Conto: Florência e Joaquim

Florência era uma jardineira que plantava flores. Ela vivia no seu sítio com seu esposo Joaquim, que era um hortelão. Ele tinha uma horta com várias verduras e legumes, e os dois, Florência e Joaquim, uma vez por semana enchiam sua carroça: Joaquim com as verduras da sua horta, Florência com as flores que plantava em pequenos buquês e levavam até a cidadezinha para vender na feira na praça principal. A vida era simples e os dois viviam tranquilos, mas começaram a chegar tempos difíceis, onde nem Joaquim nem Florência conseguiam vender sues produtos, sobrava muita coisa e eles não ganhavam o suficiente. Florência começou a ficar entristecida e desanimada também, já não cuidava dos seus canteiros com o mesmo empenho e a mesma alegria de antes. Reclamava de qualquer coisa, se aborrecia com pequenos detalhes. Joaquim às vezes tentava consolá-la, mas ele também andava preocupado, porque das coisas quem produziam não conseguiam vender o suficiente.
E assim, quando iam para a feira ela colhia bem cedo as flores, fazia os ramalhetes e buquês, deixava eles bem úmidos para que não perdessem a vivacidade. Mas mesmo assim, quando voltavam no fim da tarde todas as flores estavam murchas, diferente de épocas anteriores, quando mesmo que ela voltasse para casa com um ou outro buquê que não havia conseguido vender as flores se mantinham vivas e bonitas, e Florência podia guardá-las em um vazo na casa, ou doá-las para algum vizinho ou amigo. Agora não, não sobrava nenhuma flor que ficasse bonita por mais de um dia depois de ser cortada. Essa situação desanimava mais ainda Florência, e ela ia para a feira, tentava vender, e sempre estava aborrecida, de cara triste e às vezes até mal-humorada. Ainda assim, a vida exigia que Florência e Joaquim continuassem plantando duas verduras e suas flores para tentar revender na feira semanal da cidade. Um dia, trabalhando nos canteiros de flores Florência percebeu uma plantinha diferente que nunca havia estado ali. E ela pensou:
– Vou deixar essa planta crescer, o que será? Será que algum passarinho trouxe a semente e deixou cair aqui? Nunca vi isso antes, será que vai dar alguma flor?
E de fato passados alguns dias daquela jovem plantinha surgiram botões que abriram em flores bem pequenininhas, de um azul intenso que lembravam o céu. Florência até se alegrou um pouquinho, mas, ainda assim, desanimada, disse:
– Ah, são flores tão pequenas, nem adianta eu colocá-las nos buquês, ninguém vai se interessar por elas. Ninguém está se interessando pelas minhas flores, eu nem sei mais que sentido faz isso, continuar aqui, cuidando das flores.
Então Florência parou de olhar a plantinha com flores azuis e continuou tirando os matos e afofando a terra. Foi quando ouviu uma voz bem grossa e profunda que lhe disse:
– Você é que está fazendo as coisas totalmente erradas!
A princípio Florência pensou que era o seu esposo que estava falando com ela, mas ele estava bem longe na horta e aquela não era a voz dele. Olhou à sua volta e não tinha ninguém. E ela, assustada disse:
– Mas quem é que está aí? Quem está falando comigo?
E olhava para um lado, para o outro, e não via pessoa alguma.
– Olha aqui para baixo, sou eu que está falando com você!
E quando Florência olhou na direção daquela plantinha diferente que dava flores azuis ela viu bem próximo do chão e das raízes uma pequena criatura. Era um gnomo, que tinha um gorrinho azul e vestia uma roupa também azul e tinha uma cara bem enrugada. Ele estava olhando pra ela de cara bem feia, como se estivesse bem aborrecido.
– Quem é você? – Perguntou Florência-que coisa estranha? O que você é? Não é uma pessoa, tão pequenininho assim!
– Eu sou um gnomo, nunca ouviu falar dos gnomos? – Disse aquela criatura.
– Bom, eu já ouvi falar – disse a Florência – mas nunca havia visto nenhum!
– Claro que nunca viu, porque a gente nunca gosta de aparecer para as pessoas. Mas você está fazendo tudo errado e por isso eu decidi aparecer para você.
– Mas como é o seu nome?
– Gnox é o meu nome – disse ele.
– Gnox, me diga então, o que é que eu estou fazendo de errado? Eu continuo aqui cuidando todos os dias cuidando das minhas flores, das minhas plantas, mas nada dá certo! Elas murcham rapidamente, nada dá certo, ninguém quer comprá-las. E porque você diz que a culpa é minha? Eu estou fazendo o que eu sempre fiz!
– A culpa é sua – disse Gnox – porque você fica falando de um jeito que deixa as plantas tristes, e faz elas murcharem e faz com que as pessoas não tenham o menor interesse pelas flores.
– Eu? Do jeito que eu falo estou fazendo isso? Mas que história é essa? O que a maneira que eu falo tem a ver com as flores?
O gnomo Gnox disse:
– As pessoas não têm nem ideia, mas o que elas falam deixa coisas no mundo, e essas coisas agridem as plantas, as pessoas e as flores em especial são muito sensíveis. Só que o que as pessoas produzem quando falam, a maioria delas não vê e nem percebe. Mas os feitos, nós gnomos que vivemos aqui na terra, percebemos muito bem!
– Não é possível! – Disse a Florência – eu devo estar sonhando isso aí que você está dizendo não é possível, não é verdade!
– Eu vou lhe provar que é: arranque dois galhinhos que tenham florezinhas azuis como aquelas que estão ali na ponta do galho.
E Florência se abaixou, arrancou dois galhinhos onde haviam algumas pequenas flores azuis e Gnox disse para ela:
– Hoje vocês têm feira, não é isso? Leve estes dois galhinhos e coloque eles sobre cada uma das suas orelhas, pendure um de cada lado e fique observando as pessoas, você vai ver o que acontece – e desapareceu.
Florência depois ficou em dúvida: será que tudo havia sido uma ilusão, um sonho? Ela havia acordado tão cedo para fazer os buquês e ramalhetes, mas, o gnomo havia sido tão real, Gnox tinha falado para ela de uma forma tão clara que ela pensou que não custava nada tentar. Ela formou os buquês e os ramalhetes, umedeceu bastante os galhos com papel úmido para que não ressecassem e foi com Joaquim na carroça até a feira.
Armaram sua barraquinha, colocaram as verduras e os legumes de um lado como faziam sempre e os ramalhetes com flores do outro lado. E depois que tudo estava arrumado Florência pegou os dois galhinhos daquela planta desconhecida e colocou um por cima de cada orelha.
E para a surpresa dela algo de repente começou a acontecer: ela olhava para as pessoas em volta, quase não ouvia o que elas estavam falando, mas da boca das pessoas saíam coisas muito estranhas. Florência de repente tirou os galhosinhos e começou a ouvir normal e não via mais nada. Na hora que colocava os galhos ela deixava de ouvir as pessoas, mas parece que as palavras que as pessoas falavam se transformavam em imagens. Ela viu, por exemplo, uma pessoa que estava na barraca ao lado reclamando, xingando umas coisas bem desagradáveis e feias para a vendedora simplesmente porque ela não havia trazido as verduras e os legumes do jeito que ela queria e havia encomendado. Enquanto Florência olhava sem os galhosinhos na orelha ela ouvia as palavras feias e agressivas que aquela mulher dizia. Quando colocava os galhinhos na orelha, de repente ela deixava de ouvir as palavras mas via o que saia da boca daquela mulher: eram umas criaturas estranhas, pareciam animais grotescos: ela viu um porco com cabeça de dragão, viu uma serpente com cauda de escorpião – tudo isso eram animais muito estranhos, eram formados no ar como se fossem em formas de nuvens e saíam bufando e agredindo tudo que tinha na sua frente, como se quisessem morder e machucar as pessoas. É claro que Florência sabia que as pessoas não sentiam nada daquilo, mas aquelas coisas feias eram as palavras que as pessoas estavam dizendo: palavras feias, palavras agressivas, palavras com más intenções. Rapidamente Florência tirou galhinho das orelhas, ficou muito assustada e pensou:
– Gnox tem razão! Então quando as pessoas dizem palavras feias e desagradáveis elas se transformam nisso!
E falou para Joaquim:
– Joaquim, fique aqui cuidando das flores, das verduras, afinal não temos muitos clientes mesmo. Eu quero dar uma volta aqui pela feira, preciso ver algumas coisas – saiu da barraca e começou a andar pela feira.
Caminha por ali de repente ela percebeu que tinha pessoas conversando, havia uma que estava falando com muita raiva, dando bronca em outra. Ela ouviu o que estava dizendo a uma certa distância. Naquele momento colocou o galhinho com flores azuis em volta da orelha e agora ela viu que da boca daquela pessoa que falava agressões tão fortes não saia bichos nem animais estranhos, saiam flechas, muitas flechas que iam em todas as direções. Se fossem flechas de verdade teriam atravessado a pessoa que estava ali na frente e todas as outras que estavam perto, até Florença sentiu que algumas iam em direção dela, mas essas flechas eram invisíveis aos olhos, então ela pensou: “que desagradável, imagina você está conversando e a pessoa diante de você e da sua boca está saindo flechas”. Quando ela tirou os galhinhos percebia, eram palavras cheias de raiva, cheias de bronca, simplesmente estava dando uma bronca na pessoa e a outra simplesmente ouvia e Florência percebia que ela estava recebendo tudo aquilo junto. Continuou caminhando e agora teve uma visão bem diferente que a deixou convida. Ela viu na pracinha um casal de namorados bem abraçadinhos, ela botou o galho porque não conseguia ouvir o que eles diziam, estavam conversando em voz baixa mas quando colocou os galhinhos na orelha viu que da boca dos dois, do rapaz e da moça, saiam lindas flores, e as flores tocavam no cabelo da menina e desapareciam soltando uma fumacinha colorida e da mesma forma no rapaz, tocavam o rosto e o semblante e também se desfaziam em fumaças coloridas com tons alegres e bonitos. Florência sabia, ela não podia ouvir as palavras porque falavam bem baixo um pro outro, mas, com certeza seriam palavras carinhosas e amorosas e aquilo eram como lindas flores agradáveis de ver. Florência continuo caminhando pela feira e viu dois meninos conversando, um contando uma história para o outro. Primeiro ela prestou atenção no que um deles estava dizendo e ele estava inventando umas coisas que Florência com certeza sabia que não podiam ser verdadeiras, naquele instante ela colocou os galhinhos com as flores azuis por cima das orelhas e viu que o que o menino dizia para o outro, contando vantagens e falando coisas que não eram verdadeiras, quando ele falava era como uma fumacinha que saia e no momento seguinte não formava nada e desparecia no ar. As palavras não formavam nada e Florência pensou: “será que é isso que acontece quando a gente fala mentiras elas são como fumaças que não formam nada, que não tem sentido nenhum”. Ela já tinha visto palavras de raiva que formavam animais terríveis, palavras de agressão que formavam flechas, palavras amorosas que formavam lindas flores e agora palavras vazias, mentiras, que não queriam dizer nada e nem chegavam a formar algo. Florência continuou caminhando pela praça e viu uma professora com seus alunos passeando por aí e estava dando uma aula explicando algumas coisas da história da cidade e o que acontecia naquele lugar. Pensou Florência: “eu vou ver o que significa o que essa professora está falando aí”. Aproximou-se, mantendo uma certa distância para não atrapalhar a aula da professora, mas de modo que ela pudesse ouvir o que ela estava contando. A professora estava justamente contando a história da cidade e mostrando para as crianças os edifícios mais antigos onde havia sido fundada a cidade e era uma aula muito bonita e as crianças ouvindo com muito interesse. Florência colocou os galhinhos com as flores azuis nos ouvidos, e agora ela viu que aquilo que a professora estava dizendo saía como lindas estrelas, estrelas luminosas em diferentes cores mas todas as cores luminosas e brilhantes e pairava por cima das cabeças das crianças que recebiam toda aquela luz luminosa dos lindos ensinamentos que aquela professora fazia. Depois de caminhar muito pela praça e observar todos os lugares onde ela conseguia ver pessoas falando algo só de colocar os galhinhos no ouvido e perceber o que as pessoas diziam mesmo sem escutar, porque quando ela tinha os galhinhos no ouvido ela não escutava apenas via, já podia imaginar o que as pessoas estavam dizendo, se eram coisas bonitas, amorosas e agradáveis ou se eram palavras feias, desagradáveis e agressivas. Ela pensou: “Gnox tem razão, o que a gente fala cria coisas e se eu não tivesse recebido esse galhinho mágico dele eu jamais saberia disso, então será por isso que minhas flores andam murchando, será por isso que o meu jardim não está dando com a mesma vivacidade de antes. Eu ando tão desanimada me aborrecendo por qualquer coisa, falando palavras mais grosseiras para o Joaquim e ele também pra mim de vez em quando. Ah não pode ser assim, eu tenho que mudar isso”.
Na volta pra casa Florência contou para o Joaquim tudo que ela tinha vivido, em um primeiro momento ele nem quis acreditar e ela disse:
— Vamos fazer um teste. Coloca nas orelhas esses galhinhos.
Joaquim colocou e Florência disse:
— Eu vou cantar uma canção da infância que eu gosto muito.
Começou a cantar, Joaquim ficou assombrado. Ele não conseguia ouvir a canção que ele até conhecia bastante bem, Florência cantava com frequência, mas agora no lugar de ouvir o canto ele via as imagens lindas que saiam da boca e ele via como se fosse um riachinho agradável saindo da boca, formando formas de água que se espalhavam e envolviam o lugar e como uma chuva agradável, uma tarde quente e chuvosa, a chuva refrescando a terra, para um agricultor não tem imagem mais linda. Joaquim lembrou que a canção que ela cantava falava disso, falava da chuva, da terra, da terra que produz bem. Joaquim falou tirando os galhinhos do ouvido:
— Incrível Florência esses galhos são maravilhosos. Vamos guardá-los, vamos usá-los sempre.
Os dois forma pra casa e no dia seguinte cada um com seu trabalho tentou colocar os galhinhos de novo sobre suas orelhas e ver se acontecia o mesmo. Os galhinhos estavam murchos, eles já tinham perdido seu poder mágico, só valiam por um dia. Florência disse:
— Não se preocupe, vou lá na minha plantinha e pego um pouco mais.
Mas para a surpresa, aquela misteriosa planta de flores azuis não estava mais lá e ela chamou: “Gnox, Gnox, apareça para mim”. O gnomo não apareceu, mas Florência pensou: “não tem problema não, ele já me ensinou e me mostrou o que era mais importante”.
A partir desse dia Florência tentava controlar sobre seu desanimo e seu mau humor e sempre que estava em seus canteiros cantava, dizia palavras bonitas para as flores e se não dizia em voz alta, dizia baixinho ou pensava coisas agradáveis, mas sempre dizia um poema ou uma canção bonita quando estava ali. Ela com Joaquim, sempre que faziam o trajeto uma vez por semana levando seus produtos para a feira da cidade iam cantando, escolhiam canções agradáveis ou diziam palavras bonitas um para o outro, começaram a aprender um monte de poemas e poesias que achavam lindas e recitavam e cantavam enquanto estavam nos canteiros cuidando das flores. A vida deles se transformou, sem saber como nem porque, o que antes parecia que as pessoas não tinham tanto interesse pelas flores e pelas verduras que o Joaquim levava ou as flores da Florência, ao contrário, as pessoas vinham e passavam por ali e diziam exclamando: “Nunca vi tomates e abóboras tão bonitos como os seus, seu Joaquim! Nunca vi um buque tão delicado, mas com uma beleza tão incrível dona Florência! Eu quero levar dois buques, eu quero levar um quilo de tomate, eu quero levar essa abóbora aqui inteira!”
Agora Joaquim e Florência quase que voltavam pra casa sem nada, vendiam tudo e estavam muito contentes, mas mais contentes estavam ainda, não somente com o dinheiro que ganhavam das coisas que vendiam, mas de ver que eles haviam aprendido algo muito importante, aquilo que falamos, aquilo que dizemos transmite algo para toda a natureza, para as pessoas, para as plantas, para o nosso ambiente em volta. E as flores talvez sejam de todos os seres da natureza os mais sensíveis, os que sentem primeiro. Por isso estavam murchando antes, quando Florência só tinha desanimo em sua volta só dizia coisas desagradáveis e aborrecidas com relação a vida, com relação a tudo. Agora que ela dizia palavras bonitas, que ela cantava canções bonitas e que ela recitava poemas e cantava para as suas flores e Joaquim fazia o mesmo na sua horta, a vida deles mudou e ele diziam isso para todas as pessoas, alguns acreditavam, alguns não acreditavam. Mas fato é que a barraquinha da Florência e do Joaquim era a mais visitada naquela feira.


