Palestra: Pentecostes: O Espírito Sanador da individualidade e da comunidade

“Olhai as flamas
São elas a revelação do Espírito”
Pentecostes: O Espírito Sanador da individualidade e da comunidade

Desde o início da história da humanidade, até os nossos dias, podemos concentrar todas as questões religiosas e filosóficas em três perguntas:
• De onde viemos?
• Para onde iremos?
• Qual o sentido da nossa existência?
A nossa vida biológica tem dois limiares. Ela começa com a concepção, a gravidez e o parto. E termina com a morte. Essa é a vida biológica do nosso corpo, com o qual a nossa alma se liga e se encarna. E assim surgem as perguntas: se a alma tem uma existência antes da formação do corpo, e se ela terá uma existência depois da morte desse corpo. Onde nós estávamos antes do nascimento, onde estaremos depois da morte? E qual é o sentido de nos encarnarmos neste corpo e desenvolvermos uma biografia?
De um ponto de vista materialista, em que tudo se resume a uma realidade biológica, a resposta é bem óbvia: não há uma existência antes da concepção tampouco depois da morte. A vida de uma determinada espécie tem uma continuidade, mas a vida de um indivíduo tem um início e um fim. Nas espécies, a continuidade da vida ocorre pela reprodução, mas a vida de um indivíduo começa com a concepção e termina com a sua morte. Não existe nada antes da concepção ou depois da morte, segundo esse ponto de vista.
É evidente que a maioria das pessoas não vive num sentimento completamente materialista. Elas têm o sentimento de que há algo antes da concepção e também depois da morte. Como nos falta uma experiência concreta dessas realidades, enraizamos esse sentimento numa convicção, numa fé, numa esperança.
Assim, a grande maioria de nós compreende a realidade biológica, desde a época escolar, a partir do exercício de um pensar, que tem suas raízes numa visão materialista. Mas, ao mesmo tempo, possuímos um sentir que transcende a realidade meramente biológica material.
De um ponto de vista meramente biológico, o sentido da vida se reduz à procriação da espécie e, para o indivíduo, no anseio por prazer, riqueza e poder. Desse modo não é possível fundamentar um sentido elevado e moral para a vida. A convicção de que a vida tem um sentido mais elevado, moral, religioso, surge pela possibilidade de se ter um sentimento que transcende a realidade biológica.
Essa é a realidade atual da nossa consciência, mas nem sempre foi assim. A ciência espiritual nos relata que existe um desenvolvimento da consciência da humanidade e que, no passado, a consciência das pessoas era muito diferente da que temos hoje em dia. Não significa que elas possuíam mais fé, e acreditavam numa realidade espiritual divina mais do que hoje somos capazes de acreditar. Tinham, na verdade, uma outra consciência. Rudolf Steiner descreve que, na antiguidade, as pessoas possuíam uma recordação das próprias experiências vivenciadas antes da concepção, e se recordavam da realidade da existência da própria alma nesse período anterior ao nascimento. As pessoas tinham também uma vivência das almas que não estavam encarnadas, ou seja, tanto dos falecidos como dos ainda não nascidos. E tinham o pressentimento de como, depois da morte, seguiriam um caminho que as uniria a essas almas não encarnadas e também com a realidade espiritual divina do mundo. A convicção da realidade da existência da alma, antes do nascimento e depois da morte, era fundamentada numa recordação, numa vivência, num pressentimento.  Essa consciência das pessoas de outrora não era tão desperta como a que temos hoje, tinham o que se costuma chamar de uma consciência atávica, quase como de sonho. Percebia-se a realidade espiritual divina sem a análise pelo pensar lógico, que hoje todos nós podemos ter. Ainda hoje, muitas crianças possuem essa qualidade de consciência e, na maioria dos casos, não necessitam de uma comprovação da realidade espiritual divina do mundo, pois trazem em si sentimentos, vivências que, quando podem expressar, nos surpreendem pela sua sabedoria. Tem uma convicção inata da existência de uma realidade anterior ao nascimento e posterior à morte.
