Palestra: A Trindade em Deus e a trimembração no mundo

A compreensão do que é a Trindade talvez seja uma das questões mais difíceis no Cristianismo. Desde o princípio da formação de uma teologia cristã, existe o esforço de tentar explicar, de alguma forma, o que é a Trindade. O problema consiste no fato de que o Cristianismo é uma religião monoteísta, isto é, temos somente um Deus, mas, mesmo assim, falamos do Deus Pai, do Deus Filho e do Deus Espírito. Assim, surge a pergunta: são três ou é somente um? Como um Deus pode ser, ao mesmo tempo, uma Trindade? A maioria das pessoas, provavelmente sem pensar muito sobre o assunto, diriam que nos dirigimos às três entidades divinas: o Pai, o Filho e o Espírito. E talvez considerem o Pai como realmente sendo Deus. Não é possível solucionar esse paradoxo entre um Deus e uma Trindade por meio da lógica, apesar das tentativas feitas nos últimos séculos da história do Cristianismo.
O Cristianismo tem as suas origens no Judaísmo e a religião judaica tem realmente um único Deus, assim como também o Islã, a terceira religião monoteísta. Somente o Cristianismo possui a ideia da Trindade, embora essa ideia de se ver o divino como uma Trindade não seja algo que tenha surgido com o Cristianismo. Na história da humanidade podemos ver que, nos seus primórdios, havia a tendência de ver o mundo de uma forma unitária, não necessariamente de se dirigir somente a um Deus, mas de ver a realidade do mundo como uma unidade. Nas correntes espirituais, que têm suas raízes no Hinduísmo, podemos reconhecer essa tendência de ver a realidade do mundo como uma unidade espiritual divina, e a vivência do mundo material como uma ilusão. Todo o anseio se dirige em poder superar a ilusão de se estar separado da unidade divina como, por exemplo, no voltar ao Nirvana. No decorrer da história surge a consciência da polaridade no mundo, a polaridade entre luz e trevas, entre espírito e matéria, entre o Divino e as forças adversas, entre o bem e o mal. Podemos ver, na Pérsia, essa ideia da polaridade entre o ser divino solar, Ahura Mazdao, e o seu adversário, Arimã. Mas também, na tradição asiática, vemos a sabedoria de compreender o mundo por meio da polaridade entre Yin e Yang. É no Egito que surge, então, a consciência da Trindade, quando se despertou para a necessidade de poder pensar o divino numa trindade, e também como meio de compreender o mundo. No mito de Osíris, Ísis e Horus, temos a imagem do divino como uma trindade: O Deus Pai (Osíris), a Deusa Mãe (Ísis) e o Deus Filho (Horus). Na antiga cultura egípcia existem estátuas de Ísis com seu filho Horus no colo que, se não soubéssemos provir dessa cultura, pensaríamos tratar-se de uma representação de Maria com o menino Jesus. Existe um relacionamento muito profundo entre Ísis, Maria e o que no Cristianismo chamamos de Espírito Santo, culminando na realidade da Sofia, representante da sabedoria. Assim, podemos ver o desenvolvimento da consciência da humanidade no esforço de compreender o divino e o mundo, nos passos da unidade, da dualidade e da trindade. Todos os três pontos de vista são válidos, mas refletem etapas distintas do desenvolvimento da consciência. O Cristianismo fundamenta a sua compreensão na ideia da Trindade. Mas o problema que temos é que, ao procurarmos entender o significado do Pai, do Filho e do Espírito apenas a partir dos seus nomes, a compreensão pode tornar-se muito intelectual e não atingir a realidade espiritual que está sendo indicada a partir desses nomes. Não é possível tentar entender a Trindade por meio de pensamentos lógicos e intelectuais. O Ato de Consagração do Homem, como chamamos o culto na Comunidade de Cristãos, pode nos ser uma ajuda nessa compreensão. Na missa católica, quando as pessoas fazem o sinal da cruz, dizem “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Isso também acontece no Ato de Consagração, mas aos nomes do Divino é acrescentado um verbo, e assim, entram num processo, ganham qualidades: “O Deus Pai seja em nós, o Deus Filho crie em nós, o Deus Espírito ilumine a nós”. Assim, a tarefa se torna, agora, pensar e sentir a Trindade em processos, em qualidades.
