Conto: Sementes da esperança (Parte 2)

No dia seguinte Mbongo subiu a montanha. Quando chegou ao alto já estava entardecendo. O pico da montanha estava coberto de neve e o vento era frio, apesar disto Mbongo não se importou muito. Decidiu permanecer ali. Elevou bem os braços, da maneira como havia recebido as orientações do guardião da montanha, e ficou observando o céu, na expectativa de ver passar uma estrela cadente. Ficou assim por um bom tempo até perceber que uma estrela se aproximava. Mbongo ficou muito contente! Com os braços bem erguidos esperava conseguir segurar aquela estrela e pedir para ela as sementes da esperança, mas a estrela passou bem longe. Mbongo não desanimou, continuou firme. Naquela noite passaram muitas estrelas cadentes, uma após a outra; entretanto elas cruzavam o céu distantes de Mbongo ou passavam de tal maneira que ele não conseguia segurá-las. Em certo momento deu a impressão que uma estrela estava chegando perto. Mbongo então pensou: “Agora vou conseguir!” Estendeu bem os seus braços e tentou agarrá-la. A luz, porém, era muito intensa e por isto Mbongo não conseguiu manter os braços erguidos, cobriu com as mãos os olhos para se proteger da intensa luminosidade e a estrela passou logo acima da sua cabeça. Assim transcorreu a noite inteira e por mais que Mbongo tentasse, não conseguia o que desejava. Desceu a montanha triste e cabisbaixo. No caminho de volta reencontrou, o guardião da montanha. Não foi preciso dizer que não havia conseguido nada. O ancião olhou para ele, balançou a cabeça e disse: “Pena! Creio que você precisa de ajuda, sozinho não vai conseguir!”.
Mbongo desceu até a aldeia e as crianças vieram ao seu encontro perguntando “Chefe Mbongo, chefe Mbongo, você conseguiu pegar uma estrela?’’. Mbongo sacudiu a cabeça e disse: “Daqui a alguns dias voltarei ao pico da montanha para agarrar uma estrela cadente, mas preciso de ajuda, quem quer vir comigo?”. Mais uma vez houve algumas pessoas que simplesmente riram dele, outras sacudiram a cabeça em negação. Mbongo não desanimou, insistiu muito e depois de conversar com vários, conseguiu que um dos seus melhores amigos, Tobo, aceitasse fazer a caminhada com ele até o alto da montanha.
Passado alguns dias, Mbongo retornou à montanha, desta vez acompanhado de seu amigo Tobo. Ao chegar ao cume, os dois amigos, com os braços erguidos, tentaram pegar alguma estrela, mas, como da primeira vez, não tiveram sucesso. Houve algumas estrelas que passaram próximas, mas sua luz era tão intensa que ofuscava a Mbongo e a Tobo de tal maneira que não conseguiram segurá-las. No caminho de volta, descendo a montanha, encontraram o ancião que vendo-os balançou a cabeça e disse: “Vocês precisam de mais ajuda; convençam a quantos puderem a subir com vocês. As estrelas têm muita luz, por isto precisam da cooperação de mais pessoas!”.
Mbongo e Tobo desceram e começaram a conversar com as famílias da aldeia. Havia aqueles que não acreditavam e achavam que nada daria certo. O problema da falta de chuvas aumentava, cada vez havia menos água, o riachinho diminuía seu caudal e, em breve, eles não mais conseguiriam plantar seus alimentos. Depois de muita conversa e esforço, Mbongo conseguiu que algumas pessoas subissem com ele. Era um grupo não muito numeroso, escalaram o cume e ficaram esperando que as estrelas passassem. Ergueram seus braços, cada um em uma direção e, meio dispersos, tentaram pegar as estrelas mas nada conseguiram.
Ao descer, o grupo cabisbaixo, encontrou mais uma vez o guardião da montanha que olhou para eles e perguntou como haviam feito. Eles lhe contaram. Então disse: “Sim, foi bom que vocês vieram em maior número, mas precisam trabalhar juntos. Deixem chefe Mbongo erguer os braços, os demais devem colocar suas mãos sobre os ombros dele. Formem vários círculos a sua volta. Todos devem apoiar suas mãos uns sobre os ombros dos outros de modo que Mbongo sinta toda a força do grupo direcionada para ele. Assim ele poderá segurar a estrela, poderá aguentar seu imenso brilho!” Estavam reiniciando a descida, quando o ancião ainda lhes disse: “Na verdade, creio que o grupo de vocês ainda não é forte o suficiente, tentem convencer todos, toda a aldeia! Pois as sementes da esperança servirão para todos e não apenas para um grupo, convençam a todos que devem subir a montanha, homens, mulheres, velhos, jovens, crianças, todos!”.
Mbongo e o grupo desceram animados pelas palavras do guardião da montanha. Conversaram com as pessoas, explicaram que era necessária a ajuda de todos. Era importante mostrar às pessoas que seria possível agarrar uma estrela, se eles acreditassem nisto. Havia muitos que relutavam, entre os mais velhos, alguns ficavam em dúvida “Será que conseguiremos subir essa montanha tão alta?”. As crianças, porém, eram as mais animadas: “Nós queremos subir, vamos todos com chefe Mbongo!”. Lamentavelmente o grupo que havia subido a montanha não conseguiu convencer a todos. Passaram-se várias semanas. Contudo a falta de água, por fim, colaborou para que as pessoas aceitassem aquela ideia. Havia bem pouca água para beber, escasseavam os alimentos, as famílias estavam consumindo suas últimas reservas. Em pouco tempo começariam a passar fome. Tudo isso junto, fez com que as pessoas ouvissem as palavras de estímulo de chefe Mbongo e, por fim, toda a aldeia decidiu subir a montanha. Foi uma longa caminhada, principalmente para os pezinhos pequenos e para os mais velhos. Chefe Mbongo ia a frente, toda a aldeia o seguia, dando o apoio necessário uns aos outros. Foi uma caminhada longa, árdua e difícil! Depois de grande esforço, chegaram ao cume. Fizeram como o guardião havia orientado: Chefe Mbongo no centro, os que estavam mais próximos apoiavam suas mãos sobre os seus ombros. Os outros iam formando círculos ao redor, cada vez círculos maiores. Todos apoiavam suas mãos uns sobre os ombros dos outros, todos concentrados na vontade única: “vamos unir nossas forças para que chefe Mbongo possa pegar a estrela!” Assim ficaram um longo período; as estrelas começavam a passar, primeiro distante, mas pouco a pouco iam chegando mais perto, até que uma linda e brilhante estrela – talvez a mais brilhante que chefe Mbongo havia visto – começou a se aproximar. Chefe Mbongo ergueu bem as mãos e todos, unindo forças, desejavam que desta vez desse certo. Para a alegria geral, a estrela se aproximou cada vez mais. Quando estava bem próxima, chefe Mbongo teve a sensação que já podia tocar a luz, que desta vez não lhe ofuscou a vista! Então ele gritou: “Bela estrela, dê-nos suas sementes da esperança!”. Nesse instante, da linda estrela brilhante, começaram a cair milhares de sementinhas brilhantes. Chefe Mbongo disse a todos: “Ergam as mãos! Recolham as sementes, recolham o quanto vocês puderem!”. Todos ergueram as mãos para recolher as sementes da esperança que caiam como chuva sobre eles. Depois que havia caído uma quantidade enorme de sementes da esperança, a estrela prosseguiu no céu seu caminho. Todos estavam muito contentes!
As pessoas tinham as mãos repletas de sementes da esperança. Também os cabelos, as barbas – de quem as tinham – as pregas das roupas, tudo estava coberto de sementes da esperança. E assim começaram sua caminhada de volta à aldeia. Ao chegarem naquela plataforma de pedra, encontraram o guardião que, desta vez, sorriu e lhes disse: “Saibam usar bem as sementes da esperança! Prestem atenção, pois quando chegarem lá em baixo terão uma surpresa! Não desanimem! Saibam que o que vocês fizeram só foi possível porque a força de todos se uniu em torno de um objetivo comum.” As pessoas estavam felizes carregando suas sementes. Quando chegaram ao vale, porém, já era dia claro e as sementes brilhantes que haviam recolhido em suas mãos, nas pregas de suas roupas, nos seus cabelos e na barba haviam desaparecido! Começaram a murmurar tristes e desanimados: “Foi inútil todo nosso esforço? O que aconteceu com as sementes? Para onde foram?”
Chefe Mbongo refletiu um instante sobre as palavras do guardião da montanha e falou ao povo: “Meus irmãos, as sementes não desapareceram, elas estão dentro de nós. Dentro de nossas cabeças, em nossos pensamentos! Em nossas mãos e em nossas pernas, na nossa força de trabalho! Em nosso coração e em nossa alma, aí se encontram as sementes da esperança!”.
-Mas o que isto significa? O que muda em nossas vidas? – perguntaram alguns.
Mbongo olhou em volta e disse:
– Vocês não percebem? Olhem as crianças, como estão felizes! Estão cheias de esperança dentro de si! Olhem como brincam alegres! Olhemos uns nos olhos dos outros! Vejam como nosso olhar está diferente! Tudo isso significa que as sementes da esperança estão dentro de nós, mas para que elas cresçam e produzam seus frutos não podemos desanimar!
– Mas o que podemos fazer então? Não choveu ainda, não aconteceu nada!
– Primeiro vamos fazer nossas tarefas: plantar nossas hortas, plantar os grãos que ainda temos de reserva na esperança de que virá chuva, na esperança de que nosso trabalho não será em vão! Vamos fazer nossas tarefas de todos os dias. Às noites, vamos celebrar com alegria nossas festas, vamos cantar, rezar, confraternizar e tudo vai dar certo!
Mbongo estava pleno das sementes da esperança e tinha certeza de que tudo aconteceria daquele modo. Alguns ainda tiveram dúvidas, mas decidiram fazer como Mbongo havia dito. Nos dias que se seguiram as famílias foram para as suas hortas, plantaram e cuidaram das suas tarefas. Quando chegava à noite faziam festas, cantavam e se alegravam. Assim passaram alguns dias. Não tardou muito e a desejada chuva chegou. Encheu de novo o riachinho, os animais voltaram às florestas, as plantas começaram a germinar nas hortas e nos campos os grãos brotavam. A vida pôde continuar naquele vale!
Chefe Mbongo nunca mais subiu a montanha, não foi necessário. Ele havia recolhido tantas sementes da esperança em si que lhe bastaram. Ele abrigou em si esperança e força para o futuro durante todos os dias da sua vida. Chefe Mbongo, entretanto, sempre que havia oportunidade, reunia os mais jovens para contar-lhes aquela experiência: Na vida às vezes é necessário reunir o esforço de todos para alcançar o bem comum. Deste modo, cada um pode receber, em si, as sementes da esperança! Esta lição vale a pena levar para o futuro!