Na antiguidade, essa consciência levou a humanidade a um conhecimento do caminho da alma no processo de encarnação até o momento do nascimento e, no processo de excarnação, no caminho depois da morte. Ainda hoje encontramos em livros antigos uma pequena parte desse conhecimento, em que a alma faz um caminho de descida pelas esferas das estrelas, dos planetas, do Sol e da Lua, até chegar à Terra e se encarnar, e, depois da morte, da subida da alma no caminho pelas esferas da Lua, do Sol, dos planetas, até chegar às estrelas para se unir novamente com a realidade espiritual divina do mundo. Na esfera das estrelas vivemos uma realidade atemporal, o que se conhece por eternidade; na esfera da Terra vivemos uma realidade temporal, entre nascimento e morte. Para fazer esse caminho a alma necessita de ajuda. Necessita de uma força para encarnar-se e nascer na Terra, e necessita de uma força para, depois da morte, prosseguir no caminho até as estrelas. Na antiguidade, se reconhecia que essa ajuda, essa força, era proveniente do Sol. Quando nós, encarnados aqui na Terra, olhamos para o céu, vemos o Sol como um disco irradiante. Mas vivenciar o Sol espiritualmente é como vê-lo de um outro ponto de vista, pelo lado de dentro, e reconhecer que o Sol é habitado por seres muito elevados, guiado por um ser divino: o Espírito do Sol. Naquele tempo se reconhecia que o Espírito do Sol é o ser divino que nos dá a força para podermos nos encarnar. E quando nascemos, uma pequena chama desse fogo imensurável do Sol penetra na alma de cada ser humano, se ocultando em seu próprio íntimo. A tarefa, o sentido da vida, reside em encontrar essa chama do Ser do Sol em nossa alma, para que, então, depois da morte, tenhamos a força para voltarmos à esfera das estrelas. Do Sol não recebemos apenas a luz, o calor e a força da vida, mas recebemos também a força para nos encarnarmos e nos excarnarmos, e a chama divina que queima no íntimo da própria alma. Assim se formou nas culturas antigas a adoração ao Sol.
Na antiguidade, haviam respostas muito claras para as três perguntas existenciais do ser humano.
Onde está a alma antes do nascimento? Da esfera das estrelas, ela desce o caminho até a Terra, auxiliada pela força do Sol.
Onde está a alma depois da morte? No caminho de se unir novamente com a esfera das estrelas, auxiliada pela força do sol.
E qual é o sentido de nossa vida? Encontrar essa força do Sol, que está oculta na alma de cada um, essa força que nos ajudou a encarnar e que poderá nos ajudar a excarnar.
Essa recordação, vivência, pressentimento e conhecimento da realidade espiritual divina do mundo foi diminuindo no decorrer da história da humanidade e, quase já não existia a partir do século IX antes de Cristo. Já se passaram quase 3.000 anos desde que o conhecimento da realidade espiritual divina do mundo passou do estado de vivência para ser transmitido como ensinamento e tradição. Apenas alguns poucos indivíduos, a quem chamamos de iniciados, possuíam, sempre mais raramente, esse conhecimento a partir de vivências. A perda da vivência da realidade da vida, antes do nascimento e depois da morte, criou nas pessoas sempre mais o sentimento da separação, do abandono espiritual e do medo da morte.
Nós podemos hoje, com a ajuda da antroposofia, voltar a ter consciência para esses conhecimentos. Mas podemos agora, a partir do nosso pensar, procurar vivenciar a verdade desses conhecimentos, e não mais precisamos apenas acreditar nas tradições. Esse é um dos pensamentos mais importantes que hoje podemos vivenciar: que o Espírito do Sol, adorado pelas culturas antigas, é o Ser Divino que chamamos de Cristo. Pois quando a humanidade teve de perder a vivência da realidade espiritual divina para poder conquistar a liberdade, ela correu o risco de perder toda a ligação com a força do Sol, de não mais reconhecer o sentido da vida, de procurar a chama do Sol na própria alma, e assim, depois da morte, não ter mais a força de ascender às esferas das estrelas. Isso teria, como consequência, que as almas humanas, depois da morte, ficariam presas na esfera da Terra. Pelo amor infinito pelo ser humano, o Espirito do Sol, o Cristo, se colocou Ele próprio no caminho humano de se encarnar na Terra, de se unir a um corpo humano, com o Jesus, de tal forma que a humanidade pudesse reconhecer, no âmbito da Terra, o Espírito do Sol e, assim, despertar o impulso de procurar a chama solar divina no íntimo da própria alma, para que a alma do ser humano não ficasse aprisionada na esfera da Terra, na esfera temporal, mas conquistasse a força para, depois da morte, se elevar à esfera das estrelas, à esfera atemporal, à eternidade.