Renato Gomes

Conto: O Poço

No interior do cerrado, numa região de poucas chuvas, havia uma cidadezinha chamada Atibarán. As famílias que ali viviam se conheciam bem e tinham muito apreço umas pelas outras. As crianças podiam brincar livres pelas ruazinhas do povoado sem qualquer preocupação, pois os pais sabiam que se elas precisassem de alguma coisa poderiam ir a qualquer casa de Atibarán e os adultos que ali moravam iriam ajudá-las no que fosse necessário. Naquela vila do interior, todos cuidavam uns dos outros, como numa grande família. O clima era seco e como a cidadezinha estivesse no alto de uma região de colinas, não havia rios por lá. Para conseguir água, muitos anos atrás as primeiras pessoas que chegaram ao lugar cavaram um poço com muitos metros de profundidade, até encontrarem um lençol de águas subterrâneas. Ficou conhecido como o poço profundo. Era a única fonte de água de Atibarán. Uma das pessoas que havia ajudado a cavar o poço profundo se chama Pedro. Todos o chamavam Seu Pedro. Ele era bem idoso, mas, ainda assim, exercia a função de cuidador do poço. Seu Pedro era quem carpia em volta da borda do poço, reconstruía o pequeno muro de pedra em volta da borda, cada vez que ele desmoronava em alguma parte, cuidava também para que a corda e a caçamba de puxar a água do poço sempre estivessem em bom estado. Pelo menos uma vez ao dia, as pessoas iam ao poço profundo, que ficava numa depressão do terreno, fora dos limites da cidadezinha, com seus baldes ou cântaros buscar água para cozinhar, lavar a roupa, regar as hortas e para tudo que fosse necessário. Durante todos os anos, desde a fundação de Atibarán, o poço profundo forneceu água suficiente para todas as famílias. Um dia Seu Pedro escorregou e quebrou uma perna. Ele morava sozinho em sua casinha. Robertinho, o filho do vizinho, visitava Seu Pedro e lhe levava as refeições do dia, ia também até o poço profundo buscar água para o velho cuidador do poço. Seu Pedro sempre perguntava ao jovem:
— Robertinho, está tudo como Deus manda lá no nosso poço?
– Sim, sim! Seu Pedro, fique tranquilo, está tudo certo! Respondia o rapaz.
A perna de Seu Pedro teve que ser engessada. Ele conseguia andar dentro de sua casa, mas era difícil fazer uma caminha mais longa. Demoraria várias semanas até que ele mesmo pudesse ir até o poço profundo, prosseguir na sua tarefa de cuidador.
Um dia Robertinho trouxe o almoço para Seu Pedro e ao colocar uma garrafinha de água sobre a mesa, disse:
– Seu Pedro, hoje minha mãe disse para trazer a garrafinha apenas pela metade para o senhor, pois parece que o posso profundo está com pouco água esta semana.
Seu Pedro ficou muito admirado com aquela notícia. Em todos os anos de sua vida, nunca vira o poço profundo com pouca água!
— Robertinho, isto não é possível! Faz-me um favor, vai até o poço, atira a caçamba e espera que ela chegue ao fundo do poço. Depois puxa para cima e observa o comprimento da corda que afundou na água. Assim saberei se há muita ou pouca água por lá.
O rapaz foi até o poço profundo e fez exatamente como o velho cuidador havia determinado. Ao regressar lhe disse:
— Seu Pedro, o pedaço de corda que afundou com a caçamba é assim! – e mostrou o tamanho que ia do seu cotovelo até a ponta de seus dedos.
Seu Pedro ficou muito preocupado, pois sabia que em condições normais o nível da água era cinco vezes mais profundo do que isto!
Robertinho disse ainda que à noite haveria reunião no caramanchão da praça de Atibarán, pois as famílias estavam preocupadas e queriam conversar sobre o que deveriam fazer se o poço secasse. Seu Pedro pediu ajuda a Robertinho para acompanhá-lo, pois também queria participar da reunião. Naquela noite, todos os habitantes da aldeia estavam reunidos, sentados em círculo, nos bancos do caramanchão. Alguns explicavam que todos deveriam economizar, usar água apenas para as coisas essenciais: beber, cozinhar. Outros reclamavam, pois haviam dito que era melhor nos próximos dias não usar a água para regar as hortas:
— Minhas verduras vão morrer se eu não regar os canteiros! Protestava Marcelino, que era quem produzia alfaces, rúculas e chicórias para todos!
— Também temos que economizar água para tomar banho, falou Dona Aurélia, que era a professora das crianças menores.
— Eu posso ficar até uma semana sem banho! Sussurrou Paulo, irmão de Robertinho  que tinha doze anos, para seu amigo Edson.
— Que porco! Exclamou Joana em voz alta, uma menina um pouco mais velha que o garoto e que havia escutado o comentário do menino.
Alguns adultos se envolveram na discussão dos filhos argumentando se seria melhor ou pior deixar de tomar banho alguns dias para economizar água. Outros mais preocupados em resolver logo a situação começavam a discutir se não seria preciso cavar outro poço, noutro lugar, pois do jeito que a coisa ia, a água do poço profundo acabaria em poucos dias. Não demorou muito e todos falavam ao mesmo tempo; uns concordavam, outros discordavam, outros diziam que tinham a solução, outros ainda afirmavam que a solução não pode ser assim tão simples, pois sem água não poderiam continuar vivendo em Atibarán. Seu Pedro havia escutado tudo em silêncio, até que pediu a ajuda de Robertinho para conseguir se levantar, bateu forte as palmas das mãos para pedir silêncio e disse:
— Minha gente, o poço profundo nunca negou água! Há muitos anos eu ajudei a cavá-lo e ele sempre foi generoso com todos nós!
— Isto é correto, Seu Pedro – falou Dona Terezinha, a cozinheira da escolinha – a maioria de nós aqui reunidos era criança quando nossos pais cavaram o poço com o senhor. Eu ainda me lembro do monte de terra e pedras que saiu de lá mas pode ser que o lençol d’água de nosso poço esteja secando. Melhor procurar outro lugar para cavar o novo poço.
E a seguir começaram a falar de novo todos ao mesmo tempo, pois havia muitas opiniões diferentes, mas o problema era muito sério para todos eles.
Seu Pedro bateu forte com as palmas das mãos pela segunda vez:
— Eu quero saber uma coisa: Vocês agradecem ao poço, cada vez que vão buscar água?
Houve um profundo silêncio depois daquela pergunta.
— Como assim Seu Pedro? – indagou Silvino, o padeiro da aldeia – O que é isso de agradecer ao poço?
Antes que Seu Pedro respondesse, Marinalva, a costureira, tomou a palavra:
— Eu me lembro que na infância ia ao poço com minha avó pegar água e ela agradecia ao poço profundo e pedia para que eu agradecesse também mas depois que eu cresci e comecei a buscar água sozinha, deixei de fazer isto.
Um a um os habitantes de Atibarán foram resgatando suas lembranças de infância e ao mesmo tempo admitindo que nenhum deles havia mantido o costume dos pais ou dos avós de agradecer ao poço. Ficou claro então que Seu Pedro era a única pessoa do lugar que guardava a tradição de agradecer ao poço profundo. Robertinho, lembrou a todos, que quando Seu Pedro tinha quebrado a perna e havia deixado de ir ao poço, foi que começou o problema da escassez de água. Seu Pedro propôs que na manhã seguinte toda a aldeia iria ao poço profundo e ele mostraria como era sua maneira de prestar-lhe agradecimento. No dia seguinte o povo estava reunido em torno do poço profundo. Seu Pedro lançou a caçamba ao fundo e depois puxou a corda. Ela não subiu cheia, encheu-se apenas pela metade. O nível da água estava bem baixo. Seu Pedro pegou a caçamba despejou num canecão que havia levado. Bebeu um gole e pediu que o canecão fosse passado de mão em mão e que cada um deveria beber um pequeno gole. O povo fez como Seu Pedro havia solicitado. Depois de que todos beberam, Seu Pedro perguntou:
— Meus amigos de Atibarán, notaram como esta água é refrescante e saborosa?
Todos afirmaram com a cabeça. Seu Pedro prosseguiu:
— Nosso poço profundo nos deu todos os dias esta água maravilhosa! Nós tiramos e tiramos e no dia seguinte o poço sempre estava cheio da água que mata nossa sede, da água que rega nossas hortas, da água que lava nosso corpo. Eu cada vez que vinha aqui buscar água pensava um pouco em tudo isto e quanto mais pensava, mais me alegrava com a água que recebia do poço. Por tudo isso, antes de voltar a casa, eu agradecia ao poço profundo. Ao dizer isto, Seu Pedro pegou a caçamba que continha ainda um pouco de água e a verteu de volta ao poço, dizendo:
— Poço profundo, Deus permite que você me doe sua água todos os dias! Eu agradeço a Deus e te agradeço devolvendo um pouco daquilo que você me presenteia com generosidade!
Fez-se um silêncio tão profundo que todos puderam ouvir quando a porção d’água que havia sobrado na caçamba atingiu o fundo do poço.
Seu Pedro disse ainda que de fato a quantidade de água era bem pouca no fundo do poço, porque haviam esquecido de agradecer, mas em lugar de pensar em cavar outro poço noutro local, melhor seria cavucar o fundo e esperar que mais água viesse a encher o poço profundo. Robertinho e seu amigo Lucas se ofereceram para descer e escavar o fundo. Naquela tarde o trabalho foi iniciado. Robertinho e Lucas com suas pás cavavam e enchiam os baldes com terra e pedra, que as pessoas na borda do poço puxavam para cima. Foi um trabalho árduo aprofundar pouco mais de um metro, mas em algum momento das paredes do poço escavadas pelos rapazes começou a minar água em abundância! Robertinho e Lucas tiveram que subir rápido pelas cordas para não ficaram completamente molhados!
A partir daquele dia, cada um que ia buscar água agradecia e se lembrava de devolver ao poço um pouco daquilo que viera buscar naquele lugar. Nunca mais houve falta de água em Atibarán, mas desde aquele dia o poço mudou de nome, passou a chamar-se Poço – Mais – Profundo.
Renato Gomes