Renato Gomes

Conto: Sementes da Esperança (Parte 1)

Havia uma vez uma aldeia na África situada em um lindo vale ao pé de uma alta montanha, cujo pico sempre estava coberto de neve. A aldeia era liderada por um homem chamado Mbongo. Mbongo havia sido escolhido, muito jovem ainda, como o líder daquela aldeia por sua força. Não apenas sua força física, mas por sua força do coração. Ele era um homem generoso, preocupado com as necessidades de todas as famílias e sempre pensava no bem-estar das pessoas que viviam na aldeia. A vida era simples, as famílias plantavam suas verduras e seus grãos em hortas e campos comunitários e obtinham sempre o suficiente para se alimentar. A vida transcorreu deste modo durante muitos anos. Aconteceu, porém, que de repente as chuvas cessaram, a terra começou a ficar seca, as plantações definharam e as pessoas já não conseguiam retirar da terra o alimento necessário. Inclusive as florestas e as matas em volta da aldeia começaram a diminuir de tamanho, os animais foram embora e a água foi escasseando. O povo da aldeia permanecia naquele lugar porque da alta montanha descia um riachinho, provindo da neve que se derretia no alto. A neve derretida, transformada em água, corria pelo riacho próximo à aldeia. Com a seca prolongada, a água também diminuiu de quantidade. Todos na aldeia se perguntavam: “Quanto tempo mais conseguiremos sobreviver neste lugar? Se a terra está ressecando, se não conseguirmos mais produzir alimento suficiente e se a água começar a faltar, será impossível viver aqui!”.
Quem mais se preocupava com tudo isso era Mbongo. Por ser o líder da aldeia, a ele cabia tomar a difícil decisão: Abandonar tudo, montar a aldeia em outro lugar ou permanecer ali. Essa preocupação era muito grande para Mbongo. Ele conversava com as famílias e percebia o sofrimento de todos. Era o desejo de todos poder permanecer ali porque amavam aquela terra, o vale era bonito, tinham a linda vista da grande montanha, que era algo maravilhoso, portanto não queriam partir, esperavam que as chuvas voltassem logo. Os dias e as semanas iam passando e a chuva não retornava.
Às noites, Mbongo se sentava à entrada da sua cabana e olhava longamente para o alto da montanha. Às vezes via uma estrela cadente passar bem próxima ao pico. Dava a impressão que talvez caísse lá por cima. Foi assim que ele se lembrou de algumas histórias que ouviu quando criança. Diziam os antigos que naquela montanha caiam muitas estrelas cadentes. Quando se deseja muito que uma coisa se realize, deve-se pedi-la a uma estrela cadente. Naquele instante, Mbongo pensou: “Vou subir a montanha, talvez consiga fazer um pedido a uma estrela cadente.” No dia seguinte, conversou com todos na aldeia, alguns riram um pouco, outros não acreditaram, só as crianças disseram para Mbongo: “Isso mesmo, chefe Mbongo, vá até lá e pede para as estrelas cadentes coisas boas para nós, pede chuva, pede outras coisas também!” Mbongo decidiu então que subiria a montanha.
Começou a escalada, de início o caminho era suave, mas à medida que subia, a montanha se tornava cada vez mais íngreme, mais inclinada e os caminhos mais difíceis. Mbongo decidiu fazer a escalada seguindo o curso do riacho que levava água à sua aldeia. Havia partido cedo e andara o dia inteiro, caminhara bastante e estava entardecendo. Mbongo sabia que não chegaria ao pico da montanha naquele dia, teria que passar a noite ali. Já estava ficando escuro quando ele encontrou um lugar para pernoitar, era uma plataforma de rocha bem escura. O riachinho passava ao lado. Mbongo juntou uns poucos gravetos, acendeu uma fogueira para se aquecer durante a noite e se proteger do vento frio do alto da montanha. Sentou-se ao lado do fogo e ficou olhando o céu. Viu várias estrelas cadentes caírem no pico da montanha. Ficou alegre e pensou: “Tomara que eu encontre alguma delas lá em cima, vou pedir para que a chuva volte e que não precisemos abandonar nossa terra.”
Enquanto olhava as estrelas caírem, não percebeu que havia alguém ao seu lado; levou um grande susto quando viu uma figura de pé ao seu lado. Era um homem muito velho, tão velho que não era possível imaginar sua idade. Estava vestido com uma túnica clara, resplandecente, que brilhava na escuridão da noite como se tivesse luz própria. A pele daquele homem era escura, escura como a rocha da montanha; seus cabelos e sua barba eram brancos como suas vestes, brancos como a neve que cobria o alto da montanha. Mbongo quando o viu ficou um pouco assustado e perguntou: -“Quem é você? De onde você vem?”
-“Este lugar é minha casa, disse o ancião, eu sou o guardião da montanha. O que você está fazendo aqui em cima? Raramente alguém sobe até aqui! ”
Mbongo contou que era o líder daquela aldeia no vale e que havia subido porque estavam ficando sem água pela falta das chuvas. Ele queria fazer um desejo às estrelas cadentes que caíam no alto da montanha. O velho o ouviu com atenção e disse: – “Para fazer um desejo, você precisa agarrar uma estrela cadente e pedir para ela as sementes da esperança.”
– “Sementes da esperança?” – exclamou Mbongo – “eu nunca ouvi falar sobre isso!”
– “Cada estrela cadente traz à Terra milhares de sementes da esperança, primeiro você precisa agarrá-la, somente então elas entregam as sementes.”
– “Como eu faço isso?”
– “Isto é possível somente no alto da montanha.” – disse o ancião e acrescentou: “Não sei, porém, se você será capaz de fazê-lo. Eu me lembro que os antigos chefes de aldeias, em tempos passados, conseguiam. Sozinhos, seguravam uma estrela cadente e obtinham dela as sementes da esperança, mas já faz muito tempo que os homens deixaram de acreditar nisto e pararam de subir a montanha.” – comentou o ancião com certa tristeza.
– “Eu não tenho medo, meu povo diz que sou forte, eu vou conseguir.”
– “Muito bem, Mbongo” – misteriosamente o ancião sabia como ele se chamava! – “Suba até o pico e fique esperando que passe uma estrela cadente, levante bem os braços quando ela estiver passando e tente segurá-la. Talvez você consiga as sementes da esperança.”
Mbongo ficou muito contente com aquela notícia. Pretendia, no dia seguinte, subir ao pico e aguardar lá de cima a passagem de uma estrela, para tentar segurá-la e pedir-lhe as sementes da esperança. Ele estava seguro que com tais sementes, seu povo teria o que precisava: a esperança de não ter que deixar aquela terra.