Nos três anos da vida do Jesus Cristo encarnado na Terra, temos como que a essência de todo o desenvolvimento da humanidade. Do Batismo até a Crucificação era possível que todos vivenciassem sensorialmente o Jesus e tivessem um pressentimento da presença do Cristo, do Espirito do Sol. Depois da Páscoa, somente os discípulos vivenciaram o Cristo ressurreto por meio de uma experiência sensorial espiritual. Mas, depois da Ascensão, eles perdem a possibilidade de vivenciá-Lo. São dez dias de um sentir-se abandonados, separados do Cristo, dez dias de um profundo sofrimento. Pentecostes é o momento em que cada um encontra a chama do Espírito em si mesmo. Esta chama tem sua origem no Espirito do Sol, no Cristo. Mas tem que ser encontrada individualmente, para então repousar sobre a cabeça de cada um.
O acontecimento histórico do nascimento, vida, morte e ressurreição do Jesus Cristo, que tem um significado para toda a humanidade, se repete na biografia de cada um de nós. Viemos das esferas das estrelas e fizemos o caminho pelas esferas dos planetas, do Sol, da Lua, até nascermos aqui na Terra. Isso foi possível pela força do Sol, pela força do Cristo. Nos primeiros três anos, essa força do Sol espiritual, do Cristo, atua a partir da periferia da criança e possibilita que ela aprenda as qualidades características do ser humano: conquistar o andar ereto a partir do próprio esforço, aprender a falar e a pensar. Mais ou menos aos três anos de idade, a criança fala pela primeira vez ‘eu’, se referindo a si mesma. Esse é o momento em que o Cristo deixa de atuar a partir da periferia, como o fez nos três primeiros anos, e uma pequena chama desse fogo solar penetra na criança, se ocultando na própria alma, e oferecendo a possibilidade de formar uma autoconsciência, para dizer, para ela mesma: ‘eu’. A pedagogia tem agora uma tarefa muito importante: ajudar a criança a desenvolver um anseio de procurar essa chama, em si mesma, alimentar a alma com impulsos espirituais, para que ela não se volte apenas à realidade material e sensorial do mundo, mas tenha a possibilidade de se recordar das vivências antes do nascimento, desenvolvendo o desejo de procurar o espírito divino em tudo e em todos. O ato cúltico para as crianças tem esse intuito e desperta a consciência de que o espírito divino vive e atua em tudo, nas pedras, plantas e animais, e também em nós. Assim, ajudamos a criança a reforçar o impulso com o qual nasceu: querer procurar o Espírito de Deus. Como adultos, nos ligamos com todas as tarefas que temos na vida, e com todos os desafios que o nosso destino nos traz. Mas a questão fundamental é se podemos sentir que o sentido da nossa vida está em procurar essa chama solar, esse Espírito de Deus, em tudo, em todos, e em nós mesmos. Podemos também dizer: procurar o Cristo em nós.
A imagem da chama, encontramos no Novo Testamento, no relato do acontecimento de Pentecostes: “E lhes apareceram umas línguas como que de fogo, que se distribuíam, e sobre cada um deles pousou uma”.  E temos essa imagem também na oração desta época no Ato de Consagração: “Olhais as flamas, são elas a revelação do Espírito”. A imagem da chama, do fogo, é uma imagem linda. Mas ela tem dois lados. Por um lado, uma chama gera luz e calor. Esse é o lado criador da chama. Mas uma chama, um fogo, consome, queima. O fogo, a chama, só é possível existir porque algo é consumido, queimado, sacrificado. Isso é uma realidade em todos os níveis. Quando acendemos uma vela, por exemplo na celebração do culto, temos a luz das velas que formam aquela atmosfera tão apropriada. Mas a vela apenas gera essa luz, e também calor, porque ela está queimando, se consumindo, sacrificando a sua substância. Aqui vemos uma realidade que está totalmente ligada à nossa consciência, à nossa autoconsciência, à consciência do nosso ‘eu’. A luz, o calor, que pode surgir dessa chama divina, que está oculta em nossa alma, a nossa autoconsciência, ela nos consome. Isso vemos no nível fisiológico. Acordamos de manhã com uma certa vitalidade. Vivemos o dia todo despertos, conscientes. Isso vai consumindo a nossa vitalidade, ficamos sempre mais cansados e temos então de dormir, perder a consciência, para revitalizar o nosso corpo. O que acontece a cada dia é um processo que vivenciamos também no decorrer da nossa biografia. Nascemos com muita força vital, tanto que nos é possível formar o corpo que então cresce e amadurece. No início da vida, o processo diário de desvitalização