Palestra: A Trindade em Deus e a trimembração no mundo

A compreensão do que é a Trindade talvez seja uma das questões mais difíceis no Cristianismo. Desde o princípio da formação de uma teologia cristã, existe o esforço de tentar explicar, de alguma forma, o que é a Trindade. O problema consiste no fato de que o Cristianismo é uma religião monoteísta, isto é, temos somente um Deus, mas, mesmo assim, falamos do Deus Pai, do Deus Filho e do Deus Espírito. Assim, surge a pergunta: são três ou é somente um? Como um Deus pode ser, ao mesmo tempo, uma Trindade? A maioria das pessoas, provavelmente sem pensar muito sobre o assunto, diriam que nos dirigimos às três entidades divinas: o Pai, o Filho e o Espírito. E talvez considerem o Pai como realmente sendo Deus. Não é possível solucionar esse paradoxo entre um Deus e uma Trindade por meio da lógica, apesar das tentativas feitas nos últimos séculos da história do Cristianismo.
O Cristianismo tem as suas origens no Judaísmo e a religião judaica tem realmente um único Deus, assim como também o Islã, a terceira religião monoteísta. Somente o Cristianismo possui a ideia da Trindade, embora essa ideia de se ver o divino como uma Trindade não seja algo que tenha surgido com o Cristianismo. Na história da humanidade podemos ver que, nos seus primórdios, havia a tendência de ver o mundo de uma forma unitária, não necessariamente de se dirigir somente a um Deus, mas de ver a realidade do mundo como uma unidade. Nas correntes espirituais, que têm suas raízes no Hinduísmo, podemos reconhecer essa tendência de ver a realidade do mundo como uma unidade espiritual divina, e a vivência do mundo material como uma ilusão. Todo o anseio se dirige em poder superar a ilusão de se estar separado da unidade divina como, por exemplo, no voltar ao Nirvana. No decorrer da história surge a consciência da polaridade no mundo, a polaridade entre luz e trevas, entre espírito e matéria, entre o Divino e as forças adversas, entre o bem e o mal. Podemos ver, na Pérsia, essa ideia da polaridade entre o ser divino solar, Ahura Mazdao, e o seu adversário, Arimã. Mas também, na tradição asiática, vemos a sabedoria de compreender o mundo por meio da polaridade entre Yin e Yang. É no Egito que surge, então, a consciência da Trindade, quando se despertou para a necessidade de poder pensar o divino numa trindade, e também como meio de compreender o mundo. No mito de Osíris, Ísis e Horus, temos a imagem do divino como uma trindade: O Deus Pai (Osíris), a Deusa Mãe (Ísis) e o Deus Filho (Horus). Na antiga cultura egípcia existem estátuas de Ísis com seu filho Horus no colo que, se não soubéssemos provir dessa cultura, pensaríamos tratar-se de uma representação de Maria com o menino Jesus. Existe um relacionamento muito profundo entre Ísis, Maria e o que no Cristianismo chamamos de Espírito Santo, culminando na realidade da Sofia, representante da sabedoria. Assim, podemos ver o desenvolvimento da consciência da humanidade no esforço de compreender o divino e o mundo, nos passos da unidade, da dualidade e da trindade. Todos os três pontos de vista são válidos, mas refletem etapas distintas do desenvolvimento da consciência. O Cristianismo fundamenta a sua compreensão na ideia da Trindade. Mas o problema que temos é que, ao procurarmos entender o significado do Pai, do Filho e do Espírito apenas a partir dos seus nomes, a compreensão pode tornar-se muito intelectual e não atingir a realidade espiritual que está sendo indicada a partir desses nomes. Não é possível tentar entender a Trindade por meio de pensamentos lógicos e intelectuais. O Ato de Consagração do Homem, como chamamos o culto na Comunidade de Cristãos, pode nos ser uma ajuda nessa compreensão. Na missa católica, quando as pessoas fazem o sinal da cruz, dizem “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Isso também acontece no Ato de Consagração, mas aos nomes do Divino é acrescentado um verbo, e assim, entram num processo, ganham qualidades: “O Deus Pai seja em nós, o Deus Filho crie em nós, o Deus Espírito ilumine a nós”. Assim, a tarefa se torna, agora, pensar e sentir a Trindade em processos, em qualidades.
“O Deus Pai seja em nós”. Qual é a qualidade do “ser”, do fato de existir? Podemos procurar nos relacionar com a realidade de que algo existe, de que algo é, e sentir que a existência de tudo e de todos está fundamentada em um ser divino. Podemos formar na alma um momento de calma, olhar para o mundo e dirigir nossa atenção para algo concreto que está à nossa frente: um objeto no nosso quarto, uma árvore que vemos através da janela, um passarinho que escutamos cantar, e assim por diante. Estamos rodeados de coisas que existem. Mas por que elas existem? Poderiam não existir. Poderia não existir nada. Por que as coisas ganham existência? O que fundamenta a existência do mundo? Podemos sempre mais sentir que o mundo existe, a Terra existe, o solo que nos carrega e possibilita a nossa existência, tentar sentir um fundamento paterno que subsiste em tudo e em todos. Podemos sentir o fato de que as coisas existem, que existe a substância terrestre que vivenciamos como matéria, que existem os seres da natureza, e que nós, seres humanos, por existirmos, somos. A vivência do existir do mundo pode nos levar ao sentimento de uma qualidade, um lado do Ser Divino, que damos o nome de Pai: “O Deus Pai seja em nós”.