Renato Gomes

Conto: Ateliê de Dona Satiko

Fernanda era uma menina órfã. Sua mãe havia falecido quando ela nasceu. Ela vivia com seu pai no sítio dos seus avós paternos. Seus avós a haviam criado, pois seu pai trabalhava muito e estava pouco em casa. Fernanda convivia a maior parte do tempo com os avós, de quem gostava muito. Um dia seu pai chegou à casa com a notícia que havia conseguido um trabalho noutra cidade, distante dali, e que queria mudar pra lá com Fernanda. Ele pensou que a menina ficaria contente com esta ideia, mas Fernanda se entristeceu muito: teria que se separar da vovó e do vovô; tal pensamento a deixava muito preocupada. Os avós conversaram com a menina e disseram que assim seria melhor, pois na cidade onde o seu pai a levaria, havia uma escola, ela poderia fazer amizade com outras crianças, com certeza gostaria muito de lá. Mesmo assim Fernanda estava triste. Sua avó decidiu então lhe fazer um presente.
– Fernanda, disse a avó, está chegando o inverno. Vou costurar pra você um casaquinho de lã de um tom de azul bem intenso e bonito – porque Fernanda gostava muito da cor azul – e sempre que você usar o casaquinho vai se lembrar de mim, não é uma boa ideia? 
A ideia serviu de consolo e Fernanda ficou mais alegre. O casaquinho ficou muito bonito. A avó costurou nele alguns botões cor de prata, havia gola, mangas compridas, e inclusive um cinto para ajustar bem na cintura. O casaco era comprido para protegê-la do frio. Quando Fernanda o vestia, não sentia frio e percebia que isto também a ajudava a se lembrar da sua querida avó, do avô e dos alegres anos da infância passados no sítio… Pouco tempo depois ocorreu a mudança. 
Fernanda e o pai foram então viver numa cidade. A menina, que havia crescido no campo, estranhou a vida na cidade. As casas eram construídas bem juntinhas umas das outras, muitas vezes não tinham terreno onde uma criança pudesse correr e brincar. Justamente numa destas ruas Fernanda foi morar. Era uma rua pequena, sem saída, todas as casas estavam construídas lada a lado. O espaço enorme do sítio do vovô e da vovó fazia falta à Fernanda. 
O pai matriculou a filha numa escola do bairro, e logo ela começou a assistir às aulas. Naquela cidade fazia muito frio no inverno, portanto o presente da vovó era muito útil. Fernanda acordava cedo, vestia o uniforme do colégio e colocava o casaco azul por cima, isso a deixava um pouco mais alegre. Fernanda era uma criança tímida, no início não fez amizades na escola. As lembranças e as saudades da sua infância no sítio eram mais fortes que as vivências de sua vida nova. Deu-se o caso que a maioria de seus colegas de classe moravam longe de sua casa e na rua onde a menina morava não havia crianças, apenas adultos. Fernanda passava uma boa parte do tempo sozinha em casa, já que o seu pai trabalhava o dia todo. Assim transcorreu o primeiro inverno na casa nova. Quando chegaram os dias mais quentes a menina guardou o casaquinho azul da avó, colocou-o numa prateleira bem no alto e no fundo do armário.
– Não vou precisar dele agora – pensou – somente no inverno que vem.
O verão trouxe mais alegria para a menina, ela fez amizades com alguns colegas de classe e passou a ser convidada a visitar amigos em suas casas. Agora a vida transcorria um pouco diferente. É claro que Fernanda lembrava ainda dos avós e do sítio! Seus novos amigos, porém, ajudavam a menina a se sentir mais feliz na sua nova vida. Assim passou o primeiro ano naquela cidade.
Quando chegou de novo o inverno, Fernanda lembrou do casaco azul e pensou: – Que bom que tenho o casaquinho azul. Vou poder usá-lo esse ano de novo, não sentirei frio. Ele me lembra o abraço gostoso da vovó. 
Tirou o casaco do alto da prateleira e, para sua surpresa, como havia ficado muito tempo guardado no armário, quando ela abriu o casaco viu que estava cheio de buraquinhos: as traças haviam devorado a lã em vários lugares. Havia muitos buracos, uns bem pequeninos outros um pouco maiores espalhados por todo a roupa. A menina se entristeceu:
– Eu não vou poder ir com ele para a escola, tão esburacado ele está! Era um presente da minha vovó querida. 
Naquele dia Fernanda se sentiu tão triste que não foi à escola. O pai lhe perguntou: – Minha filha, que está acontecendo? 
Ela, chorando, mostrou o casaquinho azul, repleto de furinhos, dizendo: – Papai, e agora? Oque eu vou fazer? Tenho que jogar o casaco fora? Era um presente da vovó, para eu usar e me lembrar dela? – e chorava mais ainda.
O pai, naquele momento, não sabia o que fazer. Procurou a ajuda de alguns vizinhos. As senhoras que moravam na rua disseram: – Não se preocupem, vocês estão aqui há pouco tempo, por isto ainda não sabem. No final da rua, na última casinha, mora uma costureira, a Dona Satiko. É uma costureira muito boa! Por que não levam o casaco para ela? Talvez possa consertar e se não for possível, quem sabe ela consegue fazer um novo casaco para a menina. 
Fernanda não queria um novo casaco, queria o casaco azul que a vovó lhe havia feito de presente. O pai foi com a menina até a última casinha da rua para encontrar a costureira chamada dona Satiko. Logo ao entrar no ateliê de Dona Satiko, Fernanda ficou impressionada. Havia muitas prateleiras, repletas de caixinhas e potes, havia cestas com panos de todas as cores, haviam muitos carretéis de linhas coloridas. Parecia a oficina de alguém com poderes mágicos, capaz de usar todas aquelas linhas e tecidos, para confeccionar roupas lindas e especiais. Sentada num canto, estava dona Satiko, uma senhora idosa, de origem japonesa, costurando com toda tranquilidade. Ao vê-los a anciã perguntou o que eles precisavam. O pai de Fernanda mostrou o casaco e disse que havia ficado guardado muito tempo, por isto as traças haviam feito muitos buracos. Eles queriam saber se poderia ser consertado ou se teriam que desprezar e mandar fazer um novo.
– De jeito nenhum! – disse dona Satiko – comigo não existe isso de jogar fora, para tudo há solução, sempre se consegue recuperar uma peça de roupa. 
Ao ouvir essas palavras, Fernanda ficou contente. Dona Satiko olhou para a menina e disse: – O casaquinho é seu, não é? E pelo visto você gosta muito dele! 
A menina sorriu, se sentiu compreendida e disse para a costureira: 
– Sim, eu gosto muito dele. Foi minha avó que me deu de presente! É pena que ele agora esteja cheio de buraquinhos. A senhora acha que consegue consertar? 
– Eu consigo consertar – disse a dona Satiko – e espero que você fique contente com o que eu fizer.
– O que a senhora pretende fazer?
– Posso fazer muitas coisas– disse dona Satiko – posso colocar alguns remendos aqui e ali, depois faço um bordado por cima; ou tento cerzir fechando cada buraquinho e, para que não fique a marca, faço um bordado pequenino no lugar, como uma pequena flor, ou uma pequena estrela. O que você prefere? 
– Eu acho que com remendos não vou gostar muito! – disse Fernanda – se a senhora fizer estrelinhas nos buraquinhos, acho que vai ficar bem mais bonito! 
– Pode deixar! – disse dona Satiko – voltem daqui a alguns dias. 
Deixaram o casaco no ateliê da costureira e Fernanda voltou para casa com seu pai. Passados alguns dias retornaram ao ateliê da costureira. Dona Satiko apresentou o casaco consertado para a menina. No azul-escuro do casaco ela havia feito vários bordados em formas de estrelas. O casaco parecia um céu estrelado. Ela não só havia preenchido os buraquinhos com as estrelas, mas havia colocado estrelas em todos os lugares: na gola, na manga, no cinto e quando a menina o vestiu ficou impressionada. Olhou no espelho e ficou admirada:
– Dona Satiko, a senhora é uma fada da costura! Fez o meu casaco parecer novo!
– Assim deve ser, minha querida, todas as coisas ficam velhas e se estragam, mas a gente sempre consegue, com carinho e dedicação, transformá-las e dar-lhes um toque de juventude!
A partir daquele dia criou-se uma amizade entre Fernanda e dona Satiko, que se tornou uma “nova” avó para a menina. Fernanda, sempre que voltava da escola e terminava suas lições, se dirigia ao ateliê e pedia para ajudar, observar e aprender alguma coisa com a costureira. Um dia Fernanda, enquanto ambas trabalhavam, ouviu uma linda história japonesa: A história da dona Satiko.
Ela contou que veio do Japão para o nosso país num barco com sua família, quando era muito pequena. Naquela época eles tinham poucas condições financeiras. Eles trouxeram apenas um baú com as roupas de toda a família, dos avós, dos pais e dos seis filhos, dona Satiko e seus cinco irmãos. As roupas de toda a família cabiam num único baú, que não era muito grande.
Eles foram morar no campo. Os irmãos, com seu avô e com seu pai, trabalhavam na horta e no pomar. As mulheres da casa cuidavam da comida, das tarefas da casa e também das roupas. Com o tempo as roupas que trouxeram começaram a se desgastar e a estragar. Eles eram tão pobres, que não tinham condições de comprar roupa nova. Deste modo sua avó e sua mãe ensinaram à Satiko, que ainda era menina, a arte de concertar as roupas. Com capricho e com carinho, lhe ensinaram uma técnica muito antiga usada no Japão que se chama Bôro: Se um tecido está muito velho e desgastado, retira-se dele os melhores pedaços para serem usados como remendo para roupas. Deste modo, quando surgem buracos, furos de traça ou rasgos nos tecidos, pode-se aproveitar aqueles remendos costurando-os sobre a roupa com bonitos pontos de bordado, formando desenhos em linhas retas ou curvas, em forma de flores, estrelas, do jeito que se quer. Assim Fernanda aprendeu a antiga técnica do Bôro, a arte de transformar aquilo que é velho, aquilo que parece que já não possui mais utilidade em algo novo. Era um prazer para Fernanda passar várias horas do dia ajudando dona Satiko a remendar as roupas das pessoas que iam ao ateliê da costureira. Pouco a pouco a menina foi aprendendo a magia de consertar e de aproveitar, por meio desta antiga arte, materiais que às vezes parecem não servir para nada, mas que na verdade, com carinho e empenho, fazem surgir coisas lindas e maravilhosas. Os clientes de dona Satiko sempre saiam do ateliê muito felizes com as roupas concertadas e tão lindamente remendadas.
Fernanda usou o casaquinho azul de fundo estrelado durante todo o tempo em que lhe coube. Quando já não cabia mais, ainda assim decidiu guardá-lo. Desta vez não o colocou na prateleira no fundo do armário, mas guardou dentro de uma caixinha com flores de lavanda para que o cheiro não permitisse a entrada das traças. O casaco azul da vovó, de quem ela lembrava com muito carinho, foi conservado por muitos e muitos anos. Também lembrava com especial carinho as aulas de costura e bordado sobre a técnica do Bôro que havia aprendido com a fada da costura chamada Dona Satiko.
Renato Gomes

