“Não temas”

Por que temos medo e como conviver com ele

De onde surge o medo?
De uma forma um tanto simplificada podemos dizer que o medo surge quando a nossa existência é questionada. Quando surge o perigo de que algo, com que estamos ligados existencialmente, seja destruído. E como vivemos em três níveis, no corpo, na alma e em um nível espiritual, temos nesses três âmbitos diferentes qualidades de medos.
No nível do corpo, a origem do medo pode vir da vivência de fome, sede, frio, calor, falta de ar. Ou a possibilidade de nos ferirmos, de ficarmos doentes. E, no caso mais extremo, a possibilidade de morrermos. Quanto mais uma pessoa fundamenta o seu sentimento de existência no próprio corpo, tanto mais essas experiencias corporais nos trazem medo. Como todos nós, pelo fato de estarmos encarnados, fundamentamos a nossa existência na ligação com o corpo, a morte sempre pode ser uma fonte de medo. Pois a insegurança do que virá depois da morte prossegue até o momento que a vida independente do corpo se torne uma experiência real.
No nível anímico temos a necessidade da segurança nos relacionamentos sociais. Quando os relacionamentos são questionados, surge a possibilidade de perdermos o relacionamento com pessoas queridas. Quando, nos relacionamentos destrutivos, sentimo-nos excluídos, humilhados, e vivenciamos a solidão, também surge o medo.
No nível espiritual os medos surgem quando perdemos ou não encontramos um sentido em nossa vida, quando sentimos que a nossa liberdade está nos sendo tirada, quando vivenciamos a atuação de uma mentira e não encontramos a possibilidade de colocar a verdade em seu lugar.
A experiência com estas três fontes distintas do medo, nós vivenciados no decorrer da nossa infância e juventude.
No inicio da nossa vida temos mais experiências do medo que surgem a partir do corpo: fome, sede, frio, calor. O próprio parto é uma experiência muito profunda de separação do nosso corpo da união com o corpo materno, em um processo doloroso. O acolhimento da mãe, do pai, da família tem, na primeira idade, um papel essencial. Os primeiros relacionamentos sociais deveriam ajudar a criança a aprender a conviver de uma forma frutífera com os medos. Tanto para oferecer acolhimento e proteção, como expressando a confiança de que a própria criança pode superar obstáculos que estejam dentro das suas possibilidades.
Quando a criança entra na escola começam a surgir os processos do aprendizado social, que podem provocar medo. Experiências de isolamento, de não pertencer a um grupo, de ser humilhado pelos outros. Além desses medos sociais, que infelizmente surgem hoje para muitas crianças, há o medo de não conseguir atingir as metas de aprendizagem exigidas pela escola. O medo de não satisfazer as exigências que a sociedade coloca sobre nós, de apenas receber recompensas pelo êxito e punições pelos erros.
Já na juventude, com a procura de um sentido para a vida e a procura de se encontrar a si mesmo, o jovem começa a fazer experiências com o medo que já trazem uma qualidade espiritual. São medos que têm a ver com o futuro: de si mesmo, da sociedade, da Terra, da humanidade. Com o nascimento do idealismo na alma do jovem, que pode impulsioná-lo para o futuro, pode surgir também um sentimento de fatalismo, de que nada faz sentido na vida. O que pode se expressar em um estado depressivo, mas também agressivo.
Como adultos, tivemos na infância e juventude experiência com as três formas do medo e continuaremos a tê-las por toda a vida. Dependendo de como aprendemos a conviver com os medos durante a nossa infância e juventude, teremos uma melhor ou pior possibilidade de lidar com esses medos quando adultos.
Temos de ressaltar que todo o desenvolvimento é acompanhado com a possibilidade de que surjam medos. Isso tem a ver com o fato de que, em um processo de desenvolvimento, muitas vezes formas de vida que nos dão segurança precisam ser deixadas para trás, o que nos leva à uma região de insegurança, por ainda não saber como será o futuro. Essa insegurança em relação ao futuro pode nos levar a ter medo. Existem pessoas que necessitam muito do sentimento de segurança na vida. Por isso, quando é necessário que algo seja transformado para que possa acontecer um desenvolvimento e se entra em uma região de insegurança, essas pessoas sentem medo. Mas há também pessoas que almejam desenvolver sempre coisas novas, de fazer mudanças na vida. Quando a vida se torna muito segura, sem desafios, essas pessoas ficam muito inquietas, e surge o medo de não poderem se desenvolver. É necessário compreender que somos bastante diferentes uns dos outros em relação ao modo como reagimos às coisas que nos provocam medo.
O medo não tem somente um caráter negativo, ele pode ser muito positivo, principalmente na fase inicial em que atua na alma. No início surge na alma um sentimento que, em geral, ainda não chamamos de medo: é algo que desperta a nossa consciência, que aguça os nossos sentidos, que nos prepara para agir. É uma forma de estarmos muito mais despertos e atentos do que normalmente o somos. Essa consciência desperta poderia nos levar para uma presença plena, de perceber tudo ao nosso redor, de fazer a ação certa, no momento certo. Mas quando esse despertar da consciência cresce sempre mais em direção àquilo que chamamos de medo, a sua atuação se converte no oposto. A consciência e os sentidos estão muito despertos, mas se restringem, se concentram apenas no que parece ser o problema, sem a possibilidade de se abrir para algo que poderia ser a solução. Surge o que se chama de um olhar pelo túnel: só se vê em uma direção e sempre o mesmo. E, além disso, o medo provoca uma paralisação, a impossibilidade de desenvolver uma ação.
Existem medos que surgem completamente do inconsciente, com um caráter instintivo. Por exemplo, a claustrofobia. Quem tem experiência com essas formas de medo sabe o poder que eles podem ter sobre nós. Nesses casos não é possível controlar o medo a partir de uma racionalidade. Outro exemplo de medo irracional é o medo de barata. Existem muitas pessoas que têm medo de barata, apesar de ser um bichinho tão pequeno que não consegue fazer mal para ninguém.
Outros medos vêm do consciente. Esses medos são, para o tema aqui esboçado, os mais relevantes. Quando, na nossa consciência, surge uma imaginação, um sentimento de que algo poderia acontecer, algo que questiona a nossa existência, criamos nós mesmo um medo em nossa alma. Isso também pode acontecer pela recordação de experiências passadas e o medo surge pela possibilidade de que determinadas situações possam se repetir. Quem já foi mordido por um cachorro provavelmente sentirá medo quando algum cachorro se aproximar. Medos que são criados pela nossa consciência têm o caráter de se ligarem com o futuro, são medos do que poderá acontecer. Mas assim como a consciência pode criar medos, ela pode também aprender a conviver com os medos, ou mesmo a superá-los.
Um exemplo típico de como podemos superar o medo por meio de um trabalho consciente, racional, ocorre em relação ao medo de trovão. Um trovão pode ser muito ruidoso e provocar o medo de ser atingido por um raio. Mas se olhamos a situação de modo racional, vemos que um raio provoca a formação de um relâmpago e o ruído de um trovão. Mas o relâmpago se propaga na velocidade da luz, enquanto o trovão se propaga na velocidade do som. O relâmpago gerado pelo raio é quase um milhão de vezes mais rápido que o trovão. Uma pessoa que é morta por um raio nunca escuta o seu respectivo trovão. Quando escutamos o trovão deveríamos na realidade sentir alegria, pois o raio desse trovão com certeza absoluta não nos atingiu.

