Reflexão para Domingo, 9 de março

Referente à perícope de Lucas 11, 14-26

“Todo reino dividido, será devastado. Toda casa dividida, cairá!”

A primeira divisão que vivenciamos ao encarnarmos consista na separação: mundo interior x mundo exterior.

Ainda no ventre, também âmbito corpóreo, existe uma íntima conexão entre nosso corpo físico e o organismo materno.

No nascimento esta ligação é cortada. Começamos a nos separar do mundo que nos circunda. Este processo de separação se intensifica durante toda a nossa existência terrena. Estabelece-se cada vez com maior intensidade tal divisão: meu mundo interno x o mundo lá fora. Também poderíamos chamar: “minha casa ou meu reino” x “os reinos deste mundo”.

Numa perspectiva teológica, este fato é consequência da chamado Pecado Original, ou da “saída do Paraíso”.

Na vida pré-natal nossa consciência (ainda que profundamente adormecida), vive em íntima conexão com o Mundo do Espiritual ou com a Casa do Pai.

Para que possamos desenvolver nossa individualidade, precisamos nos separar, nos tornar independentes e autônomos. Disto decorre a divisão, a que Cristo se refere. As forças adversárias se aproveitam desta “brecha” e ampliam cada vez mais tal divisão.

Diante desta situação, o ser humano vivencia um processo de isolamento em relação ao mundo espiritual. Em grego se usava a mesma palavra para significar “deserto” e “isolamento/solidão”.

Quando se diz que todo reino dividido será devastado, numa tradução literal poder-se-ia dizer que “todo reino que se divide, será desertificado, se tornará um deserto”.

Ou seja, a consequência desta divisão primordial, intensificada pelas forças adversárias, conduz o ser humano ao deserto da alma, a desertificação em sua própria casa terrena, em seu próprio reino, no qual ele se percebe solitário e perde a capacidade de se comunicar com o mundo espiritual. No deserto da alma o ser humano emudece em relação ao Espírito!

Quem pode redimir esta divisão, esta separação?

Somente a força que vive no nosso “Eu”.

Apenas nosso “Eu”, o cerne de nossa individualidade, consegue unir estes reinos, transitar entre a nossa casa terrena e a casa do Pai, em comunhão com todos os demais reinos do universo.

No Ato de Consagração do Homem, no início da Comunhão, escutamos as palavras de Cristo, que diz estar em “plena paz com o mundo”. Aqui a “paz com o mundo” aponta para a capacidade de superar esta divisão arquetípica da condição humana. Ser capaz de unir de novo o que foi separada. Vencer o isolamento e a solidão do deserto da alma, para nos conectarmos de novo com o Reino do Espírito, mesmo que continuemos a viver encarnados aqui na Terra. A paz é a condição anímico-espiritual onde as divisões e as divergências são superadas. (Aqui também se abre uma perspectiva interessante, frente às tantas guerras e divisões que observamos na atualidade!)

Esta mesma passagem do Ato de Consagração reforça que é a partir da força do ”Eu”, que se estabelece a paz com o mundo. Cristo nos estimula a encontrarmos em nós esta força, a confiar nela e desenvolvê-la, no sentido das palavras do Evangelho de João (16,33):

“No mundo tendes aflição, conflito, divisão. Tende coragem! “Eu” venci o mundo!”

No “Eu” humano vive a força que vence toda divisão, toda separação, e que nos une de novo ao Espírito.

Renato Gomes