“O Deus Pai seja em nós”. Qual é a qualidade do “ser”, do fato de existir? Podemos procurar nos relacionar com a realidade de que algo existe, de que algo é, e sentir que a existência de tudo e de todos está fundamentada em um ser divino. Podemos formar na alma um momento de calma, olhar para o mundo e dirigir nossa atenção para algo concreto que está à nossa frente: um objeto no nosso quarto, uma árvore que vemos através da janela, um passarinho que escutamos cantar, e assim por diante. Estamos rodeados de coisas que existem. Mas por que elas existem? Poderiam não existir. Poderia não existir nada. Por que as coisas ganham existência? O que fundamenta a existência do mundo? Podemos sempre mais sentir que o mundo existe, a Terra existe, o solo que nos carrega e possibilita a nossa existência, tentar sentir um fundamento paterno que subsiste em tudo e em todos. Podemos sentir o fato de que as coisas existem, que existe a substância terrestre que vivenciamos como matéria, que existem os seres da natureza, e que nós, seres humanos, por existirmos, somos. A vivência do existir do mundo pode nos levar ao sentimento de uma qualidade, um lado do Ser Divino, que damos o nome de Pai: “O Deus Pai seja em nós”.
Olhando para a natureza, vemos tudo aquilo que tem uma realidade hoje, agora, neste momento. Vemos, por exemplo, uma árvore que existe, com uma determinada forma, composta de determinadas substâncias. Mas essa árvore não foi sempre assim. Há alguns anos atrás era pequena, e então cresceu, e agora está com flores, mas em alguns meses terá frutos maduros, e daqui há vários anos não estará mais ali, terá secado, apodrecido. Tudo o que tem a ver com processos vitais, podemos observar muito claramente que está se transformando continuamente no decorrer do tempo. Mas também as pedras, os minerais, as montanhas, estão em processos de transformação. É mais difícil observar os processos de transformação dos minerais, pois acontecem num período de tempo muito maior, por séculos, e até milênios. Toda a existência, tanto no mundo sensorial quanto no mundo espiritual, está em processo de transformação, de desenvolvimento. Nada existe que esteja totalmente parado, sem algum desenvolvimento. Tudo está em um devir. Temos o existir do mundo, mas temos também esse existir em um processo, em um devir. Agora podemos nos perguntar: de onde vem o impulso para os processos que ocorrem no mundo, o impulso do devir? Assim como podemos direcionar a nossa atenção para as coisas que existem no mundo, podemos também prestar atenção para os processos que acontecem ao nosso derredor: o vento que está soprando, a mosca que está voando, o calor ou o frio que está fazendo hoje, a chuva que está caindo, e assim por diante. Podemos tentar sentir que a possibilidade de que no existir do mundo haja processos, haja transformações, surja sempre algo novo, ocorra uma evolução, tem a sua fonte em um ser divino, que chamamos de Deus Filho. Por isso dizemos: “O Deus Filho crie em nós”.
E onde podemos vivenciar a terceira qualidade do ser divino, que chamamos de Deus Espírito? Podemos ver, de uma maneira muito clara, que a natureza existe, que possui uma substância, e que também está colocada em processos, em transformações. Mas esses processos de transformação não acontecem de uma forma caótica, sem um sentido. Muito pelo contrário, podemos reconhecer que na natureza está atuando uma imensa sabedoria. Cada pedra, cada planta, cada animal, e também o ser humano, em relação ao seu corpo, estão permeados de uma sabedoria divina. Podemos tentar sentir que essa sabedoria, que rege o mundo, emana de um princípio divino, que chamamos o Deus Espírito. Assim dizemos: “O Deus Espírito ilumine a nós”.