Conto: A criação do Tamanduá

Cauã gostava muito de passar suas férias na casa de sua avó Jandira. Cauã morava numa cidade grande, sua avó morava numa cidade pequena do interior; uma daquelas cidadezinhas aonde as pessoas ainda conseguem ter uma horta no fundo do seu quintal, plantar suas verduras e seus legumes. O fundo do quintal da vovó Jandira dava para um pequeno bosque. Dona Jandira havia crescido numa aldeia indígena, no interior do país. Lá ela ouviu muitas histórias dos seus avós e dos anciãos da aldeia. Um dia veio morar naquela cidadezinha, mas guardou durante toda a vida na lembrança as tradições do seu povo, ela gostava de transmitir para seu neto as coisas que sabia, principalmente quando ele lhe pedia para contar histórias. Certo dia, Cauã ajudava sua avó a cuidar da horta e, numa dessas oportunidades, percebeu que muitas plantinhas que a vovó Jandira havia semeado nos seus canteiros estavam sendo devoradas e carregadas pelas formigas. Ele viu carreiras de formigas carregando para o formigueiro as folhinhas que haviam recém-cortado das plantas que brotaram.
– Vovó, o que está acontecendo? – perguntou o menino – “por que as formigas estão comendo tudo?”
– Bom meu Gaviãozinho (pois Cauã na linguagem indígena que dizer gavião) essa é a tarefa das formigas, elas devem cortar e levar pra dentro da terra em seu formigueiro o que encontram no solo da floresta, mas às vezes elas exageram e acabam cortando outras plantinhas.
– Vovó, então porque a senhora não compra veneno para matar as formigas? Eu ouvi falar que as pessoas colocam grãozinhos de veneno, as formigas carregam tudo para dentro do formigueiro e morrem. Assim acaba o problema!
– Meu gaviãozinho – disse a vovó Jandira – tem muita gente que faz isso, mas, na verdade, colocar veneno não resolve o problema, as formigas aparecem depois em outros lugares com mais força ainda e o problema retorna.
– E como é que a gente consegue então acabar com as formigas?
– Essa é uma questão difícil… Na aldeia onde eu cresci a gente tinha uma solução para isso: o tamanduá. Quando as formigas ficavam muito populosas e começavam a devorar tudo, apareciam os tamanduás, com as suas línguas compridas e pegajosas, e comiam um montão de formigas do formigueiro! Eles também comem cupins. Por isso na nossa antiga aldeia e na floresta tudo estava sempre em equilíbrio. O que está demais de um lado é equilibrado por outro ser da natureza, assim a boa ordem se mantém.
– Vovó Jandira, me conta a história do tamanduá, como é que ele surgiu? – perguntou o menino.
Cauã era um menino bem pequeno, que ainda não tinha ouvido falar nem visto um tamanduá. Na cidade, as pessoas não falam sobre tamanduás… Eles vivem nos bosques e florestas naturais, normalmente afastados das casas das pessoas.
– Ah meu netinho, vamos terminar primeiro nosso trabalho na horta e depois, à noite, eu vou contar a história do tamanduá para você.
Naquela noite, antes de Cauã ir dormir, a vovó Jandira sentou ao lado da cama do neto e contou a seguinte história:
“Há muito tempo, no início da criação do mundo, o Grande Criador – que na nossa aldeia era chamado de Tupã – estava criando os animais. Já havia criado a floresta, já havia criado os rios, já havia criado as montanhas, já haviam muitos animais: a onça-pintada, a arara-azul, a preguiça, os macacos e muitos outros. A criação não estava completa, mas a vida na floresta já era maravilhosa.
Certa manhã os animais chegaram para Tupã e disseram:
– Tupã, criador, tudo o que você fez é lindo e maravilhoso, mas estamos com um problema…
– Qual o problema? – perguntou Tupã, que podia entender a linguagem de todos os animais, pois afinal, havia sido seu criador – o que está acontecendo?
Então os macacos, tomando a palavra, disseram:
– Tupã, acontece que as folhas das árvores caem, algumas plantas apodrecem, caem os galhos, e mesmo árvores, depois que ficam velhas também morrem. Tudo isso fica no chão da floresta e vai apodrecendo, já está com cheiro ruim, não há ninguém que limpe a floresta! A floresta é tão grande, tão extensa, a gente não dá conta! Quem vai comer aquelas folhas podres? Está virando um fedor…
– Além disso, os troncos que caem são grandes e pesados, atravancam tudo! – disse a onça – Às vezes eu quero caçar, andar daqui pra lá e esbarro com muitos galhos e troncos grandes que me atrapalham o caminho….
Um depois do outro, os animais foram trazendo suas queixas, explicando que a linda floresta já não estava mais tão limpa. No início era uma floresta maravilhosa, mas com o tempo, com a renovação das plantas – que é natural – a floresta foi ficando muito suja. Tupã ouviu com muita atenção todas aquelas reclamações, depois de um tempo em silêncio, disse:
– Tenho uma ideia: vou criar um animal, que será o grande limpador das florestas. Ele vai ter dentes mais fortes que os seus, onça, para poder quebrar e triturar os galhos e roer a madeira. Olhando para o tatu, falou: ele vai ser tão habilidoso quanto você, tatu, para cavar tocas profundas e levar todas estas coisas que estão apodrecendo no chão da floresta para dentro da terra, as folhas, os galhos, e mesmo os restos dos animais que morreram, ele irá enterrá-los. Além disso – e Tupã olhou para os macacos – esse novo animal vai será capaz como vocês, macacos, de subir nas árvores, até os galhos mais finos sem problema algum: assim cortarão os galhos secos no topo das árvores, os jogarão para baixo e recolherão tudo. Olhou para as araras Canindé e disse ainda: como vocês, araras, eles terão asas grandes e fortes. A floresta é enorme, portanto alguns deles precisarão voar de um lugar ao outro para limparem os lugares mais distantes da floresta. Assim foi descrevendo várias características de como seria aquele animal. A preguiça, que é um animal lento, mas inteligente, depois de ouvir tudo com muita paciência perguntou: – Tupã, você já pensou de que tamanho vai ser esse novo animal?
E o criador disse: – Não pensei ainda…
Naquele instante, passou por ali uma anta e Tupã com alegria exclamou:
– Será do tamanho da anta, pois precisa ser forte e poderoso!
Os animais ficaram um pouco assustados e disseram: – Como assim? Um animal mais forte que a onça, capaz de cavar tocas profundas e subir nas altas árvores, capaz de voar, capaz de devorar tudo que encontre pela frente e ainda ser tão grande como uma anta… vai ser muito perigoso! Imagine, Tupã, se esse animal ficar contra nós? Ninguém vai poder contê-lo, tão forte e poderoso ele será. Vamos ficar com muito medo, disseram todos. Tupã refletiu e entendeu que os animais tinham razão. Ele estava colocando muitas qualidades e atributos naquele animal que pretendia criar. Talvez um dia ele poderia se tornar um ser temido por todos os outros na floresta. Contudo era necessário que existisse tal animal que tivesse a função de limpar a floresta. Tupã meditou e disse:
– Está bem, eu vou fazer esse animal pequenininho. Além disso não vou fazer apenas um, mas farei dois tipos de animais diferentes: um deles será responsável por cortar, triturar e comer a madeira morta dos troncos e galhos e o outro tipo ficará responsável de levar as folhas secas, as carcaças de animais mortos e os restos apodrecidos no chão da floresta para o fundo da terra. Vou criar duas espécies de limpadores, além disso, como serão tão pequenos, precisam ser muito numerosos. Eles vão existir em quantidades enormes, mas como serão pequenos, não representarão ameaça a nenhum de vocês.
E assim, em lugar de criar um ser, Tupã criou dois: as formigas e os termitas (que são os cupins). Os termitas davam conta de comer e devorar toda a madeira apodrecida que havia. Ruíam tudo, pois seus dentinhos e ferrões são fortes e conseguem perfurar e comer a própria madeira. As formigas, que andam por toda a floresta, subindo nos galhos das árvores, cortando as folhas e os ramos que já estão sem vida, recolhem tudo que está no chão da floresta, cortam em pedacinhos pequenos e levam para dentro do seu formigueiro no fundo da terra. A partir deste dia as coisas andaram muito bem. Em pouco tempo a floresta estava limpa de novo, porque os milhares e milhares de termitas e de formigas que foram espalhados pela floresta limpavam tudo, deixando tudo em ordem. A paz e a beleza foram reestabelecidas. Depois de um tempo chegaram de novo os animais e disseram:
– Tupã, está tudo certo, tudo perfeito, mas agora surgiu um novo problema. Você fez com que as formigas e os cupins se reproduzissem tanto, e tão rápido, que com as suas asinhas, na época da reprodução, eles voam para todos os lados. A floresta está repleta de formigueiros e cupinzeiros. Isso não seria um problema, mas há formigas em excesso, elas estão subindo nas árvores, nos arbustos, e cortam também as folhas verdes. Elas não podem fazer isso, do contrário, em pouco tempo não teremos mais árvores, não vai sobrar nada! Você tem que fazer alguma coisa.
Tupã mais uma vez meditou no que os animais haviam dito, pensou bastante e disse: – Vocês têm razão. Eu decidi que vou deixar as formigas e os termitas andando pela floresta pois a função deles é muito importante para manter a floresta limpa e bonita. Preciso pensar melhor o que devo fazer. E Tupã se recolheu. No dia seguinte Tupã voltou e apresentou a todos os animais a sua nova criação:
– Olhem o novo animal que acabei de criar!
– Que animal estranho – disse o jacaré, abrindo sua boca enorme – tem uma boca tão pequenininha, tão apertada! Como ele é grande, maior que a onça-pintada! Mas como é que ele vai resolver o problema das formigas e dos cupins?
– Justamente – disse Tupã – eu o fiz grande porque queria que tivesse muita fome, e fiz sua boca pequena porque ele só vai comer formigas e cupins; ele andará pela floresta buscando formigueiros e cupinzeiros. Quando os encontrar, enfiará neles sua língua comprida e pegajosa, para comer os cupins e formigas que forem muito numerosos por ali. Assim tudo volta ao equilíbrio.
As formigas e os termitas, continuaram a existir e a realizar a sua função na floresta e o tamanduá, que é um bicho grande e guloso, vai por todos os lugares comendo o excesso de formigas e cupins. Assim a paz e a beleza reinaram de novo na floresta.”
Ao terminar a história, vovó Jandira olhou para Cauã e disse: – Está vendo meu gaviãozinho? É por isso que na floresta, na natureza, tudo é sábio. Tudo tem a medida certa, nada é demais ou fora de seu lugar. Às vezes as pessoas aqui nas cidades pensam diferente, fazem as coisas diferente. É por isto que às vezes aparece o desequilíbrio meu netinho. Eu não vou colocar o veneno para as minhas formigas. Quem sabe aparece um tamanduá do mato e resolve o problema?
Dito e feito. Não passaram muitos dias até que numa manhã, chegando bem cedinho à horta, Cauã e vovó Jandira viram um grande tamanduá enfiando sua língua no formigueiro que havia ali perto! O tamanduá comeu à vontade. Os dois, Cauã e vovó Jandira, ficaram observando à distância para não assustá-lo.
Deste modo, também no jardim e na horta da vovó Jandira, o equilíbrio se estabeleceu.

