Reflexão sobre o Evangelho de João, 17 de abril

“Nicodemos respondeu, e disse-lhe: ‘Como pode ser isso?’ Jesus respondeu, e disse-lhe: ‘Tu és mestre de Israel, e não sabes isto?
Na verdade, na verdade te digo que nós dizemos o que sabemos, e testificamos o que vimos; e não aceitais o nosso testemunho. Se vos falei de coisas terrestres, e não crestes, como crereis, se vos falar das celestiais? Ora, ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do homem, que está no céu. E, como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado; para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.
Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. Quem crê nele não é condenado; mas quem não crê já está condenado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus. E a condenação é esta: Que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más. Porque todo aquele que faz o mal odeia a luz, e não vem para a luz, para que as suas obras não sejam reprovadas. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, a fim de que as suas obras sejam manifestas, porque são feitas em Deus.’”

João 3, 9-21

Na Bíblia podemos ler: “E disse Deus: ‘Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança’” (Gênesis 1,26).
Isso aconteceu no sexto dia da criação. Depois temos o relato do paraíso e da tentação de Adão e Eva pela serpente. Normalmente se olha para essa tentação como algo negativo, que nos levou ao pecado original. Mas na realidade ela é a única possibilidade de que a criação do homem, como imagem e semelhança de Deus, possa prosseguir. Pela tentação da serpente, Adão e Eva comeram da árvore do conhecimento e começaram a ter a possibilidade de desenvolver um livre arbítrio, entraram na esfera da liberdade. Deus reconhece isso e diz depois da tentação: “Então disse o Senhor Deus: ‘Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal’” (Gênesis 3,22). Pela ajuda da serpente, da influência luciférica, ganhamos a possibilidade do conhecimento e estamos nos tornando semelhantes ao Divino: com a possibilidade de reconhecer o bem e o mal e, em liberdade, tomar a decisão, com qual qualidade queremos nos unir. Na realidade deveríamos sentir uma profunda gratidão pela serpente, que nos ajudou nesse caminho, mesmo que a intenção dela seja nos separar do Divino.
Mas tudo isto teve uma consequência para a serpente: “Então o Senhor Deus disse à serpente: ‘Porquanto fizeste isto, maldita serás mais que toda a fera, e mais que todos os animais do campo; sobre o teu ventre andarás, e pó comerás todos os dias da tua vida’” (Gênesis 3,14). A serpente é amaldiçoada a ser presa à terra, a rastejar sobre o seu ventre. Seria uma ingenuidade muito grande pensar que esses relatos tratam de realidades da natureza, que está se falando aqui de uma cobra. Seria não apenas uma ingenuidade, mas na realidade um materialismo religioso. Esses relatos são imaginações, se referem a acontecimentos espirituais. A realidade desses relatos podemos verificar na nossa própria alma. O fato de que ‘comemos da árvore do conhecimento’ vivenciamos todos nós, pois temos, uns mais, outros menos, a possibilidade de reconhecer o que é o bem, e o que é o mal. Que a partir dessa possibilidade entramos na esfera da liberdade, vivenciamos também, pois muitas vezes não sabemos como nos decidir. E muitas vezes todas as preces para que Deus nos diga o que temos que fazer, não nos ajuda: ele nos deixa livres. Mas o que em nossa época podemos vivenciar com muita clareza é que a possibilidade do conhecimento, que ganhamos da serpente, de Lúcifer, foi amaldiçoada, se ligou a um impulso arimânico: o conhecimento do ser humano se aprisionou sempre mais à matéria, se tornou materialista. Somos nós, com o nosso pensar, que rastejamos por sobre a terra. A serpente é amaldiçoada em nossa consciência.
Devemos ter uma imensa gratidão pela serpente que nos deu a possibilidade da liberdade. Mas devemos ter também uma enorme responsabilidade de redimir a serpente, libertando-a da prisão da matéria, de ‘levantar a serpente no deserto’. A qualidade horizontal, que o nosso pensar desenvolveu com o materialismo, temos de transformar em uma qualidade vertical, dar a verticalidade humana à serpente, a possibilidade de unir céu e terra. Na espiritualização do nosso pensar erguemos a serpente, redimimos Lúcifer. Essa é a tarefa do Filho do Homem e essa é a nossa tarefa como aspirantes a nos tornarmos Filhos do Homem.

João F. Torunsky