Palestra proferida domingo, 26 de julho de 2020
Eu gostaria de compartilhar algumas reflexões e leituras que tem o propósito de lançar luz sobre a crise atual, sobretudo sob o ponto de vista moral. De antemão é preciso ressaltar que temos de ter cuidado quando tratamos do tema, pois pode trazer mal-entendidos, pois queremos tratar do tema da moral sem ser moralistas. Quero começar citando uma palestra de Rudolf Steiner em que o tema veio à baila justamente num tempo de crise mundial. Trata-se da palestra proferida em Dornach em 3 de janeiro de 1915, portanto em meio à Primeira Guerra Mundial (de 28/7/1914 a 11/11/1918) e também durante a construção do primeiro Goetheanum (1913–1923). Estamos numa situação semelhante, no sentido de uma crise mundial sem precedentes. Como naquela época, tratava-se de uma crise moral com contradições enormes e as consequências foram drásticas, mas de importantes mudanças. Por meio dela surgiram iniciativas fundamentais, como a própria construção do Goetheanum, embora tenha sido destruído depois. Mas as fundamentais inciativas que emanaram da Antroposofia foram a partir dessa crise. Creio que o fato de, durante a guerra o projeto de construção ter atraído trabalhadores voluntários de toda a Europa, é muito significativo, pois tratava-se de construir o futuro em meio à destruição. Isso pode nos inspirar a pensar que a crise atual pode também engendrar projetos de construção de futuro.
A questão que Steiner colocava naquela ocasião era até que ponto as pessoas da época estavam trabalhando na preparação do futuro evolutivo da humanidade, pois o comportamento humano como um todo pode contribuir para essa evolução ou, ao contrário, impedi-la. Há algo em nossa evolução terrena que só pode realizar-se a partir de aspirações ou ideais fundados na moralidade. O homem, como um ser terreno, deve diferenciar em que medida ele é um ser dominado por seus instintos, ou se ele é capaz de dominá-los. Essa voz da consciência nunca é algo que nos fala como um impulso, mas algo que nos fala de uma maneira puramente espiritual.
Steiner diz que “o comportamento moral ou imoral do homem pode ser visto na respiração aquosa, e a respiração aquosa é bem diferente para um homem que tende à moralidade do que o é para um homem que tende à imoralidade”. Essa forma de expiração engendra algo que lembra as entidades que ainda não existem na Terra. Nessas entidades, prepara-se o futuro da Terra. Mas, por outro lado, os atos que não estão imbuídos dessa qualidade engendram outros seres demoníacos, que ao contrário, atrasam a evolução. Vemos nas primeiras palavras do Gênesis como a respiração exalada pelos Elohim formaram o ser humano. Então, vemos que nossa moralidade terrena é realmente um poder criativo, nosso comportamento humano molda os acontecimentos na Terra e demonstram o quanto somos corresponsáveis por esses acontecimentos.
É interessante a coincidência que a pandemia atual seja transmitida justamente pelas gotículas que se propagam pelo respirar humano. Podemos dizer que a origem dessa crise é sobretudo moral. Nós vivemos as contradições de um mundo materialista que desrespeita as reais necessidades dos seres humanos: as espirituais. A imoralidade do respirar cria seres parasitários que agem sob o poder de seres luciféricos e isso tem consequências para a evolução da humanidade e para a evolução planetária. Assim como a crise da época em que Steiner escreveu essa palestra fazia com que uma parcela de pessoas se engajasse na construção do Goetheanum, como um centro de concentração de forças espirituais, a crise atual também conclama pessoas que possam compreender a urgência de nossos tempos para também se unir num processo de renovação, de construção do futuro.
Ao final daquela palestra, Steiner coloca como lema fundamental que se baseia na força do pensamento. Duas frases podem ser princípios orientadores para nós, podem ser extremamente importantes para nós: “Esforce-se para que o pensamento morra no Todo”. E a segunda: “lute para a ressurreição do destino no Eu”. Quando você faz isso, une o pensamento renascido no interior com o eu ressuscitado agindo no exterior. Olhar para a relação entre dentro e fora da maneira certa é particularmente difícil para as pessoas. Quanto mais aprendermos sobre moralidade no sentido da ciência espiritual, tanto mais estaremos aptos a agir de acordo com o que é necessário para uma direção futura no sentido evolutivo.
Essa noção do que está dentro e fora do ser humano é também tema do que Jesus fala em Marcos 7, 18-23: “Tudo o que de fora entra no homem não o pode contaminar. O que sai do homem, isso o contamina: maus pensamentos, …”. No Evangelho o contexto é a crítica de fariseus e doutores da Lei judaica que criticavam a atitude de Jesus e seus discípulos de comerem sem lavar as mãos. Sabemos que na situação da epidemia que estamos vivendo, não lavar as mãos é blasfêmia, mas fica claro que aqui se trata do tipo de contaminação mais essencial, os sentimentos e pensamentos que carregamos em nossos corações.