Renato Gomes

Conto: A Roseira Perfumada

Era uma vez um rei chamado Estevão e sua esposa, a rainha, se chamava Maria. Eles tinham uma filha, a princesa Sofia. Os três viviam felizes no seu palácio. A rainha Maria tinha um cuidado muito especial com os jardins do palácio. Ela havia plantado ali flores de todos os lugares do reino, e como as pessoas sabiam que a rainha gostava tanto de flores, sempre lhe traziam alguma semente de uma planta ainda desconhecida ou de uma flor de cor ou aspecto especial. A rainha tinha uma especial habilidade para cuidar dessas sementes ou dessas mudas. Sob seu cuidado e atenção, tudo que plantava florescia.
Em um lugar especial do jardim, ela havia plantado uma roseira que dava rosas vermelhas muito perfumadas. Todas as manhãs a rainha descia até o jardim, olhava se havia botões floridos naquela roseira e cortava um deles. Levava-o até seu quarto no palácio e antes mesmo que o rei Estevão acordasse, ela já havia deixado na mesinha ao lado da cama, em um pequeno vaso, aquele botão de rosa vermelha perfumado. Desse modo, todas as manhãs o rei despertava com o perfume da rosa que a rainha Maria havia colhido para ele.
A vida deles era muito feliz. O rei era muito dedicado a todas as obrigações e cuidados com o reino e com o bem-estar do seu povo. A rainha se dedicava com todo amor e carinho à educação da princesa Sofia e ao cuidado do jardim. A jovem princesa acompanhava sua mãe pelo jardim e apesar de ser muito jovem, ia aos poucos aprendendo o amor e a dedicação que eram necessários para cuidar das plantas.
Um dia, sem que ninguém soubesse nem como nem porquê, a rainha adoeceu. Teve uma febre que nenhum remédio do mundo conseguia fazer ceder. Os médicos do palácio foram chamados, mas nenhum deles encontrou o remédio que pudesse curar a rainha. A febre ia se elevando, a rainha não se alimentava, não tinha vontade pra nada, permanecia todo o tempo na cama. Em pouquíssimo tempo, a rainha veio a falecer. O rei ficou muito triste. Todos ficaram tristes no reino e a jovem princesa Sofia ficou mais triste ainda pela morte de sua mãe.
O rei ficou muito abalado com a morte da rainha. Cada vez que olhava da janela do palácio para o jardim, sentia uma dor profunda no coração, pois se lembrava da sua esposa. “Quem desceria todas as manhãs até lá e colher uma rosa para mim?”, pensava. Mesmo que algum servente fizesse isso, não significaria o mesmo. A antiga alegria de acordar com a rosa perfumada do lado da sua cama, sabendo que tinha sido a rainha Maria que a trouxera, isto ninguém poderia substituir. O simples fato de olhar pela janela da torre do palácio para o jardim florido, deixava o rei ainda mais decepcionado e triste. Para não sentir tamanha tristeza, o rei mandou seus jardineiros e seus serventes irem até o jardim e arrancarem todas as flores que havia, ordenou que retirassem tudo, não deixassem uma única plantinha, ele não queria mais ver flores.
Os jardineiros, muito tristes e conturbados, tiveram que obedecer: “como era possível destruir um jardim tão maravilhoso?”. Mas o rei dizia: “Cada uma dessas flores e dessas plantas me faz lembrar a minha esposa e eu me sinto triste, por isso; arranquem tudo!”. O próprio rei caminhava entre os canteiros onde os jardineiros com suas enxadas, suas tesouras e seus facões arrancavam e cortavam tudo. Ao chegar próximo ao local onde estava plantada a roseira vermelha perfumada o rei disse: “a roseira não arranquem, deixem-na aí, o restante pode retirar” e assim o fizeram. Naquele momento os serventes e os jardineiros pensaram: “Uma coisa é boa: pelo menos a roseira vai florescer! O rei permitiu que ela continuasse no jardim, assim nós vamos ter esta alegria ao nos lembramos da rainha”. Contudo o rei tinha pensado outra coisa: ele não tivera coragem de mandar arrancar aquela roseira especial, mas quando diariamente descia bem cedo até o jardim observava se havia algum botão nascendo. Se encontrava algum, ele o cortava e jogava na terra. Não deixava que botão algum crescesse e florescesse. Depois de um tempo, havia na roseira somente folhas e espinhos, ela nunca dava flor, porque quando começava a brotar um pequeno botão, o rei o cortava.
A vida no reino começou a mudar… Antigamente o rei era bondoso, alegre e sempre disposto a pensar na felicidade de seu povo, após a morte da rainha, o rei começou a ficar mal-humorado e triste. Nem mesmo a princesa conseguia alegrar o rei, ao contrário, ele pediu que deixassem a menina longe dele, porque a menina lhe trazia lembranças da falecida rainha.
O tempo foi passando. Aconteceu, certa vez, que o rei teve que sair do palácio para tratar algum assunto do reino. Durante a jornada, ele percebeu que nas aldeias havia pequenos jardins na frente ou ao lado das casas. Conturbado com aquela visão, o rei deu ordem aos seus soldados que pisoteassem todas as flores e arrancassem todas as plantas. Depois de um tempo, ele mandou divulgar uma lei no reino: “Fica proibido, de agora em diante, que qualquer pessoa cultive flores em seu jardim”. Ele dizia: “Não quero que ninguém tenha flores. Não existem flores em meu jardim e não vai haver flores nesse reino, as flores me lembram a rainha e eu não quero ficar ainda mais triste”. As pessoas ficaram muito chocadas com aquela notícia, mas era ordem do rei e todos tinham que obedecer. De tempos em tempos o rei mandava seus soldados visitarem as aldeias para ver se alguém estava burlando a lei e deixando crescer alguma plantinha que florescesse, e se isto acontecesse, os soldados tinham ordem para arrancar aquela planta para que ela não desse flor.
Pode-se imaginar que com o tempo o reino, que antes era feliz e alegre, começou a ficar triste. As flores trazem tanta alegria à vida e o simples fato de haver a proibição de plantá-las deixava as pessoas tristes.
A princesa Sofia cresceu e se tornou uma jovem. Algumas vezes ela havia tentado pedir ao rei: “Pai, por favor, deixa-nos plantar de novo flores em nosso jardim, eu vou cuidar delas como a mamãe cuidou, eu vou deixar tudo bonito e você vai se alegrar. Você não percebeu como as pessoas do nosso reino estão tristes. Ninguém pode plantar flores, isso é muito triste para todos”. “De forma nenhuma minha filha”, disse o rei, “eu gosto muito de você, mas esse desejo eu não posso atender”. A princesa, porém, insistia: “Mas papai, todos os anos acontece a festa da páscoa. Você se lembra como se festejava a festa da páscoa quando eu era bem pequenina? Havia tantas flores nessa época e as crianças faziam coroas com flores e festejavam aqui, na grande praça em frente ao palácio. Eu gostava de ver da janela do meu quarto. Agora quase ninguém aparece por aqui, as pessoas andam tristes, faltam as flores, faltam suas cores e o perfume que elas deixam no ar. Não é a mesma coisa festejar a páscoa sem as flores papai. Pode nos deixar, por favor, pelo menos uma vez ao ano plantar algumas florezinhas para fazer as coroas de flores das crianças e que elas possam vir aqui, na frente do palácio, cantar e festejar a páscoa como antes?”. O rei se mantinha firme: “Não”, dizia, “não quero nada que me recorde o passado, eu me lembro da sua mãe, a rainha Maria, e fico triste por causa disso”.
Ninguém conseguia convencer o rei.
Um dia, para a tristeza do rei, a princesa Sofia começou a ficar doente. Aquela febre desconhecida, que havia levado a vida de sua mãe, também acometeu a jovem princesa. Ela permanecia todo o tempo em sua cama, não queria se alimentar, não tinha apetite, não tinha forças nem vontade para nada. Os médicos do palácio, como das outras vezes, utilizaram todos os remédios, mas ainda assim não havia nada que curasse a princesa. Ela estava enfraquecendo dia após dia, falava muito pouco e não comia quase nada. Neste momento, o rei ficou realmente desesperado, ele já havia perdido sua esposa, e agora sua filha corria risco de vida também? Era insuportável pensar em tudo isso. Durante as noites, o rei, de tanta tristeza no coração, já não conseguia dormir direito.
