Reflexão para o domingo, 20 de setembro

Referente ao perícope de Mateus 6, 13-34

“Quando jejuardes…”

Os antigos entendiam que a privação de alimentos por um determinado período de tempo poderia ser um exercício religioso em si ou parte de uma exercitação mais ampla. O que acontece conosco durante um jejum?

Nosso corpo é privado de alimentos. Se isto ocorre por um período prolongado, vários processos bioquímicos se alteram em nossas células. Aos poucos o metabolismo começa sofrer uma transição e substâncias nutritivas que estavam apenas armazenadas em algumas partes do nosso organismo começam a ser mobilizadas para produzir a energia (fogo) que necessitamos para nossas funções vitais. Quanto mais prolongado o tempo de jejum, maior a mobilização dessas reservas. Tais reservas são normalmente conhecidas como ácidos graxos ou gorduras, que, ao longo da vida, se condensam e se ‘solidificam’ ao redor dos órgãos internos e debaixo da pele. Se nos alimentamos ininterruptamente e, na atualidade muitas vezes comemos mais nutrientes do que de fato necessitamos, este princípio de acumulação e condensação vai progredindo, ao mesmo tempo, se desenvolve paralelamente outro mecanismo anímico que se manifesta como uma espécie de insaciedade, pois muitas vezes parece que quanto mais comemos, maior se torna a vontade de comer. Se tentarmos olhar o que nosso corpo físico e vital nos ensinam com tudo isto, poderíamos dizer numa linguagem imaginativa o seguinte: Na abundância de alimentos nosso corpo acumula a matéria condensando-a. Aqui se pode ver um processo de maior materialização ou, usando uma expressão da antiga doutrina dos quatro elementos, condensar é formar ‘terra’ (imagem para o estado mais denso da matéria).

Quando estamos num prolongado período de jejum todo este processo se redireciona para o lado oposto: as reservas materializadas e guardadas se tornam fluidas, circulam por nosso sangue e vão se tornando a fonte de energia para a vida. Aqui podemos falar do processo do ‘fogo’.

Neste sentido, podemos formar a imagem de que o jejum significa para o nosso corpo a transição da ‘terra’, o elemento mais denso, para o ‘fogo’ o mais sutil. Talvez os antigos, mesmo sem conhecer muito do que a ciência e a biologia nos ensinam hoje, tinham por meio da intuição um conhecimento destes processos.

Se nos direcionamos para a Terra, nos envolvemos cada vez mais com as forças e com as leis que regem o mundo físico. Quando almejamos alcançar os Céus, temos que nos orientar na direção oposta e buscar nos compenetrar com o calor e o fogo do Espírito. Fica assim evidente, a partir desta abordagem, o princípio desta antiga prática religiosa: Jejuar significava se elevar da Terra ao espiritual! Também no judaísmo a prática do jejum era conhecida e muito respeitada. O que o cristianismo acrescenta a tudo isto?

“…quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas; porque desfiguram os seus rostos, para que aos homens pareça que jejuam.(…) Tu, porém, quando jejuares, unge a tua cabeça, e lava o teu rosto, para não pareceres aos homens que jejuas…”

Cristo coloca a ênfase na atitude interna. Não faz sentido jejuar a partir da sensação de que se suporta um pesado jugo; pior ainda, seria fazer disto uma manifestação exterior, para chamar a atenção dos demais. “Lavar o rosto e ungir a cabeça” eram maneiras de expressar bem-estar interior e alegria. A prática do jejum não significava uma meta em si, mas uma maneira de se ‘soltar’ um pouco do peso terreno e se elevar interiormente ao fogo Espírito. Isto deveria trazer bem-estar e alegria ao ser humano, do contrário a prática se esvazia de sentido religioso.

Na atualidade, contudo, o jejum deixou de ser para a grande maioria uma prática para o desenvolvimento interior como o foi no passado. Estão mais em voga, hoje, práticas dietéticas com finalidades terapêuticas, nutricionais ou até mesmo estéticas. Entretanto, mesmo na modernidade, estamos sujeitos a situações em que nos vemos privados de algo que nos é importante. Podemos em tais situações falar num sentido figurado de um ‘jejum’. A inesperada virada mundial que se espalhou pela humanidade trouxe consigo inúmeros destas privações. Houve ‘jejuns’ nas relações e contatos entre as pessoas, que tiveram que se manter mais isoladas umas das outras, ‘jejuns’ nas atividades de lazer e ao ar livre para manter-se em casa durante a quarentena, ‘jejuns’ para crianças, jovens e tantos outros alunos e estudantes, que tiveram que se privar das aulas presenciais e do convívio com colegas e professores, entre outras tantas situações. Também foi necessário cumprir um ‘jejum’ em relação à participação nos cultos. Muitos sentiram profundamente esta privação. Aqui cabe também uma reflexão. Todo este período em que não foi possível celebrar o Ato de Consagração do Homem com a presença da comunidade deve ser visto como uma tragédia ou uma grande perda? Ou, o quanto esta privação exterior foi um impulso para mobilizar reservas adormecidas do fogo interior na tentativa de buscar uma íntima conexão com o Espírito?

Aos poucos o Ato de Consagração do Homem retornará a ser celebrado com a presença da comunidade. Almejemos do fundo do coração que este retorno após o prolongado ‘jejum’ nos encontre de ‘rosto lavado e cabeça ungida’ co-celebrando diante do altar de Cristo.

Renato Gomes