Conto: As canecas da Dona Geni

Era uma vez uma velha ceramista chamada Geni. Ela trabalhava numa oficina, que ficava no pequeno sítio onde morava. Dona Geni era uma ceramista muito habilidosa que tinha uma curiosidade: ela só fazia canecas. Suas canecas eram todas diferentes entre si, de diversos tamanhos e formas, de diferentes cores e desenhos. Por mais que se procurasse entre as muitas canecas que Dona Geni havia feito, nunca se encontravam duas exatamente iguais. Podia haver algumas bem parecidas, mas quando se olhava com atenção, cada caneca era única, diferente de todas as outras.
Uma vez apareceu na oficina da Dona Geni um jovem aprendiz. Ele havia ouvido que lá poderia aprender muitas coisas com a experiência da Dona Geni. A anciã aceitou o rapaz e disse que lhe ensinaria o que ele estivesse disposto a aprender. No início, o jovem aprendiz apenas observou Dona Geni, aos poucos começou a ajudá-la a preparar a argila, a misturá-la bem até chegar ao ponto certo, a fazer as bolas de argila para colocar no torno, a moldar as formas, a assá-las depois que estivessem secas e a pintá-las. Tudo isso na verdade o jovem já havia visto e feito nas oficinas de outros mestres ceramistas. Até aquele momento não havia aprendido ainda nada de novo com Dona Geni. Por que lhe haviam recomendado tanto que fosse até ela? O jovem aprendiz decidiu continuar na oficina e ver o que podia aprender com aquela velha anciã, tão habilidosa e tão artista. No início ele ajudava Dona Geni nos trabalhos mais difíceis e mais pesados, enquanto a velha artesã se dedicava aos acabamentos e às decorações. Quando Dona Geni ganhou mais confiança no trabalho do jovem, lhe propôs que fizesse sozinho alguns modelos de canecas:
– Meu jovem, modele o que sua mão consegue fazer. Não precisa modelar todas iguais. Inspire-se! Faça pelo menos um detalhe diferente em cada uma delas. Veremos como vai ficar o resultado!
O jovem queria causar uma boa impressão em Dona Geni, pensou bastante em modelos de canecas que talvez pudessem surpreender a velha artista. Idealizou dez modelos diferentes. Imaginou colocar arabescos e cores que realmente destacassem cada uma delas. Modelou as dez canecas diferentes, colocou-as no forno para assar e depois, quando as retirou de lá, viu que duas delas tinham ficado um pouquinho tortas durante o cozimento, diferentes da forma que ele havia imaginado e modelado.
Entristecido, ele pegou as duas canecas e jogou-as na pilha de cacos, junto com os restos de louça que eram triturados para se reaproveitar a argila. Ao ouvir o barulho de louca quebrada, Dona Geni veio do fundo da oficina e lhe perguntou:
– O que aconteceu?
– Ah Dona Geni, eu queria fazer-lhe uma surpresa. Pensei em dez modelos de canecas bem diferentes, só que duas delas ficaram um pouco tortas quando saíram do forno. Não ficaram exatamente do jeito que eu queria e eu as descartei na pilha de cacos, depois eu faço outras duas…
– Havia de fato um motivo para quebrá-las? Elas estavam com alguma rachadura grande, ou algum furo que impedisse colocar chá ou outra bebida dentro delas?
— Não, não era bem assim, eram defeitos pequenos, mas, ainda assim, elas ficaram diferentes do que eu havia imaginado. Dona Geni disse:
— Eu nunca desprezo uma caneca só porque ficou um pouquinho torta ou um pouco diferente do que eu imaginei, mesmo quando eu pinto, sempre sai alguma coisa um pouco diferente. Isso não é motivo para desprezar uma obra.
— Como não, dona Geni? admirou-se o aprendiz. – Eu pensei bastante, fiz os desenhos, imaginei todos os detalhes na minha cabeça. Elas tinham que sair exatamente como eu queria. Se não foi assim, não vejo problema algum em descartar uma caneca torta, a gente quebra, tritura a cerâmica e faz de novo.
— Meu jovem, quando eu era criança, minha avó me contou uma história. Ela disse que quando Deus pensou em fazer o primeiro ser humano, Ele o fez de barro, modelou do jeito que nós somos hoje e soprou dentro das narinas, desde então o sopro de Deus vive em nós. Eu penso, meu querido, que cada vez que faço uma caneca, é como se eu também estivesse fazendo algo parecido: modelar uma caneca é, para mim, como se Deus me permitisse fazer uma coisa que é única, cada vez uma coisa diferente. Ele, lá no céu, continua “modelando” as pessoas que nascem aqui na terra. Imagine então se Ele dissesse: ‘ah, esse saiu com o nariz torto, neste outro não gostei do tipo de cabelo, naquele a cor da pele não ficou do jeito que eu queria ou nesse aí as mãos ficaram grandes demais’. Se Ele descartasse as pessoas, seria muito triste, não é certo? Deus não descarta ninguém, todos somos pessoas, mas todos somos diferentes, alguns mais gordos outros mais magros, alguns mais altos, outros mais baixos, alguns mais fortes, outros mais fracos, alguns mais claros, outros mais escuros, há alguns com cabelo liso, ou com cabelo encaracolado. O que importa é que todos somos pessoas. Assim eu penso quando faço minhas canecas, umas tem a boca larga, outras tem a boca estreitinha, numas cabe uma grande quantidade de líquido, outras são pequenininhas, umas têm asas grandes e fortes, outras são bem “delicadinhas”, nenhuma é igual à outra e ainda assim, todas são canecas e podem ser apreciadas por alguém. Olhe, lhe digo mais uma coisa: Há canecas que eu faço que vendo bem rápido, há outras, porém, que ficam aí nas prateleiras por bastante tempo, até que um dia aparece alguém e diz ‘essa caneca é especial para mim!’ Nestes momentos percebo: demorou mas apareceu a pessoa que precisava daquela caneca! Imagina se eu a tivesse descartado na pilha de cacos ou desprezado num canto só porque achei que ela era diferente, não gostei da cor, do tamanho ou achei que não servia para nada.
O jovem aprendiz ficou pensativo e começou a entender porque os outros mestres pelos quais tinha passado lhe haviam orientado ir até a oficina da dona Geni; aquela velha ceramista era uma mulher muito sabia, havia ensinado para ele que a arte de modelar canecas de cerâmica é uma arte muito importante. Dá para aprender a olhar a vida e perceber que cada pessoa tem seu jeito e sua maneira. Deus fez cada pessoa de um jeito diferente, por isto cada pessoa é importante e é única. Todos somos seres humanos, temos muitas coisas em comum uns com os outros, mas temos as nossas diferenças. Assim como as canecas da Dona Geni, não importa a forma o tamanho ou a cor, com todas elas podemos beber chá, água, café, pois para isto serve uma caneca, mas cada uma é especial porque é única!

Renato Gomes

Conto: Yohanan

Parte 2

Passaram os anos. Yohanan e Yehoshua se tornaram adultos, a amizade entre eles se fortaleceu. Os amigos se aprofundavam no aprendizado dos textos sagrados e conversavam muito sobre isto. Yohanan nunca mais esqueceu a cena que viu no buraco no muro da cidade de Jericó. Refletia em como seria possível ajudar as pessoas a sair daquela vida tão pobre e no meio de tanta sujeira.
Certa vez disse ao amigo:
-Yehoshua, vou pedir ao mestre Yehudah para me autorizar sair por um tempo da nossa comunidade para poder ir pelas aldeias e cidades. Quero tentar levar às pessoas um pouco de tudo isto que nós aprendemos aqui sobre o Messias.
Yehoshua lhe perguntou:
— Como você pretende fazer isto?
Yohanan respondeu:
— Ainda não sei bem. Nós vivemos aqui de maneira muito simples, não há luxo. Acordamos cedo, fazemos nossas orações, trabalhamos para produzir nossa comida e mesmo tendo que cuidar bem da água, tão rara aqui no deserto, sabemos que é importante manter tudo limpo, pois esta limpeza com as coisas de fora, nos ajuda a manter limpa nossa mente, limpos nossos ouvidos… Creio que é assim que as palavras dos profetas encontram o caminho do ouvido até nosso coração. Deve haver uma maneira de mostrar isto também às pessoas que vivem nas aldeias e nas cidades.
Mestre Yehudah achou que a ideia de Yohanan não fazia muito sentido, pois vários antes deles haviam tentado falar ao povo. Sempre havia algumas pessoas que escutavam, mas logo depois perdiam o interesse. Melhor seria que Yohanan aproveitasse seus dons e prosseguisse os estudos dos textos sagrados ali mesmo, dentro da comunidade dos essênios. Yohanan, porém, insistia:
— Mestre, não disse o profeta Isaías, que os caminhos tortos devem se tornar retos e que o que está áspero deve ser aplainado? Nosso povo não ouve as palavras dos profetas, porque estas palavras não encontram os retos caminhos para seus corações. A miséria, a fome e a opressão são a sujeira que entopem seus ouvidos. De que vale tudo isto que nós cultivamos aqui se lá fora nosso povo vive de maneira tão diferente e sofrida. Deixe-me ir até eles e tentar aplainar o que está áspero na vida das pessoas.
Mestre Yehudah percebeu que naquele jovem monge havia uma vontade muito forte e verdadeira. Mesmo imaginando que não seria fácil o que Yohanan pretendia, autorizou-o a sair e peregrinar pelas aldeias e cidades próximas ao deserto.
Yohanan ao deixar a comunidade dos monges essênios, caminhou em direção ao sul e chegou ao lugar onde ficava o grande lago salgado chamado de Mar Morto. Sentou-se numa pedra à margem do lago e ficou observando como as águas do rio Jordão, límpidas e frescas, chegavam ao mar salgado e se misturavam com aquelas águas turvas e totalmente sem vida. Se algum peixinho fosse levado pela correnteza, morreria se ficasse muito tempo em contato com as águas salgadas.
Yohanan pensou que assim estava ocorrendo com o povo: tudo o que estava acontecendo naqueles tempos deixava o dia a dia das pessoas como aquelas águas turvas e sem vida. Não adiantava muito falar sobre as belas mensagens dos profetas; parecia que na alma das pessoas as belas palavras se misturavam às preocupações, aos problemas, aos medos que eram como águas sem vida; depois de um tempo as pessoas já não se preocupavam mais com o significado da mensagem dos antigos profetas. Foi neste instante que Yohanan pensou: -E se eu trouxer as pessoas aqui, mostrar para elas as águas turvas do Mar Morto e depois mostrar as águas do rio Jordão que são límpidas e borbulhantes de vida. Se eu mergulhar as pessoas nas águas claras do rio Jordão, se eu as ajudar a se limpar, por fora e por dentro, então elas sairão limpas e purificadas das águas e poderão ouvir melhor. Creio que deste modo as palavras das profecias sobre a vinda do Messias vão encontrar os caminhos retos do ouvido ao coração das pessoas.
Yohanan partiu dali, andou por muitos lugares, convocou as pessoas para virem com ele ao deserto. Em cada aldeia ou cidade que Yohanan visitou, sua mensagem impressionou as pessoas, houve vários que pararam para ouvi-lo. Havia força na sua fala! Quando, porém, chegava o momento de acompanhar Yohanan até o deserto, muitos desistiam. houve, entretanto, alguns que o acompanharam. Yohanan então mostrou-lhes o encontro das águas do Jordão com as águas do Mar Morto. As pessoas ficaram muito impressionadas. Depois ele as conduziu até um lugar de águas límpidas do Jordão e as fez mergulhar totalmente no rio. Era surpreendente o que aquele mergulho causava!
Muitos que foram mergulhados (naquela época ser mergulhado se chamava também ser batizado) voltaram diferentes às suas casas, contaram para parentes e amigos o que haviam vivido e que a limpeza pela qual passaram nas águas do Jordão havia retirado muito mais do que apenas a sujeira do corpo. Assim começaram a vir muitas pessoas de vários lugares do país para serem mergulhados nas águas do rio por Yohanan.
Seu amigo Yehoshua também deixou a comunidade dos essênios e veio ajudar Yohanan em sua tarefa de mergulhar e batizar as pessoas. Algumas pessoas começaram a dizer que Yohanan deveria ser o Messias, pois o que ele estava fazendo transformava a vida das pessoas. Yohanan então respondia:
— Eu não sou o Messias. Eu apenas mergulho vocês na água e os limpo. O Messias, quando vier, vai trazer o fogo dos céus e irá acendê-lo no coração de cada um, mas o trabalho de limpeza com a água deve ser feito primeiro. O caminho que vai até o coração deve estar limpo e reto. O Messias é muito maior do que eu. Eu não sou digno nem de desatar a correia de suas sandálias.
Um dia Yohanan estava à margem do rio Jordão batizando e viu que um homem se aproximava. Era Jesus, filho do carpinteiro José de Nazaré da Galileia. Ele se aproximou de Yohanan e lhe pediu para ser mergulhado na água do rio. Naquele instante Yohanan sentiu algo diferente, pois percebeu que para Jesus não havia necessidade daquela purificação com água e respondeu que não iria mergulhá-lo no rio. Jesus, porém, insistiu. Yohanan conduziu Jesus até o rio e o mergulhou nas águas límpidas. Quando Jesus saiu das águas, Yohanan olhou para o céu e viu uma nuvem se rasgando e dela surgiu uma grande luz que foi se aproximando. A luz tomou a forma de uma pomba que voou suavemente sobre a cabeça de Jesus. Ao mesmo tempo Yohanan ouviu no céu uma forte voz que disse:
— Este é meu filho amado! Hoje ele se manifestou na Terra!
Yehoshua, que estava próximo também ouviu a voz, contudo não viu a luz que Yohanan havia visto.
Assim Yohanan cumpriu sua missão ajudando a muitos a se limparem e se preparem para a chegada do Messias, que era Jesus.

Renato Gomes

Nota do autor para os pais:

A intenção deste conto é tentar trazer para as crianças a figura de João Batista (Yohanan) dentro do contexto de sua época a partir das poucas informações que encontramos sobre ele nos Evangelhos. O autor tomou a liberdade de criar personagens e situações, que até certo ponto pareceriam se ancorar em circunstâncias históricas, mas que, mesmo sem confirmação histórica, foram aqui colocadas para criar o ambiente necessário ao conto. O caráter fictício, porém, não invalida a tentativa de aproximar à alma infantil “a força e a intenção” de João Batista.