Na natureza, essas qualidades divinas atuam em tudo: como fundamento da existência, como fonte do impulso de desenvolvimento, como sabedoria que permeia o mundo. Elas também atuam em nós, no nosso corpo, enquanto somos parte da natureza. Mas como elas atuam em nossa alma? Se vemos as três qualidades do divino, a existência, o devir e a sabedoria, podemos ver que a existência da nossa alma, fundamentada no divino, não é algo tão evidente, como o é o corpo no âmbito da natureza, e que também não estamos, com a nossa alma, permeados de sabedoria divina como está a natureza. Mas a possibilidade de criar algo novo, a potência do devir, temos em nossa alma até de uma maneira mais potente do que a natureza. Nós, seres humanos, temos a possibilidade de sermos criativos, de criarmos algo que não existe na natureza. Isso se vê nitidamente em tudo o que o ser humano criou no âmbito da arte e da técnica. Temos em nós, uma grande afinidade com o Deus Filho, temos que, como semeados em nós, a potência divina de sermos criadores. Como exemplo, em que vemos a harmonia entre técnica e arte, podemos ver o processo necessário para fazer um violino. Um violino não existe na natureza, não foi criado por Deus.
O luthier conhece a ideia do violino. Ele toma a substância da natureza, a madeira, e dá forma a ela, de modo que se torne um violino. Ele domina a técnica de construir um violino, com o qual se pode tocar uma música, revelar uma obra de arte. Tanto a manufatura do violino, quanto a execução da obra de arte, são criações do ser humano. Para isso, ele necessita de substâncias da natureza, e da ideia proveniente do espírito. Mas ele é o criador. Podemos ver aqui as qualidades da Trindade: a madeira está ligada com o Deus Pai, a ideia do violino com o Deus Espírito, e o trabalho criativo do luthier com o Deus Filho. Vemos assim, em nossa alma, quanto estamos relacionados com a qualidade do Deus Filho, pois temos a possibilidade de colocar substâncias da Terra em processos que não acontecem originalmente na natureza. O exemplo do violino tem um caráter muito positivo, mas a questão é se naquilo que criamos realmente rege sabedoria, ou se essa potência criadora que temos em nós é usada de uma forma destrutiva. Em relação à nossa alma não podemos dizer que nossa existência está fundamentada no divino de uma forma óbvia, que a potência criadora em nós atua de forma sempre construtiva, que nossa alma está a todo momento permeada por sabedoria.
O ser humano tem a possibilidade de desenvolver a liberdade e, como tal, necessita querer, em liberdade, se unir ao divino. Por isso não podemos dizer que o Deus Pai é em nós, o Deus filho cria em nós e o Deus Espírito ilumina a nós. Mas podemos nos empenhar em unir a nossa alma ao divino, com a meta de que sempre mais o Deus Pai seja em nós, o Deus Filho crie em nós e o Deus Espírito ilumine a nós.

João F. Torunsky

Palestra: Pentecostes: O Espírito Sanador da individualidade e da comunidade

“Olhai as flamas
São elas a revelação do Espírito”
Pentecostes: O Espírito Sanador da individualidade e da comunidade

Desde o início da história da humanidade, até os nossos dias, podemos concentrar todas as questões religiosas e filosóficas em três perguntas:
• De onde viemos?
• Para onde iremos?
• Qual o sentido da nossa existência?
A nossa vida biológica tem dois limiares. Ela começa com a concepção, a gravidez e o parto. E termina com a morte. Essa é a vida biológica do nosso corpo, com o qual a nossa alma se liga e se encarna. E assim surgem as perguntas: se a alma tem uma existência antes da formação do corpo, e se ela terá uma existência depois da morte desse corpo. Onde nós estávamos antes do nascimento, onde estaremos depois da morte? E qual é o sentido de nos encarnarmos neste corpo e desenvolvermos uma biografia?
De um ponto de vista materialista, em que tudo se resume a uma realidade biológica, a resposta é bem óbvia: não há uma existência antes da concepção tampouco depois da morte. A vida de uma determinada espécie tem uma continuidade, mas a vida de um indivíduo tem um início e um fim. Nas espécies, a continuidade da vida ocorre pela reprodução, mas a vida de um indivíduo começa com a concepção e termina com a sua morte. Não existe nada antes da concepção ou depois da morte, segundo esse ponto de vista.
É evidente que a maioria das pessoas não vive num sentimento completamente materialista. Elas têm o sentimento de que há algo antes da concepção e também depois da morte. Como nos falta uma experiência concreta dessas realidades, enraizamos esse sentimento numa convicção, numa fé, numa esperança.
Assim, a grande maioria de nós compreende a realidade biológica, desde a época escolar, a partir do exercício de um pensar, que tem suas raízes numa visão materialista. Mas, ao mesmo tempo, possuímos um sentir que transcende a realidade meramente biológica material.
