Época de Trindade
Referente ao Perícope Marcos 8, 27-33
Nesta breve conversa com os discípulos, Pedro nos surpreende: Num primeiro momento ele diz: “Tu es o Cristo!”, mostrando assim que é capaz de explicitar o que com certeza pulsava talvez não tão claramente na alma dos demais discípulos, mas logo a seguir, repreende o mestre, exigindo que não pronuncie aquelas palavras, pois ele, Pedro, não quer que aquilo aconteça (compare-se aqui o paralelismo com a narrativa mais detalhada de Mateus 16, 22). Pedro, neste momento, se advoga o direito de pedir a Cristo que silencie, que Ele se cale…
Pode o ser humano pedir a Cristo que se cale?
Ele, que é o Verbo, a própria essência da Palavra, pode ser calado?
Que sentido haveria se a força da palavra se calasse?
O poeta e escritor argentino, Horacio Guarany, compôs certa vez os seguintes versos:
Si se calla el cantor calla la vida
Porque la vida, la vida misma es todo un canto
Si se calla el cantor, muere de espanto
La esperanza, la luz y la alegría
Se se cala o cantor, cala-se a vida,
Porque a vida, a vida mesma, é toda uma canção,
Se se cala o cantor, morrem de medo
A esperança, a luz e a alegria.
O poeta aponta em seus versos que há situações que não podem ser silenciadas. Calar-se significa omitir-se, não querer se comprometer com situações injustas e opressoras que estão à nossa volta, por medo ou por comodidade…
“… pois o Filho do homem teria que padecer muito, seria rejeitado pelos anciãos e príncipes dos sacerdotes, pelos escribas, e seria morto (por eles)”
São estas as palavras que Pedro tencionava “calar”…
Enigmaticamente, em nossa época, estamos vendo um massivo desmantelamento de incentivos e estímulos a muitas iniciativas relacionadas à vida cultural (também neste contexto se encontram as atividades religiosas) que subitamente, deixaram de acontecer de forma livre e aberta e que agora estão diante de enormes dificuldades para reencontrar um caminho de volta… Em nosso país, mais explicitamente, se preconiza abertamente a censura e a proibição a muitas formas de manifestação cultural e ideológica que contrarie a maneira de pensar “dominante” do momento. É importante estar atentos às tais tentativas de querer fazer calar o que é diferente ou discordante daquilo que pensamos. Pedro estava tão próximo das intenções do mestre, ao reconhecê-lo como o Cristo, o Messias, mas no momento seguinte ficou tão distante…
“… afasta-te Satanás, porque não compreendes as coisas de Deus!”
A atualidade desta narrativa do Evangelho (e de certo modo também do poema-protesto de Horácio Guarany) é surpreendente, se quisermos meditá-la à luz dos acontecimentos atuais. A essência do impulso espiritual que Cristo trouxe à Terra não pode ser calada, do contrário se “calaria” também a própria vida.
Que se levanten todas las banderas
Cuando el cantor se plante con su grito
Que mil guitarras desangren en la noche
Una inmortal canción al infinito
Que se levantem todas as bandeiras
Quando o cantor se instale com seu grito,
Que mil violões sangrem na noite
Uma imortal canção ao infinito
Que sempre nos seja possível lembrar que a mensagem de Cristo é comparável a um ‘canto’ que não pode nem deve ser silenciado pelo medo, pela opressão nem pelo comodismo. A tarefa é deixar soar Sua Voz, Sua Palavra, numa ‘canção’ que reverbere como mensagem do ser humano de volta ao infinito, ainda que para tanto tenhamos que suportar desafios e sofrimentos, inerentes ao próprio ato sacrificial de Cristo.
Renato Gomes
Segue abaixo o texto completo do poema, para aqueles que se interessarem.
Si se calla el cantor
Canção de Horacio Guarany, nome artístico de Eraclio Catalin Rodríguez Cereijo (Las Garzas, 15 de maio de 1925 – Luján, 13 de janeiro de 2017), foi um cantor nativista e escritor argentino. Esta canção tornou-se mais conhecida após a sua gravação pela cantora Mercedes Sosa.
Si se calla el cantor calla la vida
Porque la vida, la vida misma es todo un canto
Si se calla el cantor, muere de espanto
La esperanza, la luz y la alegría
Si se calla el cantor se quedan solos
Los humildes gorriones de los diarios,
Los obreros del puerto se persignan
Quién habrá de luchar por su salario
Que ha de ser de la vida si el que canta
No levanta su voz en las tribunas
Por el que sufre, ´por el que no hay
Ninguna razón que lo condene a andar sin manta’
Si se calla el cantor muere la rosa
De que sirve la rosa sin el canto
Debe el canto ser luz sobre los campos
Iluminando siempre a los de abajo
Que no calle el cantor porque el silencio
Cobarde apaña la maldad que oprime,
No saben los cantores de agachadas
No callarán jamás de frente al crimen
Que se levanten todas las banderas
Cuando el cantor se plante con su grito
Que mil guitarras desangren en la noche
Una inmortal canción al infinito
Si se calla el cantor calla la vida.