Em uma dessas noites de insônia, o rei caminhando às escuras de um lado para o outro no palácio, ouviu algo que parecia o vento soprando. Prestou atenção naquele ruído. Era como se o vento carregasse uma voz: “As flores, as flores”… Ele foi andando pelos corredores em direção de onde vinha a voz e encontrou uma porta aberta que dava para o jardim, chegando lá gritou: “Quem está aí? Quem está gemendo?”. Ninguém estava lá, tudo estava silencioso, o jardim estava abandonado, nos canteiros havia somente terra seca porque ninguém cuidava deles. A roseira no centro tinha apenas folhas e espinhos, mais nada. Então o rei pensou: “Eu devo ter imaginado”.
Na noite seguinte, sem sono, o rei caminhava pelos corredores escuros do palácio quando ouviu outra vez aquela voz: “As flores, as flores”… “Quem está aí?”, gritou o rei. Correu de um lado para o outro. Desta vez não havia nenhuma porta aberta, o som havia surgido de dentro do palácio. “Será que veio de dentro da minha cabeça? Será que estou ouvindo vozes?”, pensou o rei. Assim ocorreu por várias noites, ele sempre ouvia a voz que clamava: “As flores, as flores”…
O rei que já não conseguia dormir direito, estava mais aborrecido do que nunca e seu humor havia piorado. De tempos em tempos ia visitar a sua filha para ver como ela estava. Uma vez, depois de várias noites maldormidas, ele sentou-se ao lado da cama e disse: “Sofia, minha querida, como você está? O que eu posso fazer para lhe agradar?”.
A princesa Sofia abriu os olhos e disse: “Papai, a páscoa está chegando. Eu queria ver as crianças com as coroas de flores”.
O rei não falou nada, algumas lágrimas rolaram dos seus olhos. Ele se levantou. Dentro do coração ele dizia para si mesmo: “Minha filha quer que eu permita às pessoas plantarem flores, faltam ainda alguns meses para a páscoa… mas eu não posso fazer isso, não quero mais flores nesse reino, está proibido, de modo algum permitirei”.
A partir deste dia o rei lutava internamente com a dúvida: “Será que isso pode ajudar a salvar minha filha? Mas, eu não quero sofrer mais, lembrando da rainha Maria.” Ele não sabia o que fazer. Por um lado, no fundo do coração, queria atender à princesa Sofia, mas de outro, ele sabia que se visse as flores e sentisse o seu perfume, ele iria ter muito mais saudades da rainha Maria.
Numa noite, de tão cansado que estava por não haver dormido tantas noites, o rei Estevão conseguiu adormecer e teve um sonho. Sonhou que estava acordado, andando pelos corredores do castelo escuro. Ouvia a voz que era muito forte e clara e dizia: “As flores têm que voltar, as flores têm que voltar, as rosas têm que florir”. Ele caminhou em direção ao lugar de onde vinha aquela voz, andou por vários corredores, até que chegou – em seu sonho – a seu próprio quarto. A rainha Maria apareceu-lhe. Rei Estevão a viu, ficou muito alegre e lhe disse: “É você que está me chamando todas as noites? Você está me pedindo as flores?”. No sonho, a rainha Maria lhe respondeu: “Sim Estevão, sou eu. Você tem que permitir que as pessoas plantem as flores e você também deve falar aos jardineiros que plantem novamente as flores em meu jardim.” Um pouco confuso o rei disse: “Maria, se assim for, me lembrarei de você e vou ficar muito triste”. A rainha Maria retrucou: “Se você não quer me esquecer para sempre, deixe as flores florescerem, deixe nossa roseira produzir rosas. No princípio você vai achar que isso lhe causa dor, mas com o tempo você vai perceber que o perfume das flores e o seu colorido irão lhe trazer consolo. Então você sempre vai lembrar de mim com bons pensamentos. Deixe as flores voltarem, deixe a roseira florescer”.
Naquele instante o rei acordou do seu sonho e ficou pensativo: “Será isso mesmo? A minha filha pede as flores, a minha esposa em sonho diz que eu tenho que deixar as flores retornarem.” Nas horas restantes da noite o rei não conseguiu dormir. Ele esperou que chegassem as primeiras luzes do dia, e ao clarear, mandou chamar todos os jardineiros e todos os serventes do castelo e ordenou que replantassem todo o jardim, que buscassem as sementes que estavam guardadas. Ordenou ainda que mensageiros cavalgassem pelo reino com rapidez e avisassem a todas as aldeias do país que a lei que proibia o cultivo das flores estava extinta. Todos poderiam plantar e semear novamente. Quando chegasse a festa de páscoa o rei e a princesa queriam ver outra vez a praça em frente ao castelo cheia de crianças alegres com suas lindas coroas de flores.
As pessoas do reino ficaram muito contentes, todos começaram a trabalhar em seus jardins, mas onde se trabalhava com maior afinco era nos jardins do palácio. Os jardineiros reviravam e revolviam a terra ressecada, colocavam adubo e esterco para que ficasse de novo bem afofada e bem cheia de vida; plantaram as sementes, plantaram novas mudas em todos os canteiros. Por sorte faltavam ainda algumas semanas para a páscoa, até lá haveria tempo para que algumas plantas conseguissem produzir suas primeiras flores naquele ano.
O rei fez questão de cuidar da roseira especial, aquela que não havia sido arrancada. A terra a sua volta estava endurecida e ressecada pois ninguém havia tratado muito bem dela naquele período, por este motivo, a roseira estava bem mirrada. O próprio rei Estevão foi até lá com suas ferramentas de jardinagem, começou a afofar a terra, colocou estrume, regou-a bem; enquanto trabalhava se distraiu e sua mão se aproximou tanto dos galhos que os espinhos feriram seus dedos, um deles começou a sangrar. Algumas gotas de sangue caíram na terra. Naquele instante, ao sentir dor, o rei recordou sua dor mais profunda e quase se arrependeu do que estava fazendo, mas a lembrança do sonho e da voz voltaram: “As flores, deixe as flores voltarem, deixe a roseira florir”. Então ele pensou: “O que é isso? Um pequeno ferimento não vai fazer mal a ninguém, vou continuar o meu trabalho”.
Trabalharam arduamente durante dias. A terra bem cuidada, bem adubada e bem regada fez com que as sementes germinassem e as primeiras plantas começaram a crescer. Passadas algumas semanas, surgiram os primeiros botões. A roseira também se recuperou, pois em poucos dias começaram a nascer de seus galhos mais delicados os primeiros botões. Quando a primeira rosa abriu, o rei Estevão a cortou e a levou ao quarto da princesa. Como sua esposa sempre fizera, ele a colocou num pequeno vaso ao lado da cabeceira da cama da jovem. Ao perceber o cheiro agradável da rosa, a princesa abriu os olhos, deu um sorriso e disse para o pai: “Que bom papai, você deixou as flores retornarem!”.
Daquele dia em diante a febre da princesa cessou, ela aceitou alimento e se recuperou. Em poucos dias, já caminhava pelo palácio. Descia todas as manhãs com o pai até o jardim para observar o que estava acontecendo ali, queria ver quais eram as flores que estavam prestes a abrir, que cores tinham e como era seu perfume. A roseira da rainha Maria floresceu como nunca havia florescido antes, estava repleta de botões de rosa. A cada manhã o rei escolhia um deles para colocar no quarto da princesa.
As famílias do reino também haviam conseguido renovar os seus jardins. Quando chegou a festa de páscoa, a praça em frente ao castelo ficou cheia de gente. Todas as crianças vieram com suas lindas coroas de flores, alegres e coloridas. O perfume das flores subia até a torre mais alta do castelo. Naquele ano a princesa decidiu descer para estar junto às crianças, cantar e dançar com elas. Ela fez para si uma coroa utilizando apenas as rosas da roseira vermelha perfumada, tantos foram os botões que floresceram.
Aquela páscoa foi inesquecível! O rei Estevão nunca mais pensou em proibir as flores no seu reino, porque as flores com suas cores e com o seu perfume sempre trazem alegria e felicidade!