De um ponto de vista meramente biológico, o sentido da vida se reduz à procriação da espécie e, para o indivíduo, no anseio por prazer, riqueza e poder. Desse modo não é possível fundamentar um sentido elevado e moral para a vida. A convicção de que a vida tem um sentido mais elevado, moral, religioso, surge pela possibilidade de se ter um sentimento que transcende a realidade biológica.
Essa é a realidade atual da nossa consciência, mas nem sempre foi assim. A ciência espiritual nos relata que existe um desenvolvimento da consciência da humanidade e que, no passado, a consciência das pessoas era muito diferente da que temos hoje em dia. Não significa que elas possuíam mais fé, e acreditavam numa realidade espiritual divina mais do que hoje somos capazes de acreditar. Tinham, na verdade, uma outra consciência. Rudolf Steiner descreve que, na antiguidade, as pessoas possuíam uma recordação das próprias experiências vivenciadas antes da concepção, e se recordavam da realidade da existência da própria alma nesse período anterior ao nascimento. As pessoas tinham também uma vivência das almas que não estavam encarnadas, ou seja, tanto dos falecidos como dos ainda não nascidos. E tinham o pressentimento de como, depois da morte, seguiriam um caminho que as uniria a essas almas não encarnadas e também com a realidade espiritual divina do mundo. A convicção da realidade da existência da alma, antes do nascimento e depois da morte, era fundamentada numa recordação, numa vivência, num pressentimento.  Essa consciência das pessoas de outrora não era tão desperta como a que temos hoje, tinham o que se costuma chamar de uma consciência atávica, quase como de sonho. Percebia-se a realidade espiritual divina sem a análise pelo pensar lógico, que hoje todos nós podemos ter. Ainda hoje, muitas crianças possuem essa qualidade de consciência e, na maioria dos casos, não necessitam de uma comprovação da realidade espiritual divina do mundo, pois trazem em si sentimentos, vivências que, quando podem expressar, nos surpreendem pela sua sabedoria. Tem uma convicção inata da existência de uma realidade anterior ao nascimento e posterior à morte.
Na antiguidade, essa consciência levou a humanidade a um conhecimento do caminho da alma no processo de encarnação até o momento do nascimento e, no processo de excarnação, no caminho depois da morte. Ainda hoje encontramos em livros antigos uma pequena parte desse conhecimento, em que a alma faz um caminho de descida pelas esferas das estrelas, dos planetas, do Sol e da Lua, até chegar à Terra e se encarnar, e, depois da morte, da subida da alma no caminho pelas esferas da Lua, do Sol, dos planetas, até chegar às estrelas para se unir novamente com a realidade espiritual divina do mundo. Na esfera das estrelas vivemos uma realidade atemporal, o que se conhece por eternidade; na esfera da Terra vivemos uma realidade temporal, entre nascimento e morte. Para fazer esse caminho a alma necessita de ajuda. Necessita de uma força para encarnar-se e nascer na Terra, e necessita de uma força para, depois da morte, prosseguir no caminho até as estrelas. Na antiguidade, se reconhecia que essa ajuda, essa força, era proveniente do Sol. Quando nós, encarnados aqui na Terra, olhamos para o céu, vemos o Sol como um disco irradiante. Mas vivenciar o Sol espiritualmente é como vê-lo de um outro ponto de vista, pelo lado de dentro, e reconhecer que o Sol é habitado por seres muito elevados, guiado por um ser divino: o Espírito do Sol. Naquele tempo se reconhecia que o Espírito do Sol é o ser divino que nos dá a força para podermos nos encarnar. E quando nascemos, uma pequena chama desse fogo imensurável do Sol penetra na alma de cada ser humano, se ocultando em seu próprio íntimo. A tarefa, o sentido da vida, reside em encontrar essa chama do Ser do Sol em nossa alma, para que, então, depois da morte, tenhamos a força para voltarmos à esfera das estrelas. Do Sol não recebemos apenas a luz, o calor e a força da vida, mas recebemos também a força para nos encarnarmos e nos excarnarmos, e a chama divina que queima no íntimo da própria alma. Assim se formou nas culturas antigas a adoração ao Sol.
