Pontos de vista espirituais para compreender uma epidemia

Resumo de uma palestra proferida online no EcoSocial, no dia 20 de abril de 2020

Nesse momento, em que todos falam da pandemia do coronavírus, poderia nos surgir o sentimento de que os vírus são sempre organismos nocivos. Mas isso não é assim. Os vírus, como tantos outros microrganismos, fazem parte da nossa vida e, sem a presença deles, não poderíamos viver. Sobre as bactérias o conhecimento já é bem mais profundo e difundido. Provavelmente todos sabemos da importância das bactérias em nosso organismo. Sem a flora intestinal não nos seria possível a digestão. O conhecimento sobre os vírus é muito mais recente e só nas últimas décadas se pôde fazer pesquisas a seu respeito. Na natureza os vírus são os agentes dos processos transgênicos. Eles têm a possibilidade de alterar o material genético de um outro organismo. Por isso os vírus exerceram e exercem um papel fundamental na evolução das espécies na natureza, e também em nossa própria evolução. Disso decorre que tanto as bactérias como os vírus nos ajudam em nossa vida. É um caso excepcional quando um vírus se torna um agente provocador de uma doença.
Mas, quando isto acontece, temos um sistema imunológico que nos protege. Nosso sistema imunológico tem a possibilidade de reconhecer o que faz parte de nós e nos é saudável, e aquilo que não nos pertence e nos faz mal. Normalmente o sistema imunológico tem a possibilidade de nos defender contra os vírus provocadores de doenças. É o sintoma de uma fraqueza do nosso sistema imunológico quando não conseguimos nos proteger e ficamos doentes.
Assim, quando surge uma epidemia como a atual, podemos nos fazer duas perguntas:
– Por que um vírus se torna patogênico?
– Por que tantas pessoas estão enfraquecidas em seu sistema imunológico?
Em relação ao aparecimento do coronavírus podemos ser levados a formar uma consciência do relacionamento que temos atualmente com os animais. É do reino dos animais que surgem os vírus patogênicos. É necessário olhar para o modo como tratamos os animais na produção de alimentos e outros derivados. O modo como os tratamos é tão terrível que não se pode mais falar da criação de animais como antigamente, mas de um enorme processo industrial de produção de carne, leite, ovos, etc. O grande problema dessa realidade é que não apenas produzimos aquilo que queremos obter como produtos, mas também as doenças que criamos. No âmbito veterinário isso já se mostra evidente: 70% a 80% de toda produção de antibióticos é destinada para impedir que os animais morram nesse processo industrial. Somente 20% a 30% dos antibióticos produzidos no mundo são destinados para seres humanos.
Mas, em um âmbito espiritual, há um outro relacionamento que não se mostra tão evidente. O modo como lidamos com os animais na produção industrial provoca neles um sofrimento imensurável. Surgem assim, do reino animal, os vírus que provocam doenças em nós. Os sofrimentos que temos com a epidemia está num prato da balança e, no outro lado, o sofrimento que nós provocamos aos animais. Em um âmbito moral podemos sentir a grande culpa que temos perante os animais. Existe uma tendência no mundo de criar um equilíbrio entre o sofrimento que provocamos e o sofrimento que nos é provocado. Podemos sentir essa necessidade de equilíbrio como uma forma de justiça. E só então pode surgir o impulso de mudar o nosso comportamento em relação aos animais.
Uma outra pergunta que podemos nos fazer é o que os vírus necessitam para sobreviver, do que eles se alimentam. Existe com certeza uma resposta no âmbito biológico. Mas esse não é o nosso tema no momento. Também nós, como seres humanos, não necessitamos apenas de uma alimentação no âmbito biológico. Para nos desenvolvermos necessitamos também de um alimento anímico, de uma atmosfera social adequada. Nesse sentido podemos perguntar do que os vírus patológicos se alimentam animicamente. A resposta é surpreendente: eles se alimentam do medo e se desenvolvem em um ambiente de mentira.
A pandemia do coronavírus pode nos levar à consciência da culpa que temos perante os animais e da atmosfera de mentira e de medo que criamos em nossa sociedade. A curto prazo precisamos de um medicamento que nos ajude a superar a doença. A longo prazo precisamos dar um passo a frente em nosso desenvolvimento moral.
A segunda pergunta é: por que tantas pessoas estão enfraquecidas em seu sistema imunológico e se tornam doentes pela atuação do coronavírus?
O sistema imunológico é um reflexo da individualidade, do Eu de cada um de nós. Esse sistema reconhece, no âmbito metabólico, o que nós somos e o que nós não somos. O que enfraquece o nosso sistema imunológico já foi muito pesquisado pela salutogênese:
– Uma alimentação que sacia o nosso estômago mas não nos nutre.
– O sono perturbado que não nos revitaliza.
– A falta de movimentos sadios.
– A poluição da água e do ar.
– A poluição sonora.
– A poluição eletromagnética!
– Estresse.
– Sentimento de insegurança.
– Falta de confiança.
– Medo.
– Falta de criatividade.
– O hábito de criticar tudo e todos de uma forma destrutiva.
– Pensamentos negativos.
– Mágoa.
– Rancor.
– Ódio.
– Um modo materialista de pensar e sentir.
A lista é grande e poderia crescer muito mais. Mas a qualidade daquilo que nos enfraquece já nos fica bastante evidente.
A epidemia do coronavírus pode nos levar a perguntar: como está a nossa vida, a vida real de cada um de nós? Estamos vivendo um modo de vida que está nos enfraquecendo? E o que podemos fazer para fortalecer o nosso sistema imunológico? Para responder a essas perguntas é necessário apenas olhar para o oposto do que nos enfraquece.
O que nos fortalece no nível do corpo é uma alimentação saudável que realmente nos nutra, um sono que nos eleve ao espiritual e revitalize as nossas forças vitais, movimentos do corpo que façam sentido e o fortaleçam de uma maneira sadia.
O que nos fortalece no nível anímico são os sentimentos de gratidão, confiança e positividade.
O que nos fortalece no nível espiritual são pensamentos que superam o materialismo, a possibilidade de reconhecer um sentido em nossa existência, de reconhecer o espiritual no mundo e no outro, e desenvolver a força do Eu que assume a responsabilidade pelos seus atos.
Quando falamos da epidemia, falamos de uma doença e pensamos que ela é causada pelo coronavírus. Mas o vírus não causa a doença, ele apenas a provoca. A diferença entre causar e provocar é muito importante. No âmbito anímico nós conhecemos essa diferença muito bem. Se alguém me provoca a partir do modo de falar comigo, pode ser que eu reaja com agressão. A provocação vem de fora, da pessoa que me provoca. Mas o fato de eu reagir com agressão não é determinado pela outra pessoa, é algo determinado por mim. A causa da maneira como eu reajo está apenas em mim. E no decorrer do tempo é possível que se aprenda a não reagir com agressão a uma provocação. O vírus é uma provocação, ele provoca a doença. Mas se ficamos realmente doentes, ou não, é uma questão individual. A maioria das pessoas não fica doente. Assim surge a pergunta: por que eu fico doente? É possível se aprender algo com a doença? No nível fisiológico o sistema imunológico aprende com a doença e se cria uma imunidade. Mas de uma doença podemos aprender também em um nível anímico espiritual. Essa é a grande diferença entre uma doença nos animais e em nós. No reino animal, na natureza, as doenças têm um papel regulador. Quando um animal selvagem adoece, ele morre. Ele nada aprende com a doença. Para nós as doenças são oportunidades de aprender algo.
Existem as doenças comuns que acompanham a biografia de cada um de nós. Na infância e na juventude são, em geral, as doenças infecciosas, que têm como tarefa ajudar o organismo a desenvolver o sistema imunológico. Entre os 20 e 40 anos de idade as doenças psicossomáticas são as mais frequentes, que acompanham os processos de se encontrar a si mesmo, de encontrar a tarefa na vida, de formar os relacionamentos com os outros. Nesse período as doenças têm mais a tarefa de desenvolver, por assim dizer, um “sistema imunológico anímico”. A possibilidade de reconhecer quem somos e de nos aceitarmos tal como nós somos. Na terceira idade estamos mais sujeitos às doenças crônicas. Apesar dos sofrimentos que nos trazem, elas têm a grande tarefa de nos levar a experiência existencial de que nós temos um corpo que está fenecendo continuamente e um dia morrerá, e também que nós não somos em realidade o corpo, mas seres espirituais. Formamos como que “um sistema imunológico espiritual”.
Mas existem também as doenças inesperadas, que não estão ligadas com o desenvolvimento geral do ser humano, mas que nos levam a um desenvolvimento individual. Essas doenças estão ligadas com o destino, com o carma de cada um de nós. A pergunta “porque fiquei doente, e por que eu?” pode nos levar a descobrir aquilo que devo aprender nesse momento e qual a tarefa de aprendizado é provocada pela doença.
No caso de uma pandemia não se trata apenas de uma tarefa de aprendizagem para o indivíduo que adoece, mas a tentativa de despertar toda a humanidade para a tarefa que temos num âmbito global. Assim, perante a crise do coronavírus podemos perguntar: o que temos de aprender nesse momento como humanidade?
Muitas pessoas estão perguntando o que, e quem está por trás dessa pandemia? Quem está manipulando e regendo os eventos sobre a humanidade? Políticos? Grupos econômicos? O sistema financeiro? Círculos ocultos com poderes mágicos? É difícil saber.
Mas existe, com certeza, algo que já há muito tempo vem regendo a humanidade: uma determinada forma de pensar!
Desde o século 19 o modo de pensar materialista, mecânico vem regendo o mundo, um modo de pensar que vê o ser humano como uma máquina, e procura mecanizar todos os âmbitos da nossa vida. As consequências desse modo de pensar determinam sempre mais o nosso dia a dia.
E o modo como nós pensamos revela, em um nível espiritual, a qual senhor estamos servindo.
Albert Einstein disse as seguintes palavras: “O modo de pensar que criou um problema jamais terá a possibilidade de resolvê-lo”.
A pandemia, e o modo como lidamos com ela, é apenas um dos grandes problemas da atualidade. Todos os problemas globais gritam para despertar-nos. Para que mudemos o nosso modo de pensar temos de espiritualizar o nosso pensar, criar um pensar que reconheça o espiritual no mundo, na natureza, no ser humano. Essa é a ajuda que podemos receber da Antroposofia. Servir esse pensar significa atuar para que nós e a nossa sociedade não sejamos vistos e tratados como máquinas, mas que sejamos o palco onde a qualidade humana possa se desenvolver em liberdade e responsabilidade.
Como será a nossa vida depois da pandemia do coronavírus?
Albert Einstein disse também estas palavras: “A maior forma da loucura é deixar tudo como estava no passado e, ao mesmo tempo, ter a esperança que no futuro algo vá mudar”.
A crise atual nos obrigou a fazer, por um momento, uma pausa. É um espaço de tempo valioso para se perguntar como queremos viver daqui para a frente. Espero que possamos aproveitar a grande chance da pandemia para mudar algo em nossas vidas, tanto no âmbito pessoal, como no âmbito social.

João F. Torunsky