Conto: Yohanan

Parte 1

Todos o conhecem como João, o Batista. Seu nome original, em nossa escrita atual, seria aproximadamente Yohanan.
Yohanan era filho do casal de anciãos Elisabete e Zacarias. O arcanjo Gabriel no templo de Jerusalém anunciou a Zacarias, um sacerdote levita, o milagre de seu nascimento.
Seus pais já eram bastante idosos quando Yohanan veio ao mundo, sabiam portanto que não conseguiriam educar o menino até se tornar adulto, por este motivo enviaram o jovem Yohanan, aproximadamente com 12 anos de idade, para viver com um grupo de monges que habitavam em covas e cavernas naturais no deserto da Judeia, conhecidos pelo nome de essênios. Yohanan sentiu muito a separação, mas sabia que a decisão tinha sido correta, pois não passou muito tempo desde que o menino deixara a casa de seus pais, Elisabete e Zacarias vieram a falecer.
A vida no deserto era dura, todos se levantavam antes do sol nascer, começavam o dia fazendo suas orações e cantando salmos. A seguir era indicada pelos líderes da comunidade a tarefa que cada um deveria realizar naquele dia: abastecer com a água da chuva, que era recolhida em cisternas, a cozinha e os reservatórios das hortas, cuidar dos canteiros e das plantações que forneciam alimentos para toda a comunidade, pastorear as ovelhas e, quando fosse a época adequada, ajudar na tosquia da lã, trabalhar nas oficinas fiando a lã, tecendo e produzindo as roupas e tecidos que utilizavam e – a tarefa considerada a mais nobre e importante de todas – escrever em rolos de papiros os textos sagrados da lei e dos profetas.
Yohanan, quando chegou a esta comunidade no deserto, era o membro mais jovem. Apesar de sua pouca idade, participava como todos os outros dos trabalhos gerais. Era um menino inteligente e puro de coração, de modo que logo chamou a atenção de mestre Yehudah, o responsável pelos escritos sagrados. Yohanan havia aprendido bem cedo com seu pai a ler e a escrever, por este motivo mestre Yehudah permitiu que o jovem participasse nas oficinas de escritura, tarefa em geral realizada pelos monges aprendizes apenas quando já tinham passado dos vinte e um anos de idade. Yohanan gostava bastante desta tarefa e colocava muito empenho no que fazia. Havia também um momento do dia em que os monges aprendizes se reuniam com mestre Yehudah para ler e estudar passagens dos textos sagrados. Cada vez um deles recebia a tarefa de ler para os demais um trecho dos livros sagrados em voz alta, a seguir o mestre inquiria os jovens e esclarecia suas dúvidas. Era importante que os alunos se esforçassem para compreender o significado daquelas passagens. Certa vez um dos monges aprendizes chamado Yehoshua, que era apenas um pouco mais velho que Yohanan, foi contemplado com a leitura de um trecho do profeta Isaías que falava sobre a vinda do esperado Messias. O texto dizia que viria uma forte voz do deserto anunciando que os caminhos tortos se tornariam planos e o que fosse áspero seria aplainado a fim de preparar assim o caminho para a chegado do Messias.
Estas palavras impressionaram muito a Yohanan que ficou pensativo.
Yehoshua perguntou ao mestre:
— Como se pode entender que uma voz clame no meio do deserto? Aqui nestes lugares ermos quase não vive ninguém. Se algum de nós nos afastarmos das cavernas onde vivemos com nossa comunidade e formos até o grande lago conhecido com o nome de Mar Morto e lá começarmos a gritar, ninguém vai nos ouvir.
Yohanan também sentiu vontade de perguntar:
—Mestre Yehudah, do mesmo modo que Yehoshua, eu também não entendo o sentido destas palavras, não seria melhor que Deus enviasse um profeta, que com voz forte, falasse para o povo nas praças e mercados de Jerusalém? Lá com certeza haveria muitas pessoas que poderiam prestar atenção.
Mestre Yehudah ouviu ainda as dúvidas de outros discípulos até que após um tempo de reflexão disse:
– Vocês acham que todas as pessoas estão dispostas e preparadas para ouvir? Muitos de nosso irmãos monges, antes de nós, tentaram falar às pessoas que é necessário se purificar e se preparar, pois do contrário o Messias não virá. Infelizmente foram muito poucos os que ouviram… Os ricos estão preocupados em acumular mais riqueza, os negociantes estão preocupados com seu comércio e suas tendas, os velhos estão surdos e endurecidos demais para ouvir, os muito jovens estão preocupados com suas algazarras e prazeres. Creio que Isaías quis nos dizer que quando vier o profeta que anunciará com voz forte a chegada do Messias ele clamará no meio do deserto pois quase não haverá ouvidos para ouvi-lo!
Um dos discípulos falou então:
— Por este motivo nós escolhemos viver no deserto? Assim poderemos escutar quando vier este profeta, não é assim mestre?
Mestre Yehudah prosseguiu:
— Os mestres fundadores de nossa comunidade chegaram à conclusão de que grande parte de nosso povo não quer ouvir falar sobre o Messias pois estão mais preocupadas com outras coisas. Por este motivo alguns poucos consideraram que seria melhor viver aqui no deserto, afastado da balbúrdia das cidades, para poder se dedicar ao estudo destas palavras proféticas, como estamos fazendo agora.
Yohanan ficou de novo pensativo, ao ouvir a explicação de mestre Yehudah.
Certa vez Yohanan estava trabalhando na horta com Yehoshua. Na noite anterior havia ocorrido uma forte tempestade de areias do deserto que tinha coberto com pó grande parte das plantas nos canteiros. Os jovens precisavam ir às cisternas e, com baldes amarrados a cordas, içar a água, levá-la até os canteiros a fim de regar as plantas para limpá-las da grossa capa de pó que cobria suas folhas. A água é algo muito precioso para quem vive no deserto, por este motivo os jovens tinham que fazer o trabalho de limpeza das plantinhas com muita atenção para não desperdiçar o precioso líquido. Durante o trabalho Yohanan disse a seu amigo:
— Não consigo parar de pensar nas palavras do Mestre Yehudah! Será de fato que as pessoas não querem ouvir falar sobre a vinda do Messias? Afinal, isto representa o mais importante da mensagem dos profetas.
Yehoshua respondeu:
— Também sinto como você. Imagino que se alguém falar com propriedade sobre o Messias, as pessoas escutariam com alegria, ainda mais nestes tempos em que estamos vivendo, oprimidos pelo poder do Império Romano. Acredito que todos querem uma vida melhor e mais liberdade, nisto o Messias vai nos ajudar!
Acontece que de tempos em tempos um pequeno grupo de monges ia a Jericó, a cidade mais próxima do local onde viviam, para obter algumas poucas coisas que não conseguiam produzir, mas também para ouvir notícias sobre o que estava acontecendo em Jerusalém e no restante do país. Era comum que dois monges aprendizes acompanhassem o grupo de monges mais velhos para ajudar a carregar o que fosse necessário. Yehoshua e Yohanan foram indicados para a próxima ida a Jericó.
Na cidade os jovens tiveram tempo para caminhar pela praça do mercado, enquanto os monges resolviam os assuntos que necessitavam. Yohanan viu que numa tenda de frutas uma criança, maltrapilha e suja, apanhou alguns figos, os escondeu dentro de suas vestes e fugiu, sem que o vendedor o percebesse. O jovem seguiu o menino pelas vielas e becos da cidade até que o viu entrar numa ampla rachadura na muralha da cidade. Ao se aproximar da abertura, viu que no interior daquele buraco havia uma mulher também maltrapilha com outras crianças pequenas, que comiam os figos que o irmãozinho havia trazido. Quando aquelas pessoas viram o jovem encarando-os, ficaram assustados, pararam de comer e esconderam os restos no meio das roupas sujas e rasgadas que vestiam. A mãe das crianças, chorando, pediu a Yohanan que não os denunciassem, pois estavam famintos e não tinham dinheiro para comprar comida. O esposo dela e pai daquelas crianças havia morrido há tempos e por este motivo tiveram que vender tudo que possuíam. Yohanan tentou dizer-lhes que roubar não era uma coisa certa, mas a mulher chorou ainda mais e cobriu a cabeça com seu véu sujo e cheio de buracos. As crianças se agacharam próximas à mãe e choramingaram alto.
Yohanan regressou à praça do mercado e contou a seu amigo Yehoshua o que havia vivenciado. O jovem mais velho disse ao amigo:
— Há muita injustiça nestes tempos. Nosso povo tem que pagar muitos impostos aos romanos e as famílias estão cada vez mais pobres. Se não há um pai e esposo para trabalhar, as viúvas sofrem muito e não encontram meios para alimentar seus filhos.
Yohanan acrescentou:
— Justamente por estes motivos, é preciso que o Messias venha! Nosso povo precisa de ajuda. Contudo o que mais me impressionou e entristeceu foi ver que naquela família todos estavam tão sujos: suas roupas, seus cabelos, sua pele. Tudo isto me fez lembrar daquela noite em que a tempestade do deserto cobriu as plantas em nossa horta com todo aquele pó. O mestre jardineiro nos disse que as plantas poderiam morrer pois a sujeira deixada pelo pó impedia as plantas de receberem a luz, ainda que o sol brilhasse intensamente naquela manhã. Se não as tivéssemos limpado uma a uma elas poderiam ter sucumbido na sujeira. Sabe uma coisa, Yehoshua, creio que o sofrimento e a sujeira também deixam as pessoas meio “surdas”. Os ouvidos se enchem com algum tipo de sujeira. Eu não consegui dizer nada àquelas pessoas, tentei falar sobre as coisas bonitas e importantes que aprendemos com nossos mestres, mas elas estavam cobertas de medo e famintas, por isto não conseguiam ouvir. Com estes pensamentos os jovens retornaram à comunidade dos monges no deserto.

Renato Gomes

Este conto continua no próximo domingo.

Nota do autor para os pais:
A intenção deste conto é tentar trazer para as crianças a figura de João Batista (Yohanan) dentro do contexto de sua época a partir das poucas informações que encontramos sobre ele nos Evangelhos. O autor tomou a liberdade de criar personagens e situações, que até certo ponto pareceriam se ancorar em circunstâncias históricas, mas que, mesmo sem confirmação histórica, foram aqui colocadas para criar o ambiente necessário ao conto. O caráter fictício, porém, não invalida a tentativa de aproximar à alma infantil “a força e a intenção” de João Batista.