Como podemos conviver com o medo?
Uma ajuda para conviver com os nossos medos podemos receber da salutogênese. Na salutogênese se desenvolveu, em relação à constituição da saúde, o conceito de coerência baseado em três premissas:
– É necessário entender o que está acontecendo em nossa vida, ao nosso derredor.
– É necessário reconhecer um sentido naquilo que está acontecendo.
– É necessário ter a possibilidade de fazer alguma coisa, agir a partir de um impulso próprio. Não se sentir apenas vítima do destino, mas criador da própria realidade.
Podemos ver nesses três pontos uma ajuda para lidar com o medo ao nos perguntar:
– Podemos entender o que está acontecendo ao meu redor, o que cria o medo em mim?
– Podemos reconhecer que o medo expressa uma vivência de insegurança e que pode ser a chance de um passo de desenvolvimento? Posso reconhecer o que iremos desenvolver superando essa situação que nos traz medo?
– Podemos encontrar algo que, apesar dos nossos medos, podemos alcançar? Temos a possibilidade de sermos ativos com o nosso Eu e não nos deixarmos paralisar?
Não existem soluções genéricas para resolver os problemas. Normalmente os problemas são comuns e muitas vezes se repetem do mesmo modo para muitas pessoas. Mas apesar da generalidade dos problemas, as soluções são sempre individuais, pois elas significam um passo de desenvolvimento no caminho individual de cada um de nós.
Uma vez colocados esses pontos de vista, podemos tentar olhar agora para a situação atual que estamos vivenciando pela epidemia do coronavírus.