A reflexão mencionada abaixo, não cabe contar às crianças, desejo apenas que ela sirva como intenção silenciosa do adulto.

O Nome Estevão, provém da palavra grega “stéphanos”, que traduzida quer dizer “coroa”. Tive a intenção, com a escolha dos nomes dos personagens, de embutir no conto de forma sutil, uma referência ao momento atual em que vivemos. “Corona” significa em latim “coroa”. No conto, aquele que porta a coroa, cujo nome significa coroa, é o principal responsável pela felicidade ou pela destruição de seu reino. Cabe ao portador da coroa, fazer a escolha certa. Para tanto precisa estar aberto a ouvir a voz que fala no silêncio de seu interior.
Sua filha, Sofia (que em grego significa “sabedoria”) lhe oferece ajuda para abrir a consciência e a alma. Que nós, que nos dias atuais vivemos sob a marca de outra “coroa/corona”, consigamos acessar a sabedoria que nos abre coração e mente, para que também em nossas escolhas prevaleça a beleza, a bondade e o bem-estar do próximo.

Renato Gomes

Conto: Tikeva – Parte 2

Aquela semana havia sido muito agitada para todos que estavam na cidade de Jerusalém. Tikeva também teve uma semana agitada. Algumas vezes tentou ir ao templo para ver Jesus, que sempre estava lá com seus discípulos. Em alguns momentos foi possível, em outros não. Em certos momentos havia tanta gente a volta dele, havia tanta conversa e discussão que a jovem mal conseguia chegar perto. Ela, porém, carregava no coração a pergunta: “Será Jesus o messias?” Algumas vezes ela conseguiu vê-lo de perto no templo, olhou com muita atenção, mas não percebeu aquela forte e brilhante luz que havia visto no domingo anterior. Ele permanecia aquele homem simples, com roupas simples, falando às pessoas, ensinando, conversando e respondendo às perguntas que lhe faziam. Assim a semana prosseguiu. Havia chegado então o sábado, era o dia da solene festa; além disso o sábado também representava o dia de descanso: todos deveriam permanecer em suas casas, celebrando a festa, serenos e tranquilos. Tikeva permaneceu em sua casa com seus pais. Ela foi dormir cedo. Naquela noite teve um sonho muito estranho. Sonhou que estava caminhando fora dos muros da cidade de Jerusalém e chegou até uma pequena colina. Nesta colina havia uma caverna e a entrada da caverna estava fechada com uma enorme pedra. Tikeva olhava para aquela pedra e pensava: “O que será que há lá dentro?”. Viu então que dois anjos luminosos vinham descendo do céu, suas asas brilhavam na escuridão. Os dois anjos se aproximaram da grande pedra e começaram a movê-la. Ela era muito pesada, mas, mesmo assim, os anjos conseguiam fazê-la rolar e aos poucos a caverna foi se abrindo. Para a surpresa de Tikeva, ainda que a noite estivesse bem escura, de dentro da caverna começou a sair uma luz. A medida em que a grande pedra se movia, surgia da fresta da entrada da cova uma luz forte e intensa. Quanto mais os anjos rolavam a pedra, maior ficava a abertura e mais intensa ficava aquela luz. Tikeva tinha a impressão de que o sol estava brilhando ali dentro. Do lado de fora ainda era noite escura. Os anjos rolavam e empurravam a pedra e a entrada foi se abrindo. Em Tikeva surgiu uma grande expectativa. “Agora verei o que há lá dentro! Será que o próprio sol está brilhando no interior da caverna?” Os anjos, por fim, conseguiram empurrar a grande pedra, que rolou e caiu ao lado. Quando ela caiu fez um estrondo muito alto e Tikeva sentiu a terra tremer, tremeu tão forte que a jovem acordou, assustada. Neste instante percebeu que aquele tremor não havia sido um sonho. Sua cama havia tremido, sua casa havia tremido, toda a Terra havia tremido.
Ela se levantou, assustada e viu que seus pais também estavam de pé. Eles lhe disseram que haviam se levantado porque perceberam o tremor que abalou os fundamentos da casa, talvez até o muro da cidade tivesse sido abalado por aquele grande e forte tremor. Tikeva lhes contou seu sonho. Os pais ficaram confusos com o que ouviram, mas a jovem explicou: “Foi a pedra que eu vi no meu sonho, ela foi empurrada e caiu no chão. Eu tenho que ir até lá!” Rapidamente trocou de roupa, e sem que os pais pudessem impedi-la, saiu de casa e começou a caminhar pelas ruas escuras da cidade. Era noite ainda, faltava pouco tempo para o sol nascer, em breve as luzes do novo dia começariam a surgir. Naquele momento, porém, Tikeva estava preocupada com outra coisa: “Como farei para sair da cidade?” Pois a cidade era rodeada pela grande muralha. Havia vários portões em diferentes lugares, mas todos eles ficavam fechados durante a noite. Um deles abria primeiro que os outros, mas Tikeva não sabia qual era. Começou a procurar pelas ruas, andando de um lado para o outro… Aos poucos o céu começou a clarear. Eram os primeiros instantes da aurora. De tanto caminhar chegou ao lugar do muro onde havia um portão aberto. A jovem saiu por ele. Do lado de fora da cidade não estava tão escuro, havia mais claridade, pois faltava bem pouco para o nascer do sol. Tikeva viu a sua frente uma colina e viu também uma cova, semelhante ao seu sonho. Havia apenas uma coisa diferente: uma mulher estava sentada em cima da grande pedra, que tinha rolada para o lado, deixando aberta a entrada da cova. A mulher estava triste e chorava. Tikeva se aproximou e perguntou: “Está tudo bem com você? O que aconteceu? Por que está chorando?” A mulher respondeu: “Ah! Nesta cova foi colocado o corpo do meu mestre, Jesus, ele foi preso e, de tanto sofrimento, morreu. Nós o colocamos aqui dentro. Eu vim bem cedo, para limpar e perfumar o seu corpo como mandam os ritos de nossa religião. Cheguei aqui e vi que a pedra havia sido rolada e a cova estava vazia. O que aconteceu com ele? Como é possível que alguém tivesse vindo aqui no meio da noite e retirado o corpo do nosso mestre?” Tikeva não entendeu: “Como era possível, que Jesus havia morrido?” Seu pai não havia contado para ela, que Jesus havia sido preso, maltratado e morrido naqueles dias, como a mulher havia dito. A jovem ficou tão triste com aquela notícia que se afastou um pouco e ficou observando e pensando: “O que eu sonhei era bem diferente: O sol brilhava dentro da cova… e agora ouço esta triste notícia!” Enquanto permanecia ali, Tikeva olhava o nascer do sol que preenchia com sua luz o céu e toda a Terra. Tikeva percebeu que próximo daquela colina havia um pequeno jardim. Caminhando pelo jardim, veio um homem simples que se aproximou da entrada da cova e começou a conversar com a mulher. Tikeva pensou que ele fosse o jardineiro. Ficou observando à distância. Ela não conseguia ouvir a conversa, mas viu que a mulher parou de chorar, ficou alegre e, de repente, saiu correndo de volta à cidade. Tikeva se aproximou do homem, talvez ele soubesse aonde haviam levado o corpo de Jesus. Ao se aproximar viu que o sol brilhava por trás da figura daquele homem e ela lembrou do outro domingo em que viu Jesus caminhando pelo deserto, montado no burrinho, com o sol brilhando por trás dele e com as vestes resplandecentes. Tikeva percebeu que as vestes daquele que parecia ser o jardineiro também brilhavam à luz do sol. Algo, porém, era diferente: a luz do sol refletia nas suas roupas e irradiava em muitas cores. As vestes daquele homem resplandeciam em todas as cores do arco-íris, intensas e brilhantes. Neste instante Tikeva teve certeza: “Você é Jesus! Eu vi você chegar na cidade no outro domingo, brilhando como o sol e agora eu vejo você novamente, brilhando em todas as cores! Disseram-me que você havia morrido, mas vejo está vivo!” Jesus olhou para ela e disse: “Tikeva, o que te disseram é verdade, eu estava morto, mas estou vivo. Eu ressuscitei, voltei à vida.” Tikeva se admirou e lhe perguntou: “Como você sabe o meu nome? Como você me reconheceu?” Jesus lhe disse: “Eu te reconheci porque você me reconheceu primeiro. Agora vai e conta a todas as pessoas que eu ressuscitei, que eu estou vivo e que eu estarei sempre presente para todos aqueles que aprendam a me reconhecer.”
Tikeva então entrou na cidade e foi para casa de seus pais. Contou para eles o que havia acontecido e contou para muitas, muitas pessoas… A vida inteira ela contou essa história. Por este motivo essa história chegou até nós e a continuamos contando para todos que queiram ouvir.