Conto: Sensei Xu

Feng-Hay era uma aldeia encravada nas altas montanhas da grande Cordilheira. Por causa das características do lugar, as famílias construíam suas casas nas encostas das paredes rochosas e, para facilitar a comunicação, construíam pontes de cordas e tábuas para unir uma habitação à outra. A praça central de Feng-Hay era o lugar plano mais amplo que havia. Ali acontecia semanalmente o mercado de alimentos e utensílios. Neste local ocorriam também as reuniões populares para conversar e decidir os assuntos importantes da aldeia. Naquela época, cada família produzia quase tudo que necessitava para sobreviver: nos degraus naturais das encostas rochosas cultivavam seus alimentos, confeccionavam suas roupas com a fibra de lã de iaque, grandes animais parecidos a bisões que viviam nos planaltos mais elevados, produziam e consertavam suas próprias ferramentas de trabalho. Não havia escolas em Feng-Hay. As crianças aprendiam quase tudo que necessitavam aprender para sua vida futura com seus pais e avós. Havia, entretanto, uma coisa que as crianças não aprendiam em suas casas: o Wushu – uma antiga arte marcial que combinava movimento, concentração, controle de cada músculo do corpo e, principalmente, muita disciplina. Não era tarefa fácil, ensinar às crianças e aos jovens esta antiga arte. Para alegria de todos que moravam naquele lugar, viva em Feng-Hay um grande mestre desta arte, chamado Sensei Xu. Em verdade, “sensei” significa mestre, mas todos, há muitas décadas, sempre se referiam ao velho professor com este título. Sensei Xu era com certeza a pessoa mais velha do lugar. Morava numa pequena cabana na encosta de um grande paredão de rocha escura do outro lado do estreito vale que ficava em frente à praça de Feng-Hay. A única maneira de chegar à casa do mestre, era cruzar o vale pela ponte de corda e tábuas que se estendia sobre a fenda do abismo que separava as montanhas de Feng-Hay da enorme rocha escura onde Sensei Xu habitava. No fundo da fenda, corria o caudaloso rio Hou, de águas geladas, que nascia nas geleiras dos picos da cordilheira.
Todos os dias pela manhã, os alunos – crianças e os jovens até seus quatorze anos – cruzavam a ponte sobre o rio Hou para ir até a casa de Sensei Xu receber seus ensinamentos. Eles se reuniam em silêncio, sentados no chão da estreita plataforma de pedra onde ficava a cabana do mestre, esperando que Piong-He tocasse um grande sino. Piong-He era o jovem aprendiz que auxiliava o mestre Xu. O velho Sensei havia ficado cego pelos anos e necessitava ajuda para algumas tarefas, além disso Piong-He almejava um dia tornar-se um sensei na arte do Wushu. Por este motivo servia ao velho mestre e aprendia muito com ele.
Piong-He, todas as manhãs, depois de tocar o sino, conduzia Sensei Xu até uma rocha no centro da plataforma de pedra e o ajuda a subir nela. Sensei Xu, apesar da idade, era ainda forte e ágil e muitas vezes dava a impressão de que enxergava normalmente, tão atento e habilidoso ele caminhava e se movia pelo terreno irregular da montanha.
No momento em que Sensei Xu batia com seu bastão no chão, todos os alunos se erguiam simultaneamente. O sensei segurava então seu alto e firma bastão de tuia com as duas mãos, bem à frente de seu corpo. Parecia que o próprio Sensei se unia ao bastão e juntos formavam um sólido tronco de tuia, espécie de pinheiro que cresce nas montanhas. Permanecia nesta posição até que todos os alunos conseguissem fazer o mesmo. Sensei Xu sabia, apenas pela audição ou por meio de alguma outra habilidade especial, se algum dos alunos ou alunas ainda se mexia para espantar algum inseto ou havia girado a cabeça para observar um companheiro ao lado, ou se simplesmente estava fazendo qualquer outro movimento que não fosse o suave ritmo da própria respiração.
Para iniciar as aulas de Wushu, era necessário começar por este exercício de concentração e domínio do corpo. Sensei Xu, quando precisava introduzir o exercício às crianças menores, costumava dizer:
—Olhem a tuia! Vejam como ela está firme na terra, mas todos seus ramos, todo seu ser se direciona para o céu! Quero sentir a minha volta um belo parque cheio de tuias! Vocês são as minhas tuias!
Depois que todos havia conseguido fazer o exercício da tuia, Sensei Xu erguia o bastão, às vezes para a direita, às vezes para a esquerda; fazia movimentos rápidos, outras vezes lentamente realizava amplos movimentos circulares e os alunos iam acompanhando os movimentos do bastão do mestre com os respectivos movimentos dos braços e das pernas, exatamente como o velho sensei demonstrava. Mestre Xu usava o bastão para que pudessem visualizar melhor as coreografias do Wushu. Os mais jovens ficavam em círculos menores próximos a rocha onde estava o Sensei, os mais velhos iam formando círculos maiores ao redor, pois eram mais treinados pelos anos de aprendizado e ao perceber os movimentos do bastão, já sabiam qual sequência de exercícios deviam repetir. Cada movimento estava associado a algum elemento ou ser da natureza: agir rápido com a velocidade e leveza do vento, mover-se suave e graciosamente como o filete de água que escorre pela rocha da montanha, abrir os braços de maneira ampla e vigorosa como as asas da grande águia, desenrolar-se cuidadoso e atento como o caracol que sai de sua casa na expectativa de receber os cálidos raios do sol da manhã.
Cada exercício e cada movimento ajudava aos jovens alunos a sentir e a compreender as belas e variadas forças que tecem em todos os seres vivos e nos elementos da natureza. Aprender o Wushu significava aprender a amar e respeitar toda a criação. Neste sentido Sensei Xu era um grande e venerável mestre. Todos os adultos de Feng-Hay lhe tinham uma profunda e respeitosa gratidão, por tudo que eles próprios haviam aprendido em sua juventude com o Sensei, mas também porque sabiam que não havia ninguém mais capacitado que o velho mestre para ensinar às novas gerações.
Houve um verão em que as chuvas foram mais abundantes que o normal. O rio Hou aumentou seu caudal, suas águas torrenciais rugiam violentas ao passar debaixo da ponte que ligava a aldeia ao penhasco de Sensei Xu. Havia tanta água que quando os alunos cruzavam a ponte de cordas, recebiam respingos lançados pela correnteza. Aconteceu um dia que no final da tarde desabou uma chuva forte que prosseguiu por toda a noite. Na manhã seguinte havia parado de chover e as crianças e jovens com alegria se encaminhavam para a ponte para mais uma aula de Wushu com o Sensei. Para surpresa e decepção de todos, a ponte de cordas havia sumido. As violentas águas do rio Hou haviam subido tanto que tinham rompido as amarras da ponte. Foi uma grande tristeza para todos, pois a ponte era a única possibilidade de cruzar até o penhasco do outro lado! Como os alunos fariam para poder a receber as instruções do mestre Xu? Naquele dia a rotina da pacata Feng-Hay foi totalmente desordenada! Todos, crianças, adultos e velhos, vieram à praça central da aldeia e conversavam e discutiam e lamentavam a destruição da ponte! A antiga ponte era utilizada há tantos anos, que ninguém mais se lembrava de quando fora feita. Demoraria muito tempo para conseguirem cordas suficientes e tábuas para construir uma nova ponte. Quanto tempo isto levaria? Talvez meses? Talvez todo um ano? Ninguém sabia dizer… As crianças entristecidas perguntavam a seus pais e avós, quanto tempo eles teriam que esperar até poderem retornar às aulas de Sensei Xu. Muito se conversou, muito se planejou naquele dia e nos que se seguiram, mas era certo que passariam muitos dias até que pudessem reconstruir a ponte.
Do outro lado, Piong-He relatou ao velho mestre que os alunos não poderiam vir, pois a ponte sobre o rio Hou havia sido arrancada pelas águas e acrescentou:
—Nada disto teria acontecido, se não fosse a inconveniente chuva da véspera, que não deu um momento de trégua e que transformou o rio Hou em uma correnteza tão violenta.
Sensei Xu ouviu o aprendiz reclamar e dizer alguns impropérios ainda por alguns minutos, pois como as pessoas na aldeia, o jovem estava muito incomodado com o que havia acontecido. Depois de ficar um bom tempo calado o ancião disse:
—Piong-He, hoje precisamos começar o dia com o exercício do peixe silencioso!
O aprendiz se surpreendeu e perguntou:
—Sensei, o senhor nunca me mostrou este exercício.
Mestre Xu prosseguiu:
—Não mostrei porque supus até agora que não era necessário! O peixe nada sempre em silêncio nas águas serenas ou nas águas agitadas. O peixe nunca se queixa da água, pois ele sabe que precisa dela para viver.
Piong-He corou de vergonha, pois entendeu que o mestre estava falando diretamente a ele por causa da explosão de queixas que havia dito. Seu consolo era que Sensei Xu não poderia ver ser rosto ruborizado!
O ancião continuou:
-Não reclame da água ou do vento. A chuva é uma benção dos céus para a Terra. As águas levaram nossa ponte. Com certeza, isto nos entristece muito, mas quem sabe se há lugares onde estas águas da chuva de ontem serão recebidas com alegria. Você deveria se lembrar que os verões nos últimos anos foram mais secos do que o habitual. Aqui na montanha não nos falta água pois a geleiras nos presenteiam com abundância. Eu visitei na minha juventude as grandes planícies onde se planta o arroz. Se a chuva é pouca, os campos secam e o arroz não sobrevive. Estas chuvas trarão aos plantadores de arroz uma boa colheita e haverá abundância de comida nas tigelas de muitas famílias este ano! O que significa tudo isto, comparado com uma velha ponte de cordas?
Ao ouvir o ensinamento do Sensei, o aprendiz ficou mais envergonhado e com o rosto mais vermelho ainda! Contudo estava contente por ter a oportunidade de conviver com um homem tão sábio e bondoso na arte de ensinar!
—Se o mestre me autorizar, eu gostaria hoje de praticar o exercício do peixe silencioso o dia inteiro. Mostre-me por favor como devo fazer.
Sensei Xu, porém, estava preocupado neste momento com outra questão:
—Diga-me, Piong-He, você consegue ver meus jovens pupilos do outro lado do vale?
O jovem se aproximou da borda do abismo que os separava de Feng-Hay e viu à distância, toda a população da aldeia aglomerada no outro lado.
—Mestre, estão todos gesticulando e caminhando agitados na praça. Parece-me que as crianças também estão por lá, desorientadas no meio dos adultos. Não é possível ouvir o que dizem, por causa da distância e porque as águas do Hou ainda fazem muito ruído.
—Ainda assim não podemos interromper nossas aulas de Wushu! – disse Sensei Xu.
Piong-He, entretanto, questionou o mestre como isto seria possível, visto que as crianças estavam distantes, havia o ruído das águas e mesmo que o mestre fizesse os exercícios eles mal conseguiriam enxergar com nitidez os delicados e precisos gestos do Wushu.
O ancião então lhe disse:
—Piong-He, você vai mostrar para eles o que devem fazer!
O aprendiz ficou surpreso com a tarefa. Como poderia cumpri-la? Apenas se tivesse as asas da grande águia, poderia voar até a aldeia e mostrar as sequências de exercícios, pois ao longo dos anos com o Sensei, ele já havia aprendido bastante. Mestre Xu, contudo, havia pensado outra maneira. Pediu a Piong-He que buscasse no interior da cabana umas pedras brancas e macias, que estavam guardadas num canto. Quando o jovem regressou com as pedras, o Sensei lhe instruiu detalhadamente o que deveria fazer.
Piong-He tocou o sino. Desta vez com maior intensidade para que os alunos pudessem escutar.
Sensei Xu, como todos os dias, subiu na rocha e se posicionou com o bastão de tuia.
Do outro lado as pessoas se surpreenderam ao escutar as pancadas no sino e foram fazendo silêncio. Naquele instante ficou evidente para todos que a aula de Wushu começaria. Mesmo os adultos se posicionaram com os pés firmes no chão, com atenção no céu, quietos e atentos apenas ao sereno ritmo da própria respiração. Ninguém conseguir visualizar o Sensei. À distância era uma figura pequenina. Entretanto no paredão de rocha escura atrás da plataforma do mestre, Piong-He riscava a rocha com a pedra branca e macia, deixando um longo traço vertical, grande o suficiente para que todos pudesse ver.
Todos logo compreenderam: aquele traço vertical representava o bastão de tuia do mestre, que estava pedindo que todos fizessem o exercício da tuia!
No momento seguinte, o aprendiz desenhou outros traços, seguindo os movimentos no ar do bastão do sensei. No outro lado os alunos iam identificando as formas desenhadas e repetiam com seus membros os movimentos correspondentes. Assim prossegui a aula: Sensei Xu executava um movimento, Piong-He o transcrevia com traços retos ou curvos no paredão escuro de rocha, do outro lado, as crianças, os jovens e até mesmo os adultos imitavam a sequência olhando os desenhos e relembrando os movimentos do Wushu.
Nos dias que sucederam, as aulas continuaram deste modo.
Dentro do possível, a vida voltou à rotina normal. Todas as manhas, na borda do abismo do rio Hou, os alunos de Sensei Xu aguardavam as batidas do sino e os desenhos de traços no paredão rochoso para iniciar as diversas sequência de movimentos de Wushu.
Piong-He se esmerava cada dia mais para que seus desenhos ilustrassem da melhor maneira os precisos movimentos do mestre.
Como todas as noites o orvalho dissolvia os desenhos feitos com a rocha macia no dia anterior, a cada manhã o paredão estava limpo e preparado para os novos desenhos daquele dia.
Demorou quase um ano, até que conseguiram reconstruir a ponte. Quando ela ficou pronta, os alunos juntos com todos habitantes da aldeia cruzaram para agradecer ao Sensei e ao seu aprendiz. Com a ajuda de ambos, foi possível prosseguir com as instruções de Wushu, apesar da separação que o abismo lhe impunha.
Para não se esquecer, Piong-He registrou com pincel e tinta em pedaços de couro os vários desenhos que havia criado a partir dos movimentos de Sensei Xu.
Conta-se também que talvez esta tenha sido a origem daquela escrita em ideogramas, semelhante à de muitos povos que vivem no Oriente.
Justamente por ter criado esta arte de comunicação, Piong-He desenvolveu-se muito bem na prática do exercício do “peixe silencioso”, pois para desenhar os ideogramas (e também as nossas letras modernas) é útil manter o silêncio, a concentração e o cuidado no manejo do pincel (ou do lápis), assim o desenho ou a letra adquirem a harmonia e a beleza do traço preciso e, deste modo, podem transmitir a quem os vê a mensagem que representam, mas isto faz parte de outra história…

Renato Gomes

Nota: Dedico este conto aos professores e a todos os que durante este período de isolamento social estão se empenhando e desenvolvendo maneiras novas e criativas para manter o contato com seus alunos e transmitir-lhes de algum modo os conteúdos e as informações que os ajudem neste momento de distanciamento das escolas/instituições de ensino. Parabéns a todos estes profissionais pelos esforços!

 Renato Gomes 

Conto: A panela, os sapatinhos e o sino

Em uma terra muito distante, às margens do deserto, chamada Alealamia, viviam três irmãs, Tharwa, Samirah e Aliithar, as meninas eram órfãs e foram, portanto, criadas pelos avós, um casal de velhos comerciantes, que possuíam como única fonte de sustento uma pequena loja de antiguidades. Certo dia Alealamia foi acometida por uma terrível revoada de corvos enfestados com peste, obrigando todos na cidade a permanecerem na segurança de seus lares. Ninguém podia ser visto nas ruas, que agora eram patrulhadas por guardas trajando vestes protetoras de aço. O sultão Majnun era incapaz de resolver a situação. O medo e as dúvidas em relação ao futuro se alastravam pelo povo. Com o passar dos dias, os mantimentos tornavam-se mais escassos e as pessoas mais solitárias e tristes. Não era diferente com a família das três irmãs. Após alguns meses de confinamento, as meninas amuadas e famintas encontravam-se na loja de antiguidades dos avós à procura de algum resto de mantimentos que talvez estivessem estocados ali por engano. Decorrido algumas horas de busca nos atulhados armários, elas se depararam com uma antiga lata de biscoitos de anis em uma prateleira mais acima. Tharwa, que era a mais alta, esticou os braços para alcançá-la e, sem querer, esbarrou num pequeno frasco de perfume, que caindo se estilhaçou. Dos mil caquinhos espalhados pelo chão, exalou um delicioso aroma de jasmim. Momentos depois, da singela poça aromática, emergiu um gênio com a aparência de alguém muito velho, trajado com um conjunto surrado de seda magenta adornado por bordados coloridos que estampavam pássaros tropicais. O gênio então proferiu, com uma voz asmática, um verso em rimas:

“Três desejos lhes posso conceder
Um a cada uma, com o meu poder.
O desejo não pode ser pronunciado,
Apenas no íntimo deve ser pensado.
Um desejo por semana realizarei,
Na virada da noite para o dia, aqui retornarei.
Escolham com atenção e com muito critério
Pois todo dom mágico é sempre algo sério!”