De onde vem o medo do coronavírus?
Com certeza essa é um forma de medo criada pela nossa consciência. Há 150 anos ninguém teria medo de um vírus pelo simples fato de que não se tinha o conhecimento da sua existência. Ainda não se conheciam bem os microrganismos e consequentemente sua relação com as doenças. O fato da ciência ter desenvolvido o conhecimento sobre os vírus trouxe a possibilidade do medo em relação a eles.
Em relação à epidemia atual temos dois fenômenos. Um é a propagação da doença pelo mundo inteiro. Mas o outro é a propagação da informação sobre a doença formando uma atmosfera de medo em escala mundial. Já houveram muitas epidemias na história da humanidade, e decerto seus efeitos foram muito mais devastadores. Mas, com certeza, nunca houve tal fenômeno de medo provocado pela propagação da informação em nível global como agora. Precisaremos de muito tempo para que o vírus seja totalmente pesquisado e surja um medicamento contra ele. Mas a tarefa maior será compreender o que levou à formação de uma consciência global, repleta de medo, como isso foi possível. Com certeza teremos outras epidemias no futuro. Mas queremos que esse fenômeno de uma consciência global de medo se repita no futuro?

Em quais níveis estamos sendo atingidos agora?
Temos insegurança em todos os três níveis que são fontes para o medo:
– Temos medo de ficarmos doentes e talvez até morrer.
– Estamos em um isolamento social e o outro se tornou um perigo para mim, pois pode ser a pessoa que me contaminará.
– A crise econômica que se seguirá não trará apenas a insegurança de sobreviver materialmente, mas será também, para muitos que perdem o trabalho, a perda da possibilidade de vivenciar o próprio sentido da vida. Para sobreviver, será necessário procurar atividades que nem sempre fazem um sentido para o indivíduo.

Que qualidade tem esse medo de agora?
Ele despertou de uma maneira incrível a consciência da maioria das pessoas. Mas restringiu o foco para um ponto muito pequeno: números de infectados e mortos no mundo inteiro. A partir de alguns números e curvas estatísticas se justifica a paralisação da sociedade em um âmbito mundial.
Quero ressaltar que não se está tentando julgar como correto ou errado aquilo que vem sendo feito. A responsabilidade dos políticos que estão tomando decisões tem sido enorme e muito difícil seria julgá-las em um momento onde a própria compreensão do que está acontecendo ainda é insuficiente. Mas me parece importante tentar olhar para os fenômenos tal como eles se apresentam.
Aqui nos deparamos para a grande tarefa que temos, se queremos nos orientar pelos pontos de vista da salutugênese.
– É possível compreender o que está acontecendo ao nosso redor?
– É possível descobrir um sentido para aquilo que está acontecendo? Reconhecer que uma possibilidade de desenvolvimento está se abrindo para cada um de nós e para a humanidade?
– É possível ser proativo nessa situação? Não se sentir apenas vítima do destino, mas desenvolver algo novo, uma criatividade a partir de si mesmo?