Renato Gomes

A Ressurreição de Matthias Grünewald – Isenheim

Conto: Tikeva – Parte 1

Tikeva havia nascido em Jerusalém. Seu pai era um escriba, um estudioso das leis, das regras e dos textos sagrados dos judeus. Por este motivo Tikeva, desde muito pequena, sempre havia ouvido muitas histórias que seu pai contava, as histórias do seu povo. Ela gostava muito de ouvir aquelas histórias.
Havia uma em especial que Tikeva gostava mais que as outras. Era a que seu pai contava sobre a vinda do Messias, transmitida pelos antigos profetas. O Messias se tornaria o rei. Um rei poderoso, que traria alegria e felicidade para todos, pois seria o próprio filho de Deus que viria à Terra. Tikeva não conseguia imaginar como isso poderia ocorrer. Ela desejava muito que quando essa profecia acontecesse ela pudesse vê-la.
A cidade de Jerusalém ficava no alto de uma colina chamada “Monte Sião”. Haviam construído uma grande muralha em volta da cidade. Descendo do Monte Sião se chegava ao Vale do Rio Cedro. Do outro lado do vale havia outra montanha, chamada “Monte das Oliveiras”. Por trás do Monte das Oliveiras se estendia um grande planalto que terminava no meio do deserto, o “Deserto da Judeia”.
Um dia, o pai de Tikeva subiu com ela até o muro da cidade. Lá de cima se podia observar do alto o que havia em volta. Foi uma vivência bem especial para a pequena Tikeva. Seu pai sentou a jovem menina em cima do muro, segurou-a bem e apontou para o lado do Monte das Oliveiras por trás do monte se via o grande planalto que se perdia no meio do deserto. Ele falou: “Está vendo Tikeva? Olhe, está começando a nascer a Sol”. A menina olhou para aquele lado, no oriente, e o sol estava começando a surgir no horizonte. A luz foi ficando intensa e bonita, e enquanto o Sol ia ascendendo o pai lhe dizia: “Os profetas disseram que um dia, desta direção, do lugar de onde nasce o Sol, caminhando por ali, vindo do deserto, virá o Messias. Ele descerá o Monte das Oliveiras e entrará na nossa cidade”. A história era bem curta, só dizia isso, mas Tikeva nunca esqueceu estas palavras

Passaram-se os anos…

Um dos passeios preferidos da menina era subir até a muralha da cidade, olhar para o oriente, onde o Sol nasce, e ficar ali esperando para ver as primeiras luzes do dia. Observando o nascer do Sol, ela pensava: “Quando virá o Messias?”. Depois de um tempo de silêncio, observando o nascer do Sol, Tikeva retornava à sua casa.
Sempre que lhe era possível, Tikeva subia até aquele lugar para olhar o nascer do Sol e pensar naquelas palavras.
Aconteceu em um domingo, Tikeva já não era mais uma criança, havia se tornando uma jovem. Como muitas vezes havia feito, subiu até a muralha da cidade de Jerusalém, antes da saída do Sol e ficou observando o oriente. Admirava como o céu ia ficando colorido, cada vez mais claro, até que viu as primeiras luzes do Sol surgindo no horizonte, no meio do deserto. A luz foi aumentando e se intensificando, ficou cada vez mais claro. O Sol já estava bem grande, iluminando toda a terra, quando Tikeva teve uma surpresa: caminhando nas primeiras luzes da manhã, vindo em direção a cidade, ela viu alguém montado em um jumentinho, a sua volta havia várias pessoas. Ela contou com atenção: eram doze homens que acompanhavam aquele que vinha montado no animal de carga.
Tikeva, em um primeiro momento, estranhou aquela imagem. “Por que somente um vinha montado em um jumentinho e os outros caminhavam?”. Não pareciam comerciantes ou vendedores pois estes se reuniam em caravanas muito maiores, cheias de dromedários e camelos carregados de fardos. Aquele era um grupo pequeno que caminhava sem bordão, sem alforjes, sem nada. Eles simplesmente caminhavam e acompanhavam aquele que vinha montado no jumentinho.
De repente Tikeva se admirou porque o Sol já estava mais alto no céu, mas, ainda assim, um intenso brilho acompanhava aquele grupo de homens. Olhando com atenção, ela percebeu que era justamente daquele que montava o jumentinho, que vinha uma luz quase tão forte como o Sol. Suas vestes brilhavam, parecia que refletiam ali, no meio do deserto, a luz do sol, irradiando todos os que o acompanhavam.
Eles se aproximavam cada vez mais e Tikeva os observava. À medida que o Sol subia, parecia que mais intenso ficava o brilho das vestes daquele que montava o jumentinho.
Naqueles dias, acampadas no vale do Rio Cedro haviam muitas pessoas pois naquela semana aconteceria uma festa muito importante na cidade, a festa chamada “Pessah”, a Páscoa dos judeus.
No instante em que o grupo de homens vindo do deserto chegou no topo do Monte das Oliveiras, as pessoas que estavam embaixo no vale olharam para o alto e perceberam que alguma coisa diferente estava acontecendo.
Alguns correram e cortaram ramos e galhos de palmeiras e outras plantas. Outros começaram a estender seus mantos pelo caminho. Aquele que vinha montado no jumentinho descia vagarosamente com seu animal a encosta do Monte das Oliveiras. Ao chegar lá embaixo, havia no vale um enorme tapete feito com os mantos e véus das pessoas, recobrindo o caminho que chegava até o grande portal que ficava no muro da cidade. Enquanto aquele que ia montado no jumentinho trotava por esse tapete, as pessoas ao lado abanavam os galhos e os ramos e gritavam:

“Viva! Viva!”

“Hosana ao filho de Davi!”

“É ele que vem em nome do Senhor!”

Gritavam tão forte, tão alto, que Tikeva do alto foi capaz de ouvir. Ela lembrou da história dos profetas que seu pai havia contado. “Seria aquele, o tão esperado Messias?”, pensou.
Com certeza, pois o brilho que ela havia visto ao longe enquanto caminhavam, continuava ali no vale. A luz do Sol ainda não havia dissipado as sombras na parte debaixo do vale, mas, mesmo assim, as suas vestes brilhavam como o Sol irradiando luz no meio de todas aquelas pessoas. Tikeva então teve certeza, “esse é o nosso tão esperado Messias”.
Ela foi correndo para casa, chamou seu pai e disse: “Pai, venha, vamos ver! A cidade toda está lá fora, todos estão saudando e gritando! Eu vi! Eu vi! Eu vi o Messias, como você me contou, ele veio do oriente, de onde nasce o Sol. Ele veio montado em um jumentinho, como disseram os profetas! Vamos vê-lo! Vamos! Ele está chegando à cidade!”.
O pai de Tikeva ficou um pouco confuso com o que sua filha dizia. Ele sabia que a cidade e o vale estavam cheios de pessoas que vieram para a festa e havia muito movimento, mas, mesmo assim, decidiu acompanhar a filha pelas ruas da cidade. Quando chegaram perto do grande portal no muro da cidade, viram que alguém estava ali: Um homem rude, com suas roupas bem humildes e simples, descendo de um jumentinho. A sua volta estavam seus companheiros que o ajudavam. Tikeva ficou surpresa ao olhar para ele, pois parecia um homem comum, seus companheiros também eram homens muito simples. Tikeva então perguntou ao pai: “Quem é esse homem, meu pai? Você o conhece?” “Esse homem”, disse o pai, “é o filho de um pobre carpinteiro, seu nome é Jesus. Seus companheiros são pescadores da Galileia, homens rudes de aldeias do interior. Ele não pode ser o Messias, Tikeva, você se confundiu”. A menina por um momento ficou confusa. Todo aquele brilho e aquela luz que ela havia visto, haviam desaparecido. Ali estava um homem simples, um homem comum. As pessoas a sua volta ainda estavam um pouco alegres e eufóricas, mas aquele homem estava sereno, conversando com os que estavam próximos. Disse então para um de seus companheiros, que levasse o jumentinho de volta ao lugar de onde o haviam tirado. Ele caminhou pelas ruas da cidade em direção ao templo.
Tikeva pensou: “Será que eu me confundi? Será que toda aquela luz e aquele brilho não tinham sido verdadeiros? Será que eu me enganei?”. Quando ela olhava para Jesus, ele parecia um homem tão simples. Ele não poderia ser o tão esperado Messias. Entretanto no fundo do seu coração, Tikeva sabia que não havia inventado tudo aquilo, que não havia sido ilusão. O que ela havia visto, ela sabia que era verdadeiro. Será que as pessoas também haviam percebido aquela luz? Tikeva perguntou para um e para outro, mas parece que ninguém, a não ser ela, havia tido aquela percepção. As pessoas o haviam visto descer o Monte das Oliveiras, montado num jumentinho como um homem comum. Eles o saudaram porque ele era especial, era um profeta, falava coisas boas e bonitas, ensinava as pessoas, curava os doentes. Mas no coração de Tikeva permanecia a pergunta: “Será que este Jesus é o nosso tão esperado Messias?”

(…)

Nota para os familiares:
Esta história continua no Domingo de Páscoa.
Tikeva significa “Esperança” em hebreu.

Renato Gomes