A seguir o gênio desapareceu. As três irmãs retornaram à cozinha onde a vovó já preparava o jantar. Após comerem, menos do que o suficiente para se sentirem saciadas, as três meninas se deitaram, ainda muito famintas, em suas caminhas macias, pensando nas palavras do velho gênio. Cada uma das irmãs fitou o céu estrelado pela janela até que o gongo do relógio no console da sala deu doze badaladas e assim proferiram mentalmente cada uma o seu desejo. Na manhã seguinte, as meninas, ao acordarem, avistaram um pequeno embrulho aos pés da cama de Tharwa. A menina apressou-se em desembrulhá-lo e tirou do delicado emaranhado de sedas coloridas, uma panelinha de cobre. As irmãs ficaram em silêncio admirando o presente por uns minutos, até que Samirah perguntou, em um tom intrigado, o que Tharwa tinha pedido ao gênio. A irmã apressou-se em explicar com a voz estupefata, que desejara que a família nunca mais viesse a passar fome e assim de fato aconteceu. A panela de cobre era encantada, bastava colocá-la no fogão com um pouco de água, que em seu interior se materializava o alimento desejado. A família passou uma semana agradável de bonança e fartura. Após decorrido os sete dias, ao despertarem, as três irmãs se depararam com uma pequena caixa de madeira aos pés da cama de Samirah. A menina, ansiosa saltou da cama e tirou da caixinha um par de lindos sapatinhos azul noite. De seu interior saía um pedaço de pergaminho com os dizeres: “Basta calçar-me e bater três vezes os tornozelos, que podes viajar aonde sua imaginação mandar!” Assim Samirah calçou-os alegremente e, seguindo as instruções do bilhete, se desmaterializou do quarto. Segundos depois encontrava-se aos pés da cama de Laila, sua melhor amiga na aldeia. Novamente a família desfrutou de uma semana muito feliz, todos de barriga cheia e o coração acalentado pelas visitas à casa dos amigos. Ao decorrer de outros sete dias, as três irmãs acordaram com a expectativa do presente de Aliithar. Dito e feito, aos pés de sua cama encontrava-se o menor de todos os embrulhos, era uma bolsinha pequena de veludo escuro puído que tilintava levemente. Aliithar desfez o laço cuidadosamente e se deparou com um simples sino de prata, muito antigo e um pouco oxidado pelo tempo. Não havia bilhete, nem nada mais na bolsinha. As outras irmãs então, intrigadas, perguntaram qual havia sido o desejo de Aliithar, que respondeu, com a voz tristonha: “Pedi ao gênio que todos os corvos abandonassem as terras de Alealamia para todo o sempre…” “Entretanto – arrematou Aliithar, – o gênio se confundiu, ou não entendeu o meu desejo, afinal ele era muito velho mesmo!”
Nos dias que se sucederam, Aliithar punha-se cada vez mais triste, apesar das três deliciosas refeições de todos os dias e das constantes visitas aos amigos, pois a menina sabia que enquanto o bando de corvos ocupasse as ruas, ninguém poderia sair de casa. Além disso as outras famílias da aldeia não possuíam um gênio mágico, que concedia desejos. O restante do povo passava fome e sentia-se solitário e triste no isolamento. Às vezes, na calada da noite, Aliithar brandia o sininho na janela na esperança de que o tilintar metálico afugentasse os pássaros. Alguns corvos empoleirados na cerca levantavam voo, mas logo pousavam nos telhados vizinhos. Ainda assim a menina cultivava uma pequena chama de esperança. Tharwa e Samirah acometeram-se também da tristeza da irmã, pois como esta, apesar de possuírem a alegria das companhias dos amigos e a fartura da panelinha mágica, sabiam que era um privilégio apenas de sua família e daquelas que lhes eram próximas. Certo dia as três irmãs, após muito confabular, tiveram uma ideia. Como de costume ao escurecer foram à cozinha jantar. Depois, sem pestanejar, deitaram-se em suas camas, porém estavam vestidas ainda e assim que escutaram o silêncio da casa e se asseguraram de que vovô e vovó dormiam tranquilamente no outro quarto, foram pé ante pé até a cozinha, pegaram na prateleira de baixo a panelinha de cobre e assaram pães suficientes para encher três cestas, depois a panelinha produziu uma grande quantidade de queijos e bolos. As irmãs embalaram as comidas em grandes bolsas de algodão e se postaram uma a cada lado de Samirah que já calçava os sapatinhos azul noite. Foram assim de porta em porta a cada casa da vila, deixando os pães, bolos e queijos para todas as famílias. A cada porta que chegavam, Aliithar tocava seu sininho e assim que alguém vinha atender, as meninas desapareciam antes da porta se abrir. Quando o dia já clareava no horizonte, as três irmãs finalmente depositaram o último embrulho de alimentos. Aliithar tocou o sininho de prata uma última vez e as meninas desapareceram na luz dourada da aurora, reaparecendo instantes depois na cozinha da avó, que a esta hora já se encontrava desperta preparando o café da manhã. Assim que as irmãs retornaram, a vovó correu ao seu encontro brandindo alegremente as mãos e apontando em direção ao jardim gritando de felicidade. Quando as meninas, confusas, olharam pela janela, viram que as ruas e praças antes pontilhadas de corvos encontravam-se agora limpas e vazias. As terras de Alealamia estavam finalmente livres da peste e toda a aldeia saiu a dançar e a cantar.
Aliithar compreendeu então que seu desejo ao gênio fora de fato realizado. O tilintar mágico do sino havia afugentado as aves pestilentas, entretanto, para que isto se realizasse era necessário mais que apenas magia. As três irmãs, movidas pelo seu altruísmo, uniram os dons que receberam do gênio. Tharwa compartilhou a fortuna da fartura da sua panelinha encantada. Samirah levou, com seus sapatinhos, a alegria para todos os lares. E Aliithar conseguiu finalmente afugentar os corvos com o som do sino de prata. Assim juntas, as três salvaram Alealamia da terrível peste.

(- – -)

Nota:
Este conto me foi entregue por uma pessoa amiga que prefere se manter anônima. Com a anuência do autor reescrevi o texto num estilo direcionando às crianças. É um presente a todas as famílias nestes dias de isolamento social.
Os nomes dos personagens foram inspirados e adaptados a partir de palavras da língua árabe, que traduzidas significam aproximadamente: Tharwa – fortuna; Samirah – alegre, que conversa; Aliithar – altruísmo; Majnun – insano. O nome da aldeia: Alealamia – o mundo.

Renato Gomes

Conto: O prato de comida

Era uma vez um reino prospero e bonito que por muitos anos foi governado por reis generosos e preocupados com o seu povo fazendo sempre o melhor para que todos vivessem em harmonia e tivessem tudo aquilo que precisavam. Um dia o governante daquele lugar ficou doente e morreu, ele não tinha filhos e quem assumiu o trono no seu lugar foi o seu único sobrinho distante chamado Zovino.
O rei Zovino, diferente de todos os outros governantes que haviam reinado naquele lugar, era um homem mesquinho, daqueles governantes que só se preocupam consigo mesmo, com sua família, com seus amigos e não estão preocupados com o bem das pessoas. Assim, Zovino fazia tudo para arrecadar em seu palácio todas as riquezas que seu povo era capaz de lhe dar, mas jamais pensava em ajudar os mais necessitados. Havia algumas pessoas na corte, entre elas um conselheiro chamado Eustáquio, que sempre tentava mostrar ao rei que aquela não era a maneira correta de governar. Todos os reis do passado haviam sido sempre muito justos e corretos e Zovino estava se tornando um rei muito diferente e isso, alguma hora, traria problema para as pessoas. Mas Zovino, mesquinho como era, não se importava com isso, mas Eustáquio e os outros conselheiros sempre lhe chamavam a atenção.
Chegou um tempo em que veio uma grande fome no país. Os celeiros do rei e as cozinhas do palácio estavam repletos de alimentos, mas a população mais pobre começou a passar fome. Não havia alimentos para todos e começaram realmente a passar grande necessidade. Vivia próximo dali uma família que tinha 13 filhos, uma menina mais velha chamada Maria e seus 12 irmãos menores. Os pais de Maria chegaram a vender tudo que tinham para conseguir comprar alimento para toda a família. Mas depois de um tempo já não tinham mais nada para vender e os dois ficaram doentes. Maria que era a mais velha, cuidava dos irmãos, mas a vida estava ficando muito difícil pois não havia mais alimento na casa e nenhum objeto de valor que pudesse ser vendido.
Por insistências dos conselheiros, principalmente do conselheiro principal Eustáquio, insistiram tanto ao rei que ele resolveu fornecer alimento para as pessoas, abrir os celeiros do palácio, abrir as dispensas da cozinha e fornecer o alimento que havia em abundância para todas as famílias. No princípio Eustáquio e os demais conselheiros ficaram muito contentes quando o rei aceitou esse pedido, mas Zovino, mesquinho como era, disse: “Está bem, mas vai ser assim, cada família virá aqui carregando o seu prato, vamos colocar no prato deles aquilo que couber, mais que isso não vou dar.” Eustáquio então, levou a ordem do rei e mandou que anunciassem na praça dizendo que cada pessoa de cada família deveria trazer o seu prato e o rei colocaria sobre o prato os alimentos que ele  doaria e eles teriam que economizar esse alimento pelos próximos dias.
Todas as pessoas então, que estavam passando muita fome, até que ficaram contentes com aquela ideia. Maria e seus irmãos na verdade ficaram mais tristes ainda, pois haviam vendido tudo e não tinham mais pratos. E sem eles, como conseguiriam alimento lá no palácio do rei Zovino? Maria ficou triste ao ouvir aquela notícia. Eustáquio que estava ali na praça viu uma menina chorando e perguntou: “Mas você, por que chora menina? Vai buscar na sua casa o prato e nós te daremos os alimentos.” Ela contou o seu drama, contou que tinha muitos irmãos para alimentar e não tinham prato. Eustáquio ficou muito penalizado, sabia que não podia fazer diferente do que o que o rei Zovino havia determinado, mas disse-lhe: “Não tenha medo, não se preocupe, vá até a floresta e procure a árvore mais alta, no tronco dessa árvore mais alta você encontrará uma portinhola, bata e a porta vai abrir, peça para a pessoa que lhe atender o que você necessita.”
Maria fez então como o conselheiro Eustáquio havia dito. Foi até a floresta, procurou bastante, até que encontrou uma árvore gigantesca – com certeza a maior que havia naquele lugar. E de fato havia no tronco uma portinhola. Maria bateu, e uma mulher muito velha lhe abriu a porta: “O que você quer minha filha?” perguntou a velhinha. “Ah, eu necessito pratos para os meus irmãos. O rei vai distribuir comida, mas se não tivermos pratos não poderemos receber nada.” “Entre, entre em minha casa, vou ver o que posso fazer para lhe ajudar.”
A menina entrou, e dentro do tronco havia uma casinha bem-arrumada, e lá a velhinha começou a procurar nas gavetas dos armários. Depois de muito procurar entregou para menina um prato de latão e disse: “Pronto, leve este prato, com ele você vai poder pegar os alimentos que necessita.” Maria ficou agradecida, mas, ainda assim, disse: “Senhora, eu agradeço seu presente, mas eu tenho doze irmãos e os meus pais, e num pratinho desses mal caberia comida para uma pessoa…” A velha olhou para a menina e disse: “O desejo de ajudar os seus irmãos e os seus pais é grande no seu coração?” “Sim, sim é muito grande!” “Então não se preocupe, leve esse pratinho. Agora, faça o seguinte: seus doze irmãos terão que ir junto com você. Cada um deles vai segurar num pedacinho do prato e ficar na fila esperando chegar o momento de lhe entregarem a comida. Faça isso, minha jovem, e tudo vai dar certo.”
Maria viu que a senhora estava realmente com boas intenções de lhe ajudar, pegou o pratinho e foi até a sua casa. No dia determinado pelo rei Zovino havia uma grande fila de pessoas enfrente ao palácio. As pessoas do lugar, carregavam famintas, cada uma o seu pratinho. Na esperança de conseguir a comida que havia sido anunciada. E Maria estava lá, com seus doze irmãos. Cada um deles, do maior ao menorzinho, tentava ficar em volta daquele pequeno prato e segurava uma bordinha que fosse. E assim foram caminhando na fila.
Quando chegou a vez deles, os empregados do rei Zovino que estavam distribuindo a comida pegaram dentro da cesta de pão o menor pedacinho (porque o prato era muito pequeno) e colocaram sobre o prato. Mas para a surpresa de  todos os irmãos em volta segurando, o prato começou a crescer, e eles foram se afastando, porque o prato foi ficando grande, grande. E agora o prato era enorme, e havia apenas aquele pedacinho de pão. Então Eustáquio olhou aquilo, olhou para Maria que sorria de alegria, olhou para o rei Zovino que não estava entendendo nada do que estava acontecendo e disse: “majestade, a ordem que havia sido dada era encher o prato de cada um. Esta menina, com seus irmãos, trouxe seu prato, então temos que enchê-lo.”
E mandou que os serventes colocassem. Eles colocaram muitos pães, muitas frutas, muitos doces e outros alimentos. E o prato era tão grande que parecia que não terminava a quantidade de comida que era necessária pra completá-lo. Os doze irmãos e Maria quase não conseguiam carregá-lo, tão pesado ele ficou, tão cheio de comida estava.
E assim, foram para casa alegres – teriam comida por muito tempo, e Maria e seus familiares, como eram generosos, sabiam que nem eles iam comer toda aquela comida: iam dar aos vizinhos, aos amigos, aos que estivessem necessitados. Porque é assim que se faz em épocas difíceis, compartilhamos com os outros aquilo que nos sobra. E isso o rei Zovino não entendia. E ficou tão aborrecido que disse: “Mas Eustáquio, eu não previ que as coisas sairiam desse jeito, eu não mandei cada um trazer um prato? Eles trouxeram um prato mágico, um prato gigante!” E Eustáquio, olhando para o rei Zovino disse: “Majestade, nós apenas cumprimos a sua ordem, mas talvez o senhor possa aprender algo: quando se quer ajudar, se ajuda não apenas com a medida daquilo que está na nossa intenção, mas se ajuda verdadeiramente com a medida da necessidade daquele que precisa.”
Depois que haviam comido tudo, o prato voltou ao seu tamanho normal e Maria o devolveu à velhinha que morava na floresta. E assim, durante um bom tempo tiveram alimentos, até que a fome naquele país passou e a vida começou a retornar ao normal. O rei Zovino não continuou sendo rei por muito tempo. Por sorte apareceu depois dele um rei generoso e bom, como haviam sido os reis do passado, e a prosperidade voltou àquele reino.
Renato Gomes

