“Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos.
Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite mostra sabedoria a outra noite.
Não há linguagem nem fala onde não se ouça a sua voz. A sua linha se estende por toda a terra, e as suas palavras até ao fim do mundo. Neles pôs uma tenda para o sol, o qual é como um noivo que sai do seu tálamo, e se alegra como um herói, a correr o seu caminho. A sua saída é desde uma extremidade dos céus, e o seu curso até à outra extremidade, e nada se esconde ao seu calor. A lei do Senhor é perfeita, e refrigera a alma; o testemunho do Senhor é fiel, e dá sabedoria aos símplices. Os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor é puro, e ilumina os olhos. O temor do Senhor é limpo, e permanece eternamente; os juízos do Senhor são verdadeiros e justos juntamente. Mais desejáveis são do que o ouro, sim, do que muito ouro fino; e mais doces do que o mel e o licor dos favos. Também por eles é admoestado o teu servo; e em os guardar há grande recompensa. Quem pode entender os seus erros? Expurga-me tu dos que me são ocultos. Também da soberba guarda o teu servo, para que se não assenhoreie de mim. Então serei sincero, e ficarei limpo de grande transgressão. Sejam agradáveis as palavras da minha boca e a meditação do meu coração perante a tua face, Senhor, Rocha minha e Redentor meu!
Salmo 19
No salmo 19, podemos acompanhar o processo de evolução do ser humano desde as esferas celestes no reino do Deus Pai, passando pela chegada na Terra com o Deus Filho e alcançando o aperfeiçoamento do ser humano num futuro indeterminado por meio do Deus Espírito. Aí temos o passado, o presente e o futuro.
Dos “céus” se faz ressoar a declaração da glória de Deus, como que a partir da música das esferas, e o firmamento anuncia sua obra. Os antigos que falavam da música das esferas expressavam uma realidade espiritual. Os céus não apenas iluminam, mas a partir de seus seres falam. A palavra hebraica para “declarar” aqui tem a mesma raiz da palavra “sepher” que quer dizer livro. Os céus estrelado é o livro primordial, o livro dos livros. Nele a humanidade antiga recebia a escritura sagrada revelada.
A menção ao firmamento fala do poder da vontade de Deus. Para o cientista moderno não é correto falar de um firmamento, pois as estrelas estão em constante movimento. Mas a antiga palavra “firmamento” nos transmite um mundo divino baseado numa eterna e profunda paz e silêncio. Nele há algo que transcende nossa vivência puramente física. Assim vivenciavam os antigos, no supraterreno, um mundo de permanência, segurança e silenciosa harmonia. A partir daí o salmo descende no caminho da encarnação, no tornar-se carne, no mundo do tempo: “Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite mostra sabedoria a outra noite”. Aqui trata-se de um processo de conhecimento que é anunciado no dia, mas só se realiza através da noite, no sono.
Finalmente o salmo chega à Terra, em sua existência espacial e material, mas a uma Terra que é ordenada e formada pelos céus: a linha de medida se estende por toda a Terra. O sol nos ofusca a visão dos céus e nos remete a olhar o campo terreno do trabalho, o mundo de nosso vir a ser humano. Para o ser humano no tempo em que a consciência do eu ainda não havia se fortificado, o sol era o ser que trazia a organização do dia. Em Cristo surge a divindade como o grande Eu Sou que traz ao ser humano a força diurna da consciência. O sol é apresentado pelo salmista de duas formas: como herói e como noivo. O herói é o ser humano excepcional que mostra aos outros o que significa na verdade ser humano: seguir um caminho. Isso demonstra o fato de o ser humano estar em constante desenvolvimento, em constante vir a ser. As antigas escolas de mistério também retratavam o discípulo consagrado como “Heliodromos”, o caminhador solar, aquele que segue com confiança constante o seu caminho celeste. Podemos ver, por exemplo, o percurso do Cristo com a força e determinação até completar sua missão. Mas Cristo não é apenas o modelo do herói que cumpre sua missão, ele é também o modelo do que é verdadeiramente ser humano, é o arquétipo do ser humano: ele é o noivo. O elevado Deus Filho chama-se noivo, pois a ele é prometida a alma humana com quem, em íntima comunhão, se unirá no casamento sagrado. A imagem do salmo para isso é: “Neles pôs uma tenda para o sol”. A palavra grega para tenda tem a mesma raiz que a palavra “morar” utilizada por João Evangelista em seu prólogo ao dizer: “O verbo se fez carne e morou entre nós”.
O salmo segue adiante como um hino dedicado à lei, torna-se abstrato. Podemos dizer que no céu estrelado vivenciamos o Deus Pai, no Sol, o Deus Filho, a vivência do livro sagrado representa então a esfera ainda futura do Espírito Santo, e por ser sua realização ainda coisa do futuro, daí sua tendência à abstração. Embora não tenhamos uma imagem muito positiva dos doutores da lei do Antigo Testamento, podemos vislumbrar nesse aspecto de leis, o bem atemporal. Isso no cristianismo dos novos tempos pode se tornar vivo ao interpretarmos essas doze sentenças como uma ordenação dos atos humanos baseada no harmonioso zodíaco celeste. Isso é seguido pelas metáforas do ouro e do mel. No ouro a humanidade sempre viu o símbolo da sabedoria. O mel sempre foi o alimento dos mistérios. Assim um dos pastores aos quais se anunciou o nascimento de Jesus dizia ter sonhado que sua alma recebia muita doçura, muito mel e muitas rosas.
No final o salmo volta-se para a interioridade humana com o desejo de que a palavra celeste possa também lhe pertencer, de que possamos não só ouvi-la, mas realizá-la. O ser humano chega ao si mesmo, onde não apenas “ouve” dos seres divinos a direção a seguir, mas começa a “falar” com os seres divinos. Aí ele se transforma e aprende a limpar-se da “grande transgressão”. Por meio do Espírito Santo, ele almeja alcançar a paz na rocha que é o Deus Pai nele e na redenção que é o Cristo nele.
Carlos Maranhão