Época de Advento
Referente ao perícope de Lucas 1, 46-55
“Minha alma engrandece ao Senhor!
Meu espírito se alegra em Deus, meu salvador!
Pois olhou para a insignificância de sua serva…”
Estas palavras são o início do cântico de Maria, tradicionalmente chamado de “Magnificat”, cujas palavras expressam a exultante alegria que transborda de seu coração. Esta alegria surge da conscientização de que Deus “olhou a insignificância de sua serva”, ou seja, trata-se da vivência da alma humana que em certo momento percebe que está sob o olhar divino.
Num sentido genérico podemos dizer que Deus sempre está olhando para cada um de nós, mas tomar plena consciência deste fato é de grande significado para a própria alma.
O que significa, vivencialmente, que Deus está olhando para nós?
Todos bem conhecemos a vivência, muitas vezes sofrida e dolorosa, de percebermos que outra pessoa nos olha de maneira crítica ou má intencionada… Quem não sentiu “debaixo da pele” aquele olhar que humilha, despreza ou fere?
Podemos, com certeza, olhar as coisas com um olhar despretensioso e neutro, de modo que não evoque em nós quaisquer sentimentos. Isto é mais fácil com objetos inanimados e que nos são indiferentes. Entretanto, cada vez que olhamos para o ser humano surgem na alma, muitas vezes de forma pouco consciente, diferentes sentimentos ou emoções; simpáticas e amorosas, pois temos afeição por aquela pessoa; ou antipáticas e negativas pois talvez alguma experiência prévia com aquele individuo nos evocou tais sentimentos…
A partir desta experiência humana, cabe mais uma vez retornar a pergunta: como Deus, então, olha para o ser humano?
Se partimos da concepção de que o Criador nos conhece até melhor que nós mesmos, não é possível ocultar algo de seu olhar…
“…olhou para a insignificância de sua serva”
Maria (que aqui aparece como porta-voz da alma humana), entretanto, exulta ao perceber que está sob o olhar divino, pois não se trata de um olhar que critica, dilacera ou menospreza a latente “insignificância” do ser humano, mas que ao contrário, amorosamente é capaz de ver algo que está oculto até mesmo para nossa consciência, pois Deus é capaz de olhar-nos de tal modo que traz à luz de nossa consciência algo que talvez ainda não tenha se manifestado ou desenvolvido em nós, mas que o albergamos em potencial e um dia poderemos nos tornarmos nisto. E consegue olhar e reconhecer a imagem oculta de nosso próprio devir.
Alguns artistas contemporâneos estão desenvolvendo técnicas de trabalhos com luz e sombra, que estão sendo denominadas Shadow Art (em tradução livre: arte com sombras). Tais artistas constroem com materiais simples ou mesmo com sucata ou lixo, esculturas, que quando observadas não mostram ao olhar comum muito mais que um monte disforme de sucata ou de metal retorcido. Contudo, no momento em que tais esculturas são iluminadas por uma fonte de luz que provem de um lugar bem definido, elas projetam sombras que “revelam” algo que até então nosso olhar comum não era capaz de reconhecer.
Trata-se de um impulso artístico e criativo que muito pode nos ajudar em duas direções:
– inicialmente, podemos nos sentir estimulados a olhar a vida e as pessoas a nossa volta a partir de outros pontos de vista e assim aprender a descobrir e iluminar novos aspectos daquele ser, em especial quando nos acostumamos a vê-lo principalmente em seu lado menos nobre ou menos significativo…
– podemos também nos colocar no lugar de Maria e fazer-nos a pergunta: O que vive oculto em nosso ser e não chega a ser percebido, mas que se manifesta quando somos iluminados pelo olhar divino?
Tudo isto aponta para uma vivência primordial do Advento, pois neste período de preparação para o Natal, podemos tentar nos predispor animicamente a manter viva na alma a pergunta:
Qual é o foco que Deus usa para olhar a humanidade?
Como seu olhar divino ilumina cada ser humano?
Com certeza, Seu olhar amoroso vê algo na humanidade e em cada ser humano em particular que lhe motiva ininterruptamente a nos presentear com o impulso renovador do Seu Filho, quer nascer cada vez de novo no coração humano.
Renato Gomes