enquanto despertos e de revitalização enquanto dormimos, ainda gera um excesso de vitalidade. Mas no meio da vida, por volta dos 35-40 anos, a desvitalização vai superando a vitalização e entramos num caminho de envelhecimento que nos levará à morte. Por outro lado, nascemos com muita vitalidade, mas com pouca consciência, dormindo a maior parte do tempo. E, durante a vida, nos tornamos sempre mais conscientes, não só quantitativamente, mas, esperamos, também qualitativamente. A chama da consciência vai criando luz e calor anímico, e consumindo a vitalidade do corpo. O sentido desse processo é que, a partir da vida fisiológica que é consumida, criamos a possibilidade de formar na alma uma autoconsciência, e seguir um caminho de aprendizado, um caminho de autoconhecimento e autoeducação. Quanto mais avançamos em nossa biografia, mais reconhecemos que o processo de autoconhecimento e autoeducação é também um fogo que nos consome. Talvez a imagem que mais pode nos ajudar aqui, é ver esse processo como uma depuração, uma purificação. A purificação de minérios é feita nas usinas metalúrgicas pelo uso do calor, do fogo. O minério levado ao estado líquido pelo calor pode se separar das impurezas. Essa pode ser uma imagem para o processo que transpassa a alma quando, a partir do autoconhecimento, almeja um caminho de autoeducação. É necessário queimar, sacrificar determinados instintos, desejos, atitudes da nossa alma, para purificar o nosso ser do egoísmo, e criar, em nós, a luz e o calor que pode nos levar à formação da sabedoria e do amor.
Viemos das esferas das estrelas. Recebemos a força do Espírito do Sol, a força do Cristo, para nos encarnarmos. Pela sua força, em nossa periferia, aprendemos a andar, falar e pensar. Recebemos uma chama desse fogo no íntimo da nossa alma. Isso nos possibilita falar ‘eu’ de nós mesmos, formar uma autoconsciência, nos tornarmos individualidades livres. Mas esse caminho de nos tornarmos individualidades livres, nos leva naturalmente a nos tornarmos egoístas: separados da realidade espiritual divina e separados uns dos outros. Quanto mais individuais nós nos tornamos, necessariamente nos tornamos também mais egoístas. Se, nesse caminho, desenvolvemos um autoconhecimento, chegaremos um dia a reconhecer que somos egoístas e que esse caminho, de se tornar uma individualidade livre, nos leva a um ‘beco sem saída’, nos deparamos com um muro em nosso caminho: o meu próprio egoísmo me impede de ir à frente, e quanto mais me torno uma individualidade, mais egoísta me torno. Quem não se reconhece como um egoísta, ainda não se desenvolveu como individualidade ou não desenvolveu um autoconhecimento. E como superar o muro que nós mesmos formamos pelo nosso egoísmo? Uma possibilidade seria vê-lo como um beco sem saída e tentar voltar o caminho para trás. Isso significaria querer reverter o desenvolvimento da humanidade, perder a conquista de ser uma individualidade livre e almejar uma sociedade criada por relacionamentos determinados por leis, sem o respeito à liberdade do indivíduo, como foi no passado. Voltar para o passado não é possível, e se fosse, não faria sentido. O único caminho que faz sentido é, nessa imagem, pular o muro, ver se do outro lado do muro há um caminho que nos leva para frente. Mas de onde nosso eu egoísta pode ter a força de ‘pular o muro’? A única força que possibilita o desenvolvimento da individualidade, depois dela ter se tornada egoísta, é a força do sacrifício em liberdade. Não um sacrifício que seja a negação da individualidade, mas o sacrifício feito em liberdade, pela força da individualidade. Essa força do sacrifício é o que possibilita que o eu ultrapasse o egoísmo e, por assim dizer, ‘pule o muro’.
No Ato de Consagração escutamos as palavras no final do ofertório: “No sacrifício surja o fogo do amor criador de seres e a flama gere existência intemporal para que persista o bem”. Aqui temos novamente a imagem arquetípica da chama, a imagem de Pentecostes. Cada um tem uma chama sobre a sua cabeça. Mas como é gerada essa chama? A chama de Pentecostes é a chama que se forma quando o eu, pela força da sua individualidade livre, por ter encontrado a chama do Espírito do Sol, do Cristo, em si, consegue se sacrificar. A força do eu, de poder dizer ‘não eu’, é o que abre um espaço na alma para o outro, que nos eleva e possibilita receber a chama do Espírito, sanador do nosso próprio eu, sanador dos nossos relacionamentos sociais.

João F. Torunsky