Na antiguidade, haviam respostas muito claras para as três perguntas existenciais do ser humano.
Onde está a alma antes do nascimento? Da esfera das estrelas, ela desce o caminho até a Terra, auxiliada pela força do Sol.
Onde está a alma depois da morte? No caminho de se unir novamente com a esfera das estrelas, auxiliada pela força do sol.
E qual é o sentido de nossa vida? Encontrar essa força do Sol, que está oculta na alma de cada um, essa força que nos ajudou a encarnar e que poderá nos ajudar a excarnar.
Essa recordação, vivência, pressentimento e conhecimento da realidade espiritual divina do mundo foi diminuindo no decorrer da história da humanidade e, quase já não existia a partir do século IX antes de Cristo. Já se passaram quase 3.000 anos desde que o conhecimento da realidade espiritual divina do mundo passou do estado de vivência para ser transmitido como ensinamento e tradição. Apenas alguns poucos indivíduos, a quem chamamos de iniciados, possuíam, sempre mais raramente, esse conhecimento a partir de vivências. A perda da vivência da realidade da vida, antes do nascimento e depois da morte, criou nas pessoas sempre mais o sentimento da separação, do abandono espiritual e do medo da morte.
Nós podemos hoje, com a ajuda da antroposofia, voltar a ter consciência para esses conhecimentos. Mas podemos agora, a partir do nosso pensar, procurar vivenciar a verdade desses conhecimentos, e não mais precisamos apenas acreditar nas tradições. Esse é um dos pensamentos mais importantes que hoje podemos vivenciar: que o Espírito do Sol, adorado pelas culturas antigas, é o Ser Divino que chamamos de Cristo. Pois quando a humanidade teve de perder a vivência da realidade espiritual divina para poder conquistar a liberdade, ela correu o risco de perder toda a ligação com a força do Sol, de não mais reconhecer o sentido da vida, de procurar a chama do Sol na própria alma, e assim, depois da morte, não ter mais a força de ascender às esferas das estrelas. Isso teria, como consequência, que as almas humanas, depois da morte, ficariam presas na esfera da Terra. Pelo amor infinito pelo ser humano, o Espirito do Sol, o Cristo, se colocou Ele próprio no caminho humano de se encarnar na Terra, de se unir a um corpo humano, com o Jesus, de tal forma que a humanidade pudesse reconhecer, no âmbito da Terra, o Espírito do Sol e, assim, despertar o impulso de procurar a chama solar divina no íntimo da própria alma, para que a alma do ser humano não ficasse aprisionada na esfera da Terra, na esfera temporal, mas conquistasse a força para, depois da morte, se elevar à esfera das estrelas, à esfera atemporal, à eternidade.
Nos três anos da vida do Jesus Cristo encarnado na Terra, temos como que a essência de todo o desenvolvimento da humanidade. Do Batismo até a Crucificação era possível que todos vivenciassem sensorialmente o Jesus e tivessem um pressentimento da presença do Cristo, do Espirito do Sol. Depois da Páscoa, somente os discípulos vivenciaram o Cristo ressurreto por meio de uma experiência sensorial espiritual. Mas, depois da Ascensão, eles perdem a possibilidade de vivenciá-Lo. São dez dias de um sentir-se abandonados, separados do Cristo, dez dias de um profundo sofrimento. Pentecostes é o momento em que cada um encontra a chama do Espírito em si mesmo. Esta chama tem sua origem no Espirito do Sol, no Cristo. Mas tem que ser encontrada individualmente, para então repousar sobre a cabeça de cada um.
O acontecimento histórico do nascimento, vida, morte e ressurreição do Jesus Cristo, que tem um significado para toda a humanidade, se repete na biografia de cada um de nós. Viemos das esferas das estrelas e fizemos o caminho pelas esferas dos planetas, do Sol, da Lua, até nascermos aqui na Terra. Isso foi possível pela força do Sol, pela força do Cristo. Nos primeiros três anos, essa força do Sol espiritual, do Cristo, atua a partir da periferia da criança e possibilita que ela aprenda as qualidades características do ser humano: conquistar o andar ereto a partir do próprio esforço, aprender a falar e a pensar. Mais ou menos aos três anos de idade, a criança fala pela primeira vez ‘eu’, se referindo a si mesma. Esse é o momento em que o Cristo deixa de atuar a partir da periferia, como o fez nos três primeiros anos, e uma pequena chama desse fogo solar penetra na criança, se ocultando na própria alma, e oferecendo a possibilidade de formar uma autoconsciência, para dizer, para ela mesma: ‘eu’. A pedagogia tem agora uma tarefa muito importante: ajudar a criança a desenvolver um anseio de procurar essa chama, em si mesma, alimentar a alma com impulsos espirituais, para que ela não se volte apenas à realidade material e sensorial do mundo, mas tenha a possibilidade de se recordar das vivências antes do nascimento, desenvolvendo o desejo de procurar o espírito divino em tudo e em todos. O ato cúltico para as crianças tem esse intuito e desperta a consciência de que o espírito divino vive e atua em tudo, nas pedras, plantas e animais, e também em nós. Assim, ajudamos a criança a reforçar o impulso com o qual nasceu: querer procurar o Espírito de Deus. Como adultos, nos ligamos com todas as tarefas que temos na vida, e com todos os desafios que o nosso destino nos traz. Mas a questão fundamental é se podemos sentir que o sentido da nossa vida está em procurar essa chama solar, esse Espírito de Deus, em tudo, em todos, e em nós mesmos. Podemos também dizer: procurar o Cristo em nós.
A imagem da chama, encontramos no Novo Testamento, no relato do acontecimento de Pentecostes: “E lhes apareceram umas línguas como que de fogo, que se distribuíam, e sobre cada um deles pousou uma”.  E temos essa imagem também na oração desta época no Ato de Consagração: “Olhais as flamas, são elas a revelação do Espírito”. A imagem da chama, do fogo, é uma imagem linda. Mas ela tem dois lados. Por um lado, uma chama gera luz e calor. Esse é o lado criador da chama. Mas uma chama, um fogo, consome, queima. O fogo, a chama, só é possível existir porque algo é consumido, queimado, sacrificado. Isso é uma realidade em todos os níveis. Quando acendemos uma vela, por exemplo na celebração do culto, temos a luz das velas que formam aquela atmosfera tão apropriada. Mas a vela apenas gera essa luz, e também calor, porque ela está queimando, se consumindo, sacrificando a sua substância. Aqui vemos uma realidade que está totalmente ligada à nossa consciência, à nossa autoconsciência, à consciência do nosso ‘eu’. A luz, o calor, que pode surgir dessa chama divina, que está oculta em nossa alma, a nossa autoconsciência, ela nos consome. Isso vemos no nível fisiológico. Acordamos de manhã com uma certa vitalidade. Vivemos o dia todo despertos, conscientes. Isso vai consumindo a nossa vitalidade, ficamos sempre mais cansados e temos então de dormir, perder a consciência, para revitalizar o nosso corpo. O que acontece a cada dia é um processo que vivenciamos também no decorrer da nossa biografia. Nascemos com muita força vital, tanto que nos é possível formar o corpo que então cresce e amadurece. No início da vida, o processo diário de desvitalização enquanto despertos e de revitalização enquanto dormimos, ainda gera um excesso de vitalidade. Mas no meio da vida, por volta dos 35-40 anos, a desvitalização vai superando a vitalização e entramos num caminho de envelhecimento que nos levará à morte. Por outro lado, nascemos com muita vitalidade, mas com pouca consciência, dormindo a maior parte do tempo. E, durante a vida, nos tornamos sempre mais conscientes, não só quantitativamente, mas, esperamos, também qualitativamente. A chama da consciência vai criando luz e calor anímico, e consumindo a vitalidade do corpo. O sentido desse processo é que, a partir da vida fisiológica que é consumida, criamos a possibilidade de formar na alma uma autoconsciência, e seguir um caminho de aprendizado, um caminho de autoconhecimento e autoeducação. Quanto mais avançamos em nossa biografia, mais reconhecemos que o processo de autoconhecimento e autoeducação é também um fogo que nos consome. Talvez a imagem que mais pode nos ajudar aqui, é ver esse processo como uma depuração, uma purificação. A purificação de minérios é feita nas usinas metalúrgicas pelo uso do calor, do fogo. O minério levado ao estado líquido pelo calor pode se separar das impurezas. Essa pode ser uma imagem para o processo que transpassa a alma quando, a partir do autoconhecimento, almeja um caminho de autoeducação. É necessário queimar, sacrificar determinados instintos, desejos, atitudes da nossa alma, para purificar o nosso ser do egoísmo, e criar, em nós, a luz e o calor que pode nos levar à formação da sabedoria e do amor.
Viemos das esferas das estrelas. Recebemos a força do Espírito do Sol, a força do Cristo, para nos encarnarmos. Pela sua força, em nossa periferia, aprendemos a andar, falar e pensar. Recebemos uma chama desse fogo no íntimo da nossa alma. Isso nos possibilita falar ‘eu’ de nós mesmos, formar uma autoconsciência, nos tornarmos individualidades livres. Mas esse caminho de nos tornarmos individualidades livres, nos leva naturalmente a nos tornarmos egoístas: separados da realidade espiritual divina e separados uns dos outros. Quanto mais individuais nós nos tornamos, necessariamente nos tornamos também mais egoístas. Se, nesse caminho, desenvolvemos um autoconhecimento, chegaremos um dia a reconhecer que somos egoístas e que esse caminho, de se tornar uma individualidade livre, nos leva a um ‘beco sem saída’, nos deparamos com um muro em nosso caminho: o meu próprio egoísmo me impede de ir à frente, e quanto mais me torno uma individualidade, mais egoísta me torno. Quem não se reconhece como um egoísta, ainda não se desenvolveu como individualidade ou não desenvolveu um autoconhecimento. E como superar o muro que nós mesmos formamos pelo nosso egoísmo? Uma possibilidade seria vê-lo como um beco sem saída e tentar voltar o caminho para trás. Isso significaria querer reverter o desenvolvimento da humanidade, perder a conquista de ser uma individualidade livre e almejar uma sociedade criada por relacionamentos determinados por leis, sem o respeito à liberdade do indivíduo, como foi no passado. Voltar para o passado não é possível, e se fosse, não faria sentido. O único caminho que faz sentido é, nessa imagem, pular o muro, ver se do outro lado do muro há um caminho que nos leva para frente. Mas de onde nosso eu egoísta pode ter a força de ‘pular o muro’? A única força que possibilita o desenvolvimento da individualidade, depois dela ter se tornada egoísta, é a força do sacrifício em liberdade. Não um sacrifício que seja a negação da individualidade, mas o sacrifício feito em liberdade, pela força da individualidade. Essa força do sacrifício é o que possibilita que o eu ultrapasse o egoísmo e, por assim dizer, ‘pule o muro’.
No Ato de Consagração escutamos as palavras no final do ofertório: “No sacrifício surja o fogo do amor criador de seres e a flama gere existência intemporal para que persista o bem”. Aqui temos novamente a imagem arquetípica da chama, a imagem de Pentecostes. Cada um tem uma chama sobre a sua cabeça. Mas como é gerada essa chama? A chama de Pentecostes é a chama que se forma quando o eu, pela força da sua individualidade livre, por ter encontrado a chama do Espírito do Sol, do Cristo, em si, consegue se sacrificar. A força do eu, de poder dizer ‘não eu’, é o que abre um espaço na alma para o outro, que nos eleva e possibilita receber a chama do Espírito, sanador do nosso próprio eu, sanador dos nossos relacionamentos sociais.

João F. Torunsky

Como vivenciar o Cristo no âmbito das nuvens?