Stéphanos

Conto de Pentecostes (Parte 2)

No dia da Ascensão de Jesus, Stéphanos foi convidado pelo discípulo João a participar do encontro com os outros discípulos. Ele contou a todos os que estavam reunidos na casa o que havia visto e o significado da mensagem das nuvens que havia interpretado. Os discípulos ficaram contentes com a notícia, pois agora conseguiam imaginar que Jesus simplesmente não havia partido, mas que ele estava se expandindo com as nuvens, para poder levar sua mensagem a todos os lugares. Restava, entretanto, a questão: Jesus lhes pedira que permanecessem um tempo na cidade e que lhes enviaria um sinal.  Que sinal? Quando lhes enviaria? Quanto tempo teriam que esperar?
A partir daquele dia, Stéphanos passou a frequentar aquela casa, que servia de lugar de reunião para os discípulos; participava com eles da refeição e ouvia com muita atenção todas as histórias que eles contavam sobre o que haviam vivido e aprendido com o mestre. Mesmo sem ter conhecido Jesus pessoalmente, Stéphanos começou a sentir que se familiarizava cada vez mais com ele, tão vívidas eram as narrações daqueles que o conheceram e conviveram com ele!
Todas as manhãs o jovem Stéphanos ia ao templo, como seu tio Jacob lhe havia orientado, mas sempre lhe sobrava um pouco de tempo para ir à casa dos discípulos escutar mais histórias. Depois retornava à casa do tio, para ajudar nos trabalhos e tarefas que fossem necessários, no final da tarde subia à torre para observar o céu. Stéphanos andava intrigado, pois, desde o dia da ascensão, o céu estava sempre azul e límpido, totalmente sem nuvens. Ele observava toda volta do horizonte e não conseguia ver o menor sinal de nuvens no céu. Até mesmo o ar parecia imóvel, raramente soprava vento ou brisa
Stéphanos nunca havia vivenciado algo assim na ilha de Syme, onde nascera!
Passaram-se assim dez dias, no total haviam se completado os cinquenta dias desde que Jesus havia ressuscitado. Era novamente um domingo. O jovem estava no templo. Havia muitas pessoas por lá pois naquele dia se celebrava uma festa importante no Templo. Muitas pessoas tinham vindo de lugares distantes de Israel. Stéphanos ouvia pessoas falarem em diversas línguas, cada uma usava o idioma do país de origem. Hebraico, grego, latim, árabe, fenício, cretense, egípcio, persa e muitas outras línguas eram ouvidas nas conversas dos pequenos grupos de pessoas que circulavam pelo pátio do templo. Era comum que acontecessem alguns desentendimentos ou dificuldades de comunicação pois quando uma pessoa falava ou pedia algo em seu idioma, havia outros que não a entendiam ou a compreendiam equivocadamente, gerando assim discussões.
Stéphanos lembrou de uma história que havia ouvido na infância: Há muito tempo todos os seres humanos falavam a mesma língua. Um dia desejaram construir na cidade de Babel uma torre que alcançasse o céu, mas se desentenderam e não conseguiram terminar a obra. A partir daquele momento, por causa dos desentendimentos, as pessoas começaram a falar de maneira diferente uns dos outros e deixou de haver comunicação entre eles. A partir daí surgiram as diferentes línguas. Os grupos de pessoas, que se entendiam, se separaram formando os diferentes povos e países com seus diferentes idiomas.
Stéphanos pensou que seria bom se todos pudessem se entender como havia sido no início! Naquele dia, no pátio do templo, havia inúmeras pessoas que tinham vindo a Jerusalém para celebrar a mesma festa, todos estavam ali pelo mesmo motivo, mas ainda assim não conseguiam se entender bem umas com as outras. Tão diferente era a linguagem das nuvens: elas aparecem no céu em qualquer lugar, vão livremente em todas as direções e quem aprende a prestar atenção a elas, começa a compreender sua mensagem, independente da sua  língua de origem. Stéphanos, porém, já havia notado que a maioria das pessoas não se interessava muito em olhar para o céu e observar as nuvens!
Com estes pensamentos, o jovem procurou um canto mais sossegado no pátio do templo, um lugar mais afastado da balbúrdia geral. Começou então a olhar o céu azul e límpido que permanecia sem nuvens. Foi neste instante que Stéphanos percebeu que havia uma brisa suave passando. Quieto e atento ele esperou. Pouco a pouco percebeu que junto com a brisa vinha um ruído, um som bem suave. Stéphanos logo entendeu que este som queria transmitir algo. Tentou identificar de onde vinha a brisa e para onde ia. O jovem, então, começou a caminhar na direção para onde aquele suave vento soprava. Cruzou todo o pátio do templo passando entre as pessoas. Foi difícil ficar atento ao som da brisa no meio de tantas vozes e gritos, mas a habilidade de bom e atento observador do jovem o ajudou. Saiu do templo e começou a caminhar pelas estreitas ruas da cidade de Jerusalém. À medida que avançava, o som ficava mais audível. Levado pela voz da brisa, Stéphanos chegou à casa onde os discípulos costumavam se reunir. Bateu à porta e um dos serventes abriu-lhe e comentou com um sorriso: 
— É bom que você tenha chegado mais cedo! Todos os discípulos já estão reunidos no andar de cima, pode ir até lá encontrar-se com eles e com todos que vieram! 
Enquanto Stéphanos subia a escada que conduzia ao andar superior, percebeu com admiração que a brisa continuava a soprar no interior da casa e o som ficava mais forte à medida que se aproximava da sala onde os discípulos se encontravam.  Os discípulos estavam reunidos, formando um círculo. Simão Pedro havia acabado de fazer um sorteio para escolher quem poderia ocupar o lugar de Judas Iscariotes, que já não pertencia ao grupo. A sorte havia indicado um jovem de nome Matias, que veio se sentar juntos aos demais no círculo, completando assim o número de doze, como eram nos dias em que todos eles caminhavam com Jesus pelas aldeias e cidade de Israel.  Todos começaram a rezar em silêncio. Stéphanos percebeu que o som da brisa foi se tornando cada vez mais intenso. Parecia que um forte vento soprava dentro da casa até que apareceu no alto uma grande chama que logo se repartiu em doze chamas menores e cada uma delas veio a repousar sobre a cabeça de um dos discípulos sentados no círculo. Todos os presentes presenciaram com admiração o que havia acontecido. Neste instante, Simão Pedro se levantou e tomou a palavra: — Irmãos, este foi o sinal que nosso mestre Jesus havia prometido e que agora nos enviou: É chegado o momento de sair e contar a todos as maravilhas que Jesus Cristo nos ensinou! Vamos!  Saiamos!
Todos saíram da casa e se dirigiram ao templo. Lá começaram a falar e, para surpresa de todos, eles falavam de tal modo que cada um dos que estavam no templo os entendiam em sua própria linguagem, não importando de que país tinham vindo. As discussões e os desentendimentos cessaram por um instante e muitos se aproximaram aos discípulos paro ouvir o que diziam, ficando assim maravilhados. Stéphanos lembrou-se da história da Torre de Babel que gerou a confusão das línguas e pensou: “Parece que o fogo divino que se repartiu entre os discípulos, trouxe a possibilidade de superar o desentendimento e que será possível que nos comuniquemos de novo uns com os outros de forma plena!”
Olhando para o céu o jovem viu que várias pequenas nuvens vindas de todos os lados se aproximavam e pairavam no céu bem acima do pátio do templo. “Que bom que as nuvens voltaram!” – alegrou-se Stéphanos! As nuvens formavam no céu um mosaico harmonioso e bonito de se ver, em consonância com a harmonia que acontecia na Terra.
Houve, entretanto, algumas poucas pessoas que se incomodaram e começaram a reclamar: — O que estes simples pescadores da Galileia estão fazendo aqui? Eles não são homens cultos! Como podem estar falando estas coisas sobre o Reino de Deus? Como é possível que todos os compreendam em suas próprias línguas? – se perguntavam. Outros ainda, retrucavam: — Talvez tenham bebido muito vinho!  Por isto estão tão exaltados!
Stéphanos, porém, sabia que o motivo era outro!
Muitas pessoas participaram naquele dia deste grande milagre, que mais tarde ficou conhecido como a festa de Pentecostes, a festa do quinquagésimo dia após a ressurreição de Jesus Cristo. O dia em que Ele enviou o fogo do espírito aos discípulos para anunciar a todos os povos e em todas as línguas a boa mensagem que traz paz e alegria ao coração das pessoas!

Renato Gomes

Stéphanos

Conto de Ascensão (Parte 1)