A tarefa é grande e, pessoalmente, não vejo sentido em procurar no momento respostas simples baseadas em alguma teoria. Talvez não tenhamos as respostas, mas o importante é manter a atividade interior, não parar de se perguntar, de procurar continuamente uma coerência para aquilo que estamos vivenciando.
Mesmo que ainda nos falte muito na busca de um conhecimento sobre a situação atual, gostaria de colocar dois pontos de vista que me parecem estar ficando cada vez mais claros. A situação atual revela uma qualidade negativa, mas também uma qualidade positiva.
A negativa tem a ver com a qualidade de uma força adversa à evolução da humanidade que, na Antroposofia, é chamada de força arimânica. Essa força atua através do medo, da mentira e do desprezo pelo individual. Podemos reconhecer esses atributos na forma como se propagou mundialmente a informação sobre a epidemia do coronavírus. Se formou uma atmosfera de medo, de isolamento social com a tendência de um sentir o outro como um perigo. Tudo é baseado na obediência perante uma autoridade, nesse caso a medicina. A partir das informações na mídia se criou uma grande sincronização global de pensamentos e sentimentos comuns. E nos números estatísticos apresentados diariamente, não se leva em consideração o aspecto individual de cada pessoa que está por trás de cada número. Se lê ou se ouve que p.ex. morreram 250 pessoas em um só dia no Brasil. A informação é, sem dúvida, válida e importante. Mas é uma diferença muito grande entre uma pessoa de 90 anos que já estava muito enferma e morreu agora pelo coronavírus, e outra que tinha 40 anos e não sofria de nenhuma outra doença. São dois destinos completamente diferentes e que, na estatística, não se expressam e não é possível expressar.
O lado positivo tem a ver com as forças que querem ajudar a evolução da humanidade, que estão ligadas com a qualidade do Cristo. O Cristo atua a partir de uma confiança no mundo espiritual, a partir da verdade e do respeito pelo indivíduo e sua liberdade. A propagação das informações sobre a epidemia nos ajudou também a despertar ainda mais para o fato de que nós somos uma humanidade, estamos todos no mesmo barco. Não é possível resolver problemas globais com soluções locais. Apesar de as nações se isolarem e procurarem cada qual resolverem o problema da epidemia por si, tem ficado claro que isso não é possível. Somente todos juntos poderemos realmente lidar com esse problema. Sabemos que, em todos os sentidos, as consequências para as pessoas menos favorecidas serão muito dramáticas. Soluções que não levem em conta as disparidades sociais não resolverão de todo o problema.
Há um ano atrás, alguém que propusesse parar toda a produção industrial no planeta seria considerada um louco sonhador. Em nenhuma outra circunstância poderia ser visto isso que agora se mostra, pelo menos em parte, ser possível. Com certeza haverá consequências enormes para a economia. Mas temos agora a experiência de que se pararmos a poluição industrial nosso planeta tem a vitalidade de se recuperar, seria possível salvar a vida na Terra. Fomos colocados como humanidade e como individuo perante a pergunta: queremos repetir a nossa forma de vida depois da epidemia? Exatamente como era antes? Ou queremos formar algo novo? Estamos dispostos a mudar algo em nossas vidas? É possível! Está colocado na nossa liberdade.
E talvez o mais importante seja que, nessa epidemia, se tornou claro que não existe somente uma doença contagiosa. Existe também uma saúde contagiosa. Realmente não somos todos nós, e nem o tempo todo, que estamos com medo e tentando nos proteger uns dos outros, procurando soluções egoístas para o problema. Muito pelo contrário. Muitas pessoas têm, apesar da epidemia, confiança no futuro, apesar de viverem na insegurança procuram ajudar uns aos outros, apesar de ter que evitar o contato próximo procuram novas formas de expressão para que esse distanciamento não represente uma perda de carinho pelo outro. Manter a qualidade humana em nossa postura, em nossas decisões, em nossos relacionamentos, mesmo nas condições que nos são impostas pela epidemia, é uma forma de saúde contagiosa e nos mostra que o Cristo está atuando no íntimo de cada um de nós e por nós no mundo. E se procuramos estar atentos para o que Ele nos fala nesses tempos, iremos escutar as suas palavras: „Não temas“.

João F. Torunsky