Buscando essa fundamentação, podemos dar uma olhada numa outra série de palestras que Rudolf Steiner proferiu na Escandinávia, de 28 a 30 de maio de 1912 (traduzida em português e editada pela Editora Antroposófica com o título “A moral Teosófica).
Ele fala do velho João Evangelista, pouco antes de morrer, falava aos seus irmãos: “Minhas crianças. Amai-vos uns aos outros”. Essas palavras só podem ser proferidas sem que sejam um chavão moralista por quem obteve o direito de proferi-las após uma vida inteira de profundas experiências espirituais e sabedoria adquirida por aquele que produziu os textos mais elevados da humanidade.
Aí há também um contexto que nos remete à nossa situação atual. Steiner explica como as invasões bárbaras provocaram tanto medo na população da Europa e de como isso teve consequência para a disseminação da lepra. Fala também de como as forças transmutadas da coragem cavaleiresca estavam presentes no jovem Francisco de Assis e de como, a partir de sua conversão milagrosa a virtude da coragem se transmuta em forças amorosas. Francisco ia aos lugares onde se mantinham os leprosos reclusos e amorosamente tratava de suas feridas, curando-os.
Aí as forças morais estavam presentes no atuar de Francisco de Assis elas permitiram que ele entrasse em contato sem medo com leprosos. Tratava-se também de cura de uma doença altamente contagiosa, mas a moralidade que não se tratava de preceitos ou normas morais, mas de ação moral permitia reverter a doença.
Segundo Steiner, a moralidade é um dom original da humanidade compartilhado por todo o ser humano e, potencialmente, todo ser humano tem a capacidade de buscar em si essas forças. Elas estavam presentes na antiguidade ainda de uma forma instintiva, mas pôde se manifestar quando do milagre do despertar do pensamento em uma forma ainda muito próxima da herança de sabedoria da antiguidade, por exemplo, na obra filosófica de Platão, quando ele fala das quatro virtudes fundamentais: sabedoria, coragem, prudência e justiça.
Hoje, quando o ser humano vive na época da alma da consciência, essas virtudes se transmutam a partir de um eu consciente em virtudes que podem se desenvolver no ser humano a partir do pensar intuitivo puro. Na segunda parte da Filosofia da Liberdade de Steiner ele fala das intuições morais e do individualismo ético. Evolução moral é não mais obedecer a preceitos externos, leis morais ou pregações bíblicas, mas intuir por si mesmo, quando se eleva a um pensar puro, como deve dirigir suas ações e como pode agir por amor à ação. O conjunto de indivíduos livres desenvolvendo-se nesse sentido é o que cria um corpus moral para a evolução da humanidade.
A antiga sabedoria, atuando mais no âmbito da alma da sensação como herança dos deuses numa época em que os seres humanos recebiam essa sabedoria na forma de inspiração pelos deuses, em sonhos e imagens místicas, se transmuta na época da alma da consciência em veracidade: a capacidade de discernir por seus próprios pensamentos morais o que é verdadeiro e noque é falso e agir de acordo com a verdade. Isso é bastante importante em nossa época em que se dissemina Fake News mais do que os vírus da atual pandemia. A virtude da coragem que se propagou na época da alma da razão e do sentimento, na época greco-romana teve seu auge na época cavalheiresca arturiana. Ela se transmuta, sobretudo pelo impulso crístico em amor, compaixão (eis o exemplo de Francisco de Assis). A virtude da prudência, capacidade de equilibrar os impulsos mais básicos do ser humano como desejo, cobiça, etc., se transmuta em arte de viver em nossa época. A harmonização dessas três virtudes em justiça é ainda tarefa para o futuro. Mas o desenvolvimento desses atributos no futuro da humanidade é o que irá formar os envoltórios do Cristo. Ele é filho de Deus, mas também filho do Homem. Mas esse ser humano do qual ele é filho não está pronto, está em processo, em vir-a-ser. É nesse sentido que o maior valor que podemos cultivar em nossa época é o sentido de corresponsabilidade do que fazemos e de como atuamos no mundo.
Pode ser que pareça ingênua a afirmação de que o momento atual nos dá a oportunidade de repensar nossas atitudes no pós pandemia e que isso deverá significar uma mudança de direção. Muito são céticos a esse respeito e creem que tudo voltará à mesma situação de antes. Mas, se consideramos que as mudanças relevantes não são o que esperamos que os outros façam, mas o que cada um de nós pode fazer, então teríamos um grande potencial de mudança no despertar do indivíduo livre que toma decisões de mudanças conscientes a partir das intuições que obtém espiritualmente. Nós nos ligamos ao Cristo e ele nos salva, a fé e o amor que ele desperta em nossos corações nos permitem ser, com ele, os salvadores do mundo.
Carlos Maranhão