Stéphanos havia nascido na pequena ilha de Syme. Seus pais provinham de Jerusalém e se instalaram naquele local. Apesar de a família pertencer ao judaísmo, o casal escolheu para seu filho um nome grego, pois naquela ilha todos falavam este idioma e pertenciam à cultura grega. Quando Stéphanos ainda era pequeno, seu pai, que era comerciante, morreu durante uma viagem em que seu barco naufragou. O menino sentiu muito a perda do pai. Desde cedo teve que começar a trabalhar para ajudar sua mãe. Sempre que tinha algum tempo livre, Stéphanos subia o monte mais alto, que ficava no centro da ilha e do alto observava a imensidão do mar e do céu. Na solidão e no silêncio daquele lugar, o menino se sentia bem. Com o passar dos anos Stéphanos aprendeu a observar a formação e o movimento das nuvens. Ele sabia dizer, olhando para o céu, se naquele dia haveria chuva ou não, se os ventos eram propícios para a saída dos barcos ou se era mais seguro permanecer no cais, sabia também reconhecer com precisão quando iniciariam os dias frios do inverno ou quando retornaria o calor do verão. De tudo que observava, Stéphanos se deliciava mais com as próprias nuvens, como elas apareciam ou desapareciam no céu, como sua forma se transformava, a medida em que eram carregadas pelo vento. Olhando para as nuvens ele percebia que em sua forma e movimento, havia uma linguagem que, mesmo sem compreender completamente, ele podia observar por horas seguidas. Stéphanos tinha a sensação de que as nuvens conversavam com ele.
Stéphanos cresceu, tornou-se um jovem de rosto delicado e caráter tímido. Falava pouco, ouvia tudo com muita atenção. Era tão atencioso e bem treinado na observação que muitas vezes as pessoas tinham a impressão de que o jovem adivinha o que estava para acontecer. Em verdade Stéphanos apenas prestava atenção e rapidamente percebia coisas que a maioria das pessoas deixa passar despercebido.
Stéphanos trabalhava de ajudante para descarregar mercadorias dos barcos que chegavam. Certo dia chegou um grande barco romano com muitas sacas de trigo do Egito. Os comerciantes de Syme compraram uma parte do trigo para alimentação da população. Era necessário portanto retirar as sacas e colocá-las no grande depósito do porto. Stéphanos junto com outros jovens realizavam esta tarefa. Os carregadores tinham que descer ao porão do barco, colocar uma saca sobre os ombros e descer por uma estreita prancha de madeira à terra.
Na volta retornavam por outra prancha para não atrapalhar o fluxo dos que saiam do barco carregados. O jovem já havia feito várias vezes este caminho. Quando havia retornado ao barco, pela prancha dos que subiam, para buscar mais uma saca de trigo, saiu de sua fila e colocou-se diante de um dos carregadores que estava prestes a descer, impedindo-lhe a passagem e lhe disse para não descer pela prancha pois ela não aguentaria seu peso. O outro ficou irritado e retrucou que todos eles já haviam passado por aquela prancha tantas vezes, porque somente agora ela não aguentaria! Armou-se uma discussão, à qual se juntaram os outros carregadores. Um centurião romano, que era o comandante do barco, aproximou-se para ver por que o fluxo de carregadores havia se interrompido. Ouviu a explicação do jovem Stéphanos, para que ninguém mais descesse por aquela prancha. Movido pela curiosidade, o centurião decidiu pôr à prova o que o jovem dizia. Mandou que dois carregadores jogassem seus sacos sobre a prancha para ver se ela aguentaria. Eles jogaram e nada aconteceu. Stéphanos disse que o peso de uma pessoa carregando um saco era superior, equivalia a três sacas de trigo. O centurião mais intrigado ainda, mandou que atirassem uma terceira saca. Neste instante a prancha quebrou-se com um grande ruído, deixando as sacas de trigo caírem no mar. Todos ficaram surpresos!
— Como você sabia que justamente agora a prancha estava a ponto de se quebrar? Você é algum tipo de adivinho?
Stéphanos explicou ao centurião que, desde a primeira vez que ele passara por aquela prancha, percebeu que a madeira fazia um som diferente da outra prancha. A cada passagem de um carregador o som ia se modificando e a prancha cedia cada vez um pouco mais. Era claro que faltava bem pouco para se romper completamente!
Todos ficaram admirados, pois nenhum dos carregadores que por ali passaram havia percebido com tanta sutileza o que estava acontecendo. Os marinheiros colocaram outra prancha no local e os carregadores prosseguiram com a retirada das sacas de trigo que restavam. Ao final da jornada de trabalho, o centurião chamou os carregadores para lhes pagar pelo serviço, quando chegou a vez de Stéphanos, lhe perguntou:
— Jovem, você quer fazer parte da tripulação do meu barco? Vi que você é muito observador!
— Senhor – respondeu o jovem que ficou surpreso e feliz com a ideia, pois sempre desejara viajar e conhecer outros lugares – eu preciso primeiro pedir a autorização a minha mãe! Para onde vai seu barco?
— Viajaremos ainda por várias outras ilhas gregas deste arquipélago, mas minha missão é levar meus soldados a Jerusalém.
Ao ouvir que iriam a Jerusalém, Stéphanos ficou mais interessado ainda. Quando criança havia ouvido de seu pai muitas histórias sobre Jerusalém, a Cidade Santa, onde ficava o maravilhoso Templo construído pelo rei Salomão.
— Meu barco fica ancorado aqui nesta ilha por mais três dias – disse o centurião – depois partiremos. Se você se decidir até lá, me diga.
— Senhor – comentou Stéphanos – não deve partir daqui a três dias pois vai encontrar uma forte tempestade no mar! Deveria esperar pelo menos uma semana, até que os ventos do alto-mar se acalmem.
O centurião ficou mais admirado ainda:
— Como você tem tanta certeza sobre o que está falando?
Stéphanos contou ao centurião romano que todos os dias subia o monte da ilha e observava o céu e as nuvens. Naquele período do ano ele sempre observava que numa certa direção do horizonte o céu ficava com cores escuras e as nuvens eram sopradas de lá por fortes ventos. Aquele fenômeno durava em média três ou quatro dias. Isto sempre significava tempestade em alto-mar e justamente naquela direção o centurião pretendia ir com seu barco.
Depois de ouvir estas explicações, o centurião ficou mais interessado ainda que Stéphanos viajasse com ele no barco. O jovem conversou com sua mãe sobre a viagem àquela noite. No início, ela não queria que seu filho deixasse a ilha. Se sentiria muito solitária, por outro lado, a mãe sabia que um dia seu filho teria que sair da ilha, conhecer outros lugares. Afinal ela mesma havia nascido em Jerusalém, sabia que lá seu filho poderia aprender muitas coisas sobre a história de seu povo. Stéphanos, por seu lado, compreendia os sentimentos de sua mãe e não queria partir sabendo que ela ficaria triste com a sua ausência. Nos dias que se seguiram, o jovem decidiu subir o monte para ver o que a linguagem das nuvens no céu lhe podia dizer, talvez lhe trouxesse uma orientação.
Uma noite Stéphanos perguntou a sua mãe:
— Por que não vamos juntos nesta viagem? Lembro que papai sempre nos dizia que em Jerusalém mora seu irmão, o tio Jacob. Podemos passar a viver com ele.
A mãe de Stéphanos não estava segura se o tio Jacob os receberia em sua casa, além disso o centurião havia oferecido a viagem no barco apenas ao jovem.
— Mãe, não se preocupe – disse Stéphanos – As nuvens no horizonte, na direção onde fica Jerusalém, nos últimos dias, apareceram no céu com uma cor muito bonita. Por causa da distância, eu as vi bem pequeninas no horizonte. Elas brilhavam num tom dourado diferente de qualquer outra nuvem que já vi. Estou seguro que algo muito especial está acontecendo por lá neste momento. Creio também que tio Jacob vai ficar contente em me conhecer. Você não diz sempre que sou muito parecido com meu pai? Tio Jacob, gostava muito do papai, com certeza vai se alegrar em acolher a família de seu único irmão falecido. Amanhã vou falar com o centurião. Direi que só aceito ir com ele, se me permitir levar comigo minha mãe.
Tudo transcorreu como Stéphanos havia desejado.
Depois do tempo que o jovem havia previsto para que cessassem as tempestades, o grande barco romano deixou a ilha de Syme, levando Stéphanos e sua mãe, em direção a Israel, a terra do povo judeu, cuja capital era Jerusalém. O trajeto por mar durou alguns dias. Desembarcaram na cidade portuária de Jafa. A Cidade Santa ficava nas montanhas do interior. A jornada até Jerusalém levaria alguns dias por caminhos desérticos e montanhosos. Eles precisavam se juntar a alguma caravana, pois não era possível fazer a viagem sozinhos. Stéphanos pediu ao centurião se eles poderiam ir junto com a caravana formada pelos soldados romanos, pois eles também pretendiam ir para Jerusalém.
Durante o caminho, Stéphanos observava atentamente o céu. Diferente do que conhecera na ilha de Syme, ele viu pouquíssimas nuvens naqueles dias. O jovem sentia falta delas. Onde estariam aquelas nuvens de cor dourado que havia visto no horizonte ante de iniciar a viagem? Por que o céu estava tão vazio?
Quando faltavam algumas horas de caminhada até a cidade, Stéphanos viu com alegria pequenas nuvens douradas no céu. Localizavam-se na direção de Jerusalém. Quando chegaram lá, ele percebeu que as nuvens formavam um grande círculo no céu em cima da cidade. Isto deixou o rapaz muito impressionado.
Tio Jacob recebeu Stéphanos e sua mãe com alegria em sua casa. De fato, o rapaz lhe trazia muito à lembrança o falecido irmão quando era jovem. Jacob estava disposto a acolher ambos, o sobrinho e sua mãe, em sua residência. Propôs que o jovem começasse logo a aprender os ensinamentos sagrados da religião judaica. Stéphanos havia crescido entre os gregos e não tivera esta oportunidade na ilha de Syme. Todos os dias deveria ir ao Templo ouvir os mestres e escribas.
Deste modo, Stéphanos passou a visitar o templo todas as manhãs. Lá ouviu muitas coisas, uma delas o deixou muito impressionado. Ouviu que pouco tempo antes havia acontecido algo inusitado na cidade: contavam que um homem de nome Jesus, que havia morrido, havia retornado à vida. Seus amigos e discípulos assim o afirmavam. Ninguém o havia visto, a não ser os próprios discípulos. Havia os que negavam totalmente estas histórias, havia também os que imaginavam que aquelas falas poderiam ser verdadeiras, pois afinal Jesus havia sido um profeta, havia curado muitas pessoas e havia ensinado o povo de maneira diferente de todos os mestres escribas do templo.
Stéphanos tentou indagar onde poderia encontrar algum dos discípulos, pois queria saber diretamente deles o que tinham a dizer, mas ninguém sabia informar. Também não sabiam dizer em que lugar na cidade eles se reuniam.
Stéphanos calculou então o momento em que o milagre de Jesus havia acontecido e notou que foi justamente no dia em que havia chegado a Jerusalém, quando vira no céu o círculo de nuvens douradas sobre a cidade. Este dia era um domingo.
No final de cada tarde, Stéphanos subia à torre que existia na casa de seu tio Jacob, para poder observar melhor o céu. Notava que próximo ao momento do pôr do sol, as pequenas nuvens douradas apareciam no horizonte e, vindas cada uma de uma direção diferente, iam se aproximando até formar um grande círculo sobre a cidade. Ficavam ali alguns instantes e depois desapareciam. O jovem se perguntava o que aquilo poderia significar, mas não encontrava respostas. A linguagem daquelas nuvens ainda lhe era incompreensível. A única coisa que ele conseguia imaginar era que talvez elas estivessem relacionadas com o profeta Jesus, que havia ressuscitado naquele domingo. Stéphanos desejava do fundo do coração encontrar algum dos discípulos para saber mais sobre Jesus, mas como conseguiria isto?
Passaram vários dias, vários domingos. Stéphanos ia todos os dias ao templo, tentava encontrar alguma nova informação sobre Jesus, mas não descobria nada novo. Em casa, após ajudar o tio em seus trabalhos, no final do dia, Stéphanos subia à torre para olhar o céu e as nuvens. Haviam passado quarenta dias desde que chegara a Jerusalém. Naquela tarde, do alto da torre, o jovem viu um grupo de pessoas saindo da cidade e subindo o Monte das Oliveiras, que ficava próximo. Ao chegaram ao topo do monte, formaram um pequeno círculo em torno de um dos homens. A distância Stéphanos não podia ver muitos detalhes, mas uma coisa chamou sua atenção: As nuvens douradas nesta tarde não se reuniram em círculo sobre a cidade, mas se dirigiram para o alto do Monte das Oliveiras e desta vez se aproximaram tanto umas das outras que se juntaram e formaram uma única nuvem. Do local onde Stéphanos estava, parecia que a nuvem envolvia todo o topo do monte. Ele deixou de ver o grupo de pessoas que ali estavam. A seguir a grande nuvem começou a se elevar. Stéphanos pôde ver de novo o grupo. Não viu mais aquele que estava no centro, apenas os outros que formavam o círculo, todos olhavam para a nuvem que subia.
O jovem percebeu também que a nuvem dourada se elevou bastante e no alto começou a se expandir, cresceu tanto que começou a se partir em muitas nuvens menores, que se dirigiam, cada uma a uma direção diferente no céu. Notou ainda que suas cores iam se transformando, cada uma delas tinha um matiz um pouco diferente das demais. Olhando rapidamente pareciam nuvens brancas que refletiam o dourado da luz do sol se pondo, mas os olhos observadores de Stéphanos perceberam que havia um brilho e uma coloração única em cada fragmento da grande nuvem que se expandiu. Quanto mais o círculo se ampliava, mais as partes da grande nuvem tornavam a se repartir. Stéphanos ficou observando admirado! Olhava-as com muita atenção até que ficaram tão distantes que já não se podia ver. Esta visão encheu o peito do jovem de alegria. Neste momento ele percebeu que os homens começaram a descer o Monte das Oliveiras e retornavam à cidade. Rapidamente Stéphanos desceu da torre e se dirigiu a um dos portões na muralha de Jerusalém, por onde o grupo pretendia entrar na cidade. Stéphanos finalmente encontrara o grupo de discípulos! Eles entraram cabisbaixos na cidade, tinham o semblante entristecido e perplexo. Stéphanos se aproximou do mais jovem entre eles, que vinha um pouco mais atrás do grupo e perguntou: – Vocês são os discípulos de Jesus?
O outro, que se chamava João, olhou para ele e se demorou a responder, mas disse por fim: – Sim, mas como você soube? Não lhe conheço, você parece estrangeiro aqui.
Stéphanos sentiu que precisava contar para o jovem discípulo o que acabara de vivenciar no alto da torre. O discípulo João ouviu o relato de Stéphanos em grande silêncio. Ao final acrescentou: – Jesus, depois que havia ressuscitado, se encontrava conosco todos os dias na casa onde comemos com ele a sua última refeição antes de morrer. Foram 40 dias, desde aquele domingo especial, em que ele nos aparecia enquanto estávamos reunidos à mesa com as portas fechadas.
Sua presença nos enchia de alegria! Ele nos falava muitas coisas!
Stéphanos, imediatamente se recordou do círculo de nuvens douradas que via todas as tardes sobre a cidade e interrompendo o relato de João, perguntou:
— Por que ninguém soube me dizer o lugar onde vocês se encontravam? Eu queria tanto conhecer Jesus!
João respondeu: — Estávamos assustados! Algumas pessoas diziam que estávamos mentindo, não acreditavam em nós. Também para alguns dentre nós foi difícil no início acreditar que nosso mestre havia ressuscitado!
— Então – prosseguiu Stéphanos – era por isto que as pessoas no templo não sabiam me dizer nada sobre Jesus e sobre vocês.
João retomou a narrativa.
— Hoje, porém, aconteceu algo diferente. Jesus nos pediu para sair, fomos ao Monte das Oliveiras. Pensei que havia chegado o momento em que todos em Jerusalém iriam vê-lo, mas para surpresa de todos nós, ele nos levou ao alto do monte e se elevou aos céus, até que uma nuvem o envolveu. Foi isto que você viu do alto da torre.
Stéphanos afirmou balançando a cabeça e em seguida perguntou: — Não entendo então, por que você e os outros discípulos estão regressando à cidade com os rostos tristes? Do alto da torre foi algo lindo de se ver. Nunca havia visto as nuvens formarem algo tão maravilhoso nos céus!
João respondeu-lhe: — Ao se despedir de nós, Jesus disse que permanecêssemos na cidade. Ele nos enviaria um sinal. Entretanto não sabemos quanto tempo devemos esperar, nem sabemos se ele algum dia voltará a estar conosco. Isto nos deixou tristes! Pensávamos que em pouco tempo poderíamos levar a alegria da boa notícia que Jesus está vivo às muitas pessoas que o conheceram e a outras mais, porém agora estamos confundidos.
No rosto de Stéphanos iluminou-se um sorriso:
— Você não entende? Não compreendeu a mensagem que as nuvens nos deixaram? – e prosseguiu – Antes, Jesus estava reunido apenas com vocês, os doze discípulos. Hoje ele entrou naquela grande nuvem dourada para poder se expandir e ir a todos os lugares, a todos os povos da Terra. Com as nuvens ele poderá estar em muitos lugares, em todos os lugares, pois as nuvens aparecem no céu de qualquer lugar. Eu vi que as partes que se separavam da grande nuvem brilhavam cada uma em um matiz diferente, isto também me chamou à atenção, pois nunca havia visto algo igual, até que entendi: as pessoas são diferentes, vivem de maneira diferente nos muitos países e povos da Terra. Ele quer ir ao encontro de cada povo com a cor e o matiz próprio de cada um deles. Foi assim que finalmente compreendi a mensagem daquelas nuvens.
Ao ouvir esta explicação, João ficou muito alegre e convidou Stéphanos a vir tomar a ceia com eles no lugar onde se reuniam, para que pudesse contar aos outros discípulos o que havia visto e compreendido pela mensagem das nuvens.

Renato Gomes

Nota: Haverá uma continuação deste conto, no domingo de Pentecostes.