibilidade de procurar reconhecer o que vivenciamos. Nesse nível da alma formamos os nossos próprios pensamentos sobre o mundo e sobre nós mesmos, e nos conscientizamos dos nossos próprios sentimentos, de nossa maneira de ser, do nosso temperamento. Esse nível da alma tem dois lados: um lado mais racional, e um lado mais emocional. Por isso, esse nível é denominado alma da razão ou da índole. Criamos aqui dois universos próprios: o universo dos nossos pensamentos, opiniões, pontos de vistas, e o universo dos nossos sentimentos, do nosso caráter, temperamento, nosso modo de ser. Nesses universos interiores se enraíza a nossa autoconsciência, a convicção e o sentimento de que somos um eu. O problema que surge aqui é que esses “universos particulares” têm a tendência de se separarem do mundo e dos outros. Surge aqui a consciência da dualidade entre sujeito e objeto. Aqui sentimos que estamos dentro de nós, e o mundo e os outros estão fora de nós. Essa separação nos dá a possibilidade de desenvolver a liberdade, mas nos torna egoístas. Recebemos as sensações do mundo, reagimos com nossos sentimentos, e formamos um espaço anímico individual, próprio, separado do mundo. Corremos o risco de colocar as nossas opiniões, os nossos pontos de vista, os nossos sentimentos, o nosso modo de ser, como o correto, como a única possibilidade, como a verdade. A tarefa que temos quando desenvolvemos a alma da razão e da índole é procurar a verdade, mas o perigo é nos sentirmos os donos da verdade. A procura da verdade nos leva a um autodesenvolvimento, e a convicção de que somos donos da verdade nos torna intolerantes, antissociais, egoístas. No primeiro nível da alma temos de aprender a controlar as nossas emoções. Agora temos que ir o caminho de procurar a verdade, superando a convicção de que já somos donos da verdade. Existe uma verdade, e estamos a caminho de procurá-la, mas temos que reconhecer que aquilo que alcançamos é somente um aspecto da verdade, e que sempre podem existir outros. O outro tem o seu pensamento, o seu ponto de vista, o seu sentimento, que pode ter um aspecto da verdade, às vezes muito distinto do meu. A procura da verdade exige o interesse pelo modo de pensar e de sentir do outro, o impulso de querer entender como o outro pensa, como ele sente. Isso nos leva a superar a intolerância, de nos tornarmos sociais, de superar o egoísmo, a partir do interesse pelo outro. A compreensão do modo de pensar e sentir do outro e o respeito pela sua liberdade, formam a base para aprender a amar. Assim como o trabalho do eu, na alma da sensação, forma a base para a esperança, o trabalho do eu, na alma da razão ou da índole, forma a base para o amor.
Nos níveis da alma da sensação e da alma da razão ou da índole, temos relacionamentos com o mundo e com as outras pessoas. Para termos um relacionamento com o mundo espiritual temos de elevar a nossa alma um nível ainda mais superior. No nível da alma da sensação temos um relacionamento com aquilo para o qual possuímos um órgão dos sentidos. Isso determina o que é para nós o mundo sensorial. No nível da alma da razão ou da índole podemos ter pensamentos e sentimentos sobre o mundo sensorial, com o qual temos um relacionamento. Podemos também ter pensamentos e sentimentos sobre o mundo espiritual, mas ainda não temos, realmente, um relacionamento. Os pensamentos possuem a tendência de serem abstratos, e os sentimentos de serem emocionais, se nos falta a vivência real. O que nos possibilita ter um relacionamento consciente, racional, com o mundo espiritual é o nosso pensar. Mas o nosso pensar, normalmente, ou é incentivado pelas percepções sensoriais, tendo o desejo de reconhecer aquilo que vivenciamos, ou se torna abstrato, desenvolvendo algo que não tem nada a ver com uma realidade. Aqui nos deparamos com um paradoxo: é possível formar um relacionamento com algo do qual não temos percepções? Que, não apenas para os nossos olhos, nos é invisível? A experiência, que todos podemos fazer, está em formar pensamentos sobre o mundo espiritual que ainda não vivenciamos. Esses pensamentos são, no início, abstratos e não são ainda uma expressão de um relacionamento real. O pensar em si não tem a possibilidade de se elevar a um relacionamento real com o mundo espiritual. Ele necessita de um impulso, e esse impulso ele pode receber do nosso sentir e do nosso querer. Aquilo de que o pensar não é capaz, o sentir e o querer podem realizar: formar um relacionamento real com algo desconhecido, “invisível”. No pensar formamos um conteúdo ainda abstrato sobre o espiritual divino. Agora podemos desenvolver, a partir dos nossos pensamentos, um sentimento e uma vontade de querermos nos unir com este espiritual divino. A nossa vontade pode desenvolver a atitude da entrega, o nosso sentir pode desenvolver um amor pelo “invisível”, oculto das nossas percepções. O fluir conjunto dessa vontade de entrega com o amor pelo espiritual divino é o que podemos chamar de devoção. Esse nível da alma, onde procuramos de novo um relacionamento com mundo e com os outros, agora não apenas no âmbito sensual, mas no âmbito espiritual divino, chamamos de alma da consciência. A tarefa que temos na alma da consciência é desenvolver a devoção, a vontade da entrega ao espiritual divino, e o amor por ele. O perigo que corremos nesse nível da nossa alma é desenvolver o impulso da entrega na nossa vontade, e o amor para o espiritual divino em nosso sentir, sem chegar a conquistar para o nosso desenvolvimento, o pensar racional e a força de uma individualidade em liberdade. Desenvolver um impulso de entrega sem o respeito à própria individualidade significa anular o próprio eu. Poderíamos estabelecer um relacionamento real com o espiritual, mas perderíamos o nosso próprio eu. Desenvolver um amor pelo espiritual divino que não leve à conquista de um pensar racional, nos conduziria a um entusiasmo exagerado e a formação de crendices. Nos tornaríamos escravos de uma realidade espiritual, com uma qualidade arimânica em nossa vontade ao servir uma vontade alheia, e uma qualidade luciférica em nosso sentir ao viver em ilusões. A frase do apóstolo Paulo: “Não eu, mas Cristo em mim”, não significa a anulação do nosso eu, mas, muito pelo contrário, uma entrega e um amor pelo Cristo, que só pode ser conquistado pela força do eu. A tarefa que temos no nível da alma da razão é desenvolver a devoção na qualidade do eu: pela entrega e pelo amor ao espiritual divino. Assim como o trabalho do eu, na alma da sensação, forma a base para a esperança, o trabalho do eu, na alma da razão ou da índole, forma a base para o amor. E o trabalho do eu, na alma da consciência, forma a base para a fé.
As forças da fé, do amor e da esperança atuam como forças formadoras nos nossos corpos físico, etérico e astral. Eles nos acompanham em nosso desenvolvimento, na infância e na juventude. Como adultos temos a tarefa de controlar as nossas emoções, superar o egoísmo e, a partir do nosso eu, desenvolver a devoção, para que a fé, o amor e a esperança nos levem à união com o divino: no mundo, no outro, em nós mesmos.

João F. Torunsky

Da carta do apóstolo Paulo aos coríntios, capítulo 13

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.
E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal;
Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá;
Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos;
Mas, quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado.
Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.
Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido.
Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor.