À esquerda: Fra Angélico, século XIV. À direita: Ícone russo do século XVIII.
O Evangelho de Lucas, nos seus dois primeiros capítulos, abre-se com as anunciações do nascimento de duas crianças, João Batista e Jesus. A primeira anunciação é feita a Zacarias, ancião sacerdote no templo em Jerusalém, casado com Elisabeth. A segunda, seis meses mais tarde, a Maria, jovem ainda solteira, prometida a José. As duas anunciações são reveladas por um anjo a descendentes sacerdotais de Aarão, mas o restante dos respectivos contextos são bem diversos. A primeira é dirigida ao pai de João Batista, Zacarias, de idade avançada, respeitado sacerdote casado com Elisabeth, também idosa e estéril. A segunda, dirigida a Maria, singela mãe de Jesus, ainda bem jovem e não casada.
O filho de Zacarias, João Batista, “carrega em torno de seu corpo o espírito do Pai” (epístola do Ato de Consagração do Homem na época de João), carrega nobremente o espírito primordial da criação do ser humano à imagem e semelhança de Deus. Ele prepara a vinda do Cristo, nele está representada toda a corrente espiritual do passado convergindo para esse acontecimento principal e único da história da humanidade: a encarnação do Filho de Deus num ser humano, em Jesus, a revelação do espírito no mundo físico-sensorial.
O filho de Maria, Jesus, oferecerá seu envoltório corpóreo ao Cristo, que como Filho do Homem, pela ressurreição, será o primogênito dos que nascerão do reino dos mortos, o primogênito de uma segunda criação, denominado por Paulo como o segundo Adão. Nele reside o germe do futuro.
Passado e futuro se encontram no que dá o profundo sentido à obra do Cristo, a ser revelada pelas palavras do Evangelho.
Nas imagens acima, as asas dos respectivos anjos apontam para um âmbito maior do que o espaço específico do acontecimento histórico: para a porta aberta no templo e para o jardim da morada de Maria, respectivamente. Sobretudo na obra de Fra Angélico, as asas do anjo Gabriel se estendem para o jardim fora da casa, onde no fundo está representado o Querubim expulsando Adão e Eva do paraíso. No processo de concepção de um ser humano somos levados a um âmbito bem além do espaço e do tempo, aos mais remotos primórdios da humanidade, quando pelo Logos, pela palavra divina o ser humano foi criado. Momentos especiais, arquetípicos na evolução da humanidade nos revelam essa verdade: NASCEMOS DE DEUS, do espírito. Assim também foi anunciado o nascimento de Abraão e de seu filho Isaac, quando seus pais já estavam bem idosos. Podemos mesmo contemplar tempos remotos, em que o ser humano ainda não havia se encarnado num corpo próprio, ainda sendo gerado pelos espíritos da Terra (Elohim), vivendo ainda no colo da nossa mãe Terra.
No entanto, as palavras dos anjos na anunciação apontam sobretudo para o futuro.
João Batista vai se colocar completamente a serviço da vinda do Senhor, vai preparar o seu caminho, vai formar o círculo dos discípulos, em cujo meio atuará o Cristo, enfim, vai batizar Jesus.
Jesus vai colocar a sua morada terrena completamente à disposição do espírito do Cristo. O mistério do Gólgota vai poder acontecer na Terra sobretudo graças a esses dois seres, que se sacrificaram por toda a humanidade. MORREMOS EM CRISTO.
Com a ressurreição e a vitória do Eu Sou do Cristo sobre as forças da morte, o ameaçado futuro da humanidade e da Terra se revela como uma estrela guia. Torna-se possível para todo ser humano alcançar novamente sua consciência espiritual perdida, agora numa nova clarividência sem a perda da sua autoconsciência. O acesso à comunidade dos seres divinos faz do ser humano um colaborador na obra divina para sempre.
Depois de uma longa época descendente, em que a consciência espiritual foi se turvando até o mais radical materialismo, o Eu individual agora está desperto. Agora cabe a esse Eu individual, com a força de Cristo, acompanhar no futuro, conscientemente, com as forças do coração a ascendente revelação divina que se abre novamente aos sentidos humanos. Desde a ressurreição, o Cristo vem se manifestando na Terra e agora pode ser acolhido pela alma humana no processo de reintegração na sua pátria espiritual. O futuro imediato do ser humano é o acender dos seus sentidos espirituais numa ligação existencial com o Cristo. Esta é a a esperada vinda do Cristo, ou seja, a sua aparição no mundo etérico. Isso é o que vislumbramos no começo do ano cristão, na época do Avento. Não podemos nos fechar a esse acontecimento, a ponte para a meta futura da humanidade. PELO ESPÍRITO SANTO REVIVEMOS!
Ao nosso redor todas as conturbações nos céus, na natureza, no íntimo da alma, no âmbito social, são os sinais que anunciam o grande acontecimento da nossa época. Se estamos abatidos, sem esperança, nos ergamos com as asas que podem crescer na nossa alma pelo encontro com o Cristo, pelo despertar de uma nova consciência! Isso é o que podemos alcançar juntos em comunidade, na vivência dos sacramentos no novo ano cristão!
Helena Otterspeer