Olhando para a natureza, vemos tudo aquilo que tem uma realidade hoje, agora, neste momento. Vemos, por exemplo, uma árvore que existe, com uma determinada forma, composta de determinadas substâncias. Mas essa árvore não foi sempre assim. Há alguns anos atrás era pequena, e então cresceu, e agora está com flores, mas em alguns meses terá frutos maduros, e daqui há vários anos não estará mais ali, terá secado, apodrecido. Tudo o que tem a ver com processos vitais, podemos observar muito claramente que está se transformando continuamente no decorrer do tempo. Mas também as pedras, os minerais, as montanhas, estão em processos de transformação. É mais difícil observar os processos de transformação dos minerais, pois acontecem num período de tempo muito maior, por séculos, e até milênios. Toda a existência, tanto no mundo sensorial quanto no mundo espiritual, está em processo de transformação, de desenvolvimento. Nada existe que esteja totalmente parado, sem algum desenvolvimento. Tudo está em um devir. Temos o existir do mundo, mas temos também esse existir em um processo, em um devir. Agora podemos nos perguntar: de onde vem o impulso para os processos que ocorrem no mundo, o impulso do devir? Assim como podemos direcionar a nossa atenção para as coisas que existem no mundo, podemos também prestar atenção para os processos que acontecem ao nosso derredor: o vento que está soprando, a mosca que está voando, o calor ou o frio que está fazendo hoje, a chuva que está caindo, e assim por diante. Podemos tentar sentir que a possibilidade de que no existir do mundo haja processos, haja transformações, surja sempre algo novo, ocorra uma evolução, tem a sua fonte em um ser divino, que chamamos de Deus Filho. Por isso dizemos: “O Deus Filho crie em nós”.
E onde podemos vivenciar a terceira qualidade do ser divino, que chamamos de Deus Espírito? Podemos ver, de uma maneira muito clara, que a natureza existe, que possui uma substância, e que também está colocada em processos, em transformações. Mas esses processos de transformação não acontecem de uma forma caótica, sem um sentido. Muito pelo contrário, podemos reconhecer que na natureza está atuando uma imensa sabedoria. Cada pedra, cada planta, cada animal, e também o ser humano, em relação ao seu corpo, estão permeados de uma sabedoria divina. Podemos tentar sentir que essa sabedoria, que rege o mundo, emana de um princípio divino, que chamamos o Deus Espírito. Assim dizemos: “O Deus Espírito ilumine a nós”.
Na natureza, essas qualidades divinas atuam em tudo: como fundamento da existência, como fonte do impulso de desenvolvimento, como sabedoria que permeia o mundo. Elas também atuam em nós, no nosso corpo, enquanto somos parte da natureza. Mas como elas atuam em nossa alma? Se vemos as três qualidades do divino, a existência, o devir e a sabedoria, podemos ver que a existência da nossa alma, fundamentada no divino, não é algo tão evidente, como o é o corpo no âmbito da natureza, e que também não estamos, com a nossa alma, permeados de sabedoria divina como está a natureza. Mas a possibilidade de criar algo novo, a potência do devir, temos em nossa alma até de uma maneira mais potente do que a natureza. Nós, seres humanos, temos a possibilidade de sermos criativos, de criarmos algo que não existe na natureza. Isso se vê nitidamente em tudo o que o ser humano criou no âmbito da arte e da técnica. Temos em nós, uma grande afinidade com o Deus Filho, temos que, como semeados em nós, a potência divina de sermos criadores. Como exemplo, em que vemos a harmonia entre técnica e arte, podemos ver o processo necessário para fazer um violino. Um violino não existe na natureza, não foi criado por Deus.
O luthier conhece a ideia do violino. Ele toma a substância da natureza, a madeira, e dá forma a ela, de modo que se torne um violino. Ele domina a técnica de construir um violino, com o qual se pode tocar uma música, revelar uma obra de arte. Tanto a manufatura do violino, quanto a execução da obra de arte, são criações do ser humano. Para isso, ele necessita de substâncias da natureza, e da ideia proveniente do espírito. Mas ele é o criador. Podemos ver aqui as qualidades da Trindade: a madeira está ligada com o Deus Pai, a ideia do violino com o Deus Espírito, e o trabalho criativo do luthier com o Deus Filho. Vemos assim, em nossa alma, quanto estamos relacionados com a qualidade do Deus Filho, pois temos a possibilidade de colocar substâncias da Terra em processos que não acontecem originalmente na natureza. O exemplo do violino tem um caráter muito positivo, mas a questão é se naquilo que criamos realmente rege sabedoria, ou se essa potência criadora que temos em nós é usada de uma forma destrutiva. Em relação à nossa alma não podemos dizer que nossa existência está fundamentada no divino de uma forma óbvia, que a potência criadora em nós atua de forma sempre construtiva, que nossa alma está a todo momento permeada por sabedoria.
O ser humano tem a possibilidade de desenvolver a liberdade e, como tal, necessita querer, em liberdade, se unir ao divino. Por isso não podemos dizer que o Deus Pai é em nós, o Deus filho cria em nós e o Deus Espírito ilumina a nós. Mas podemos nos empenhar em unir a nossa alma ao divino, com a meta de que sempre mais o Deus Pai seja em nós, o Deus Filho crie em nós e o Deus Espírito ilumine a nós.

João F. Torunsky