Temos o relato sobre a Ascensão do Cristo no Novo Testamento, no Ato dos Apóstolos e, numa única frase, no Evangelho de Lucas. O Ato dos Apóstolos também foi escrito por Lucas. Assim, vemos que Lucas é o único que relata a Ascensão, apesar de não ter sido ele um discípulo do Jesus Cristo, mas de Paulo. Talvez este seja o motivo pelo qual Lucas tem a consciência da importância de relatar a Ascensão. Paulo também não foi um discípulo de Jesus Cristo. Muito pelo contrário, ele foi um inimigo do cristianismo e um perseguidor dos cristãos. O seu relacionamento com o Cristo ressurreto formou-se através da vivência que teve ao chegar na cidade de Damasco. Perante Damasco ele vivenciou o Cristo, não no âmbito sensorial terreno, mas num nível mais elevado, no nível chamado etérico. Desde a Ascensão pode-se vivenciar o Cristo nesse nível supras sensorial e Paulo foi o primeiro a vivenciá-Lo, como um precursor de um dom que todos nós poderemos um dia desenvolver. Lucas, como discípulo de Paulo, tem a consciência de que esta é a meta para a humanidade: enraizar o relacionamento com o Cristo a partir de uma vivência própria da sua realidade no etérico, e não apenas por meio de relatos históricos. Assim Lucas começa o seu relato com a Ascensão, despertando a atenção para essa meta, já no começo do caminho:

E, quando dizia isto, vendo-o eles, foi elevado às alturas, e uma nuvem o recebeu, ocultando-o a seus olhos. E, estando com os olhos fitos no céu, enquanto ele subia, eis que junto deles se puseram dois homens vestidos de branco. Os quais lhes disseram: Homens galileus, por que estais olhando para o céu? Esse Jesus, que dentre vós foi recebido em cima no céu, há de vir assim como para o céu o vistes ir.

Atos 1, 9-11

Neste relato podemos prestar atenção em três motivos.
O primeiro é que o Cristo „foi elevado às alturas“. Dessa elevação às alturas surge o nome que damos a este acontecimento: Ascensão. Ele é elevado a um nível superior ao nosso âmbito terrestre. Não está descrito que Ele foi „embora“ para o céu. Ele se eleva até o nível das nuvens. Aqui vemos o segundo motivo: „foi elevado às alturas, e uma nuvem o recebeu“. E devemos realmente tentar compreender aquilo que está descrito: „uma nuvem o recebeu“. Isso tem uma consequência para os discípulos, e vemos então o terceiro motivo: „ocultando-o a seus olhos“.
O Cristo foi elevado às alturas, recebido por uma nuvem e os discípulos não puderam mais vê-Lo. Além desses três motivos podemos ver que os discípulos vivenciaram os „dois homens vestidos de branco“, uma imagem para a vivência de anjos, que anunciam uma profecia: „Esse Jesus, que dentre vós foi recebido em cima no céu, há de vir assim como para o céu o vistes ir“. É a profecia da nova vinda do Cristo no etérico.
Para a compreensão da Ascensão é necessário procurar reconhecer o que é uma nuvem. A nuvem, neste relato, é uma imaginação. A compreensão do que é uma nuvem na natureza pode nos ajudar a perceber quais são as qualidades da esfera onde o Cristo se encontra, desde a Ascensão. Todos nós temos vivências de nuvens, quase todos os dias. A substância da nuvem é água. A nuvem é formada, não por vapor, mas por água líquida. O vapor de água determina a umidade do ar, mas não forma as nuvens. Quando o vapor se condensa em gotas minúsculas, formam-se então as nuvens. E a nuvem, apesar de ser formada por água liquida, consegue pairar no ar, entre a terra e o céu. A água que forma a nuvem estava antes na terra. No processo de evaporação a água se eleva para o céu. A água tem uma ascensão, forma as nuvens e volta para a terra como chuva. A chuva é uma benção para a terra, possibilitando que a vida se desenvolva. A água forma um ciclo: está na terra correndo das montanhas até o mar, evapora e se eleva ao céu, forma as nuvens, cai como chuva para a terra trazendo uma benção para a vida e renovando o ciclo.
Na sua descrição, Lucas usa essas qualidades da água como uma imaginação para a Ascensão do Cristo: Ele se elevou ao céu, foi recebido por uma nuvem e voltará do mesmo modo como se elevou. A água possibilita a vida na Terra, e o Cristo se elevou para essa esfera da fonte e renovação da vida: para a esfera do etérico.
O Cristo, no momento do batismo, se ligou com o corpóreo do Jesus, se encarnando assim na Terra. O Cristo teve um corpo humano durante os três anos. Mas antes desse processo de encarnação num corpo humano, o Cristo, como ser cósmico, possuía uma outra corporalidade, um corpo cósmico. O Sol foi a sua corporalidade, e por isso podemos falar do Cristo como o espírito do Sol e, como tal, ele foi percebido e adorado por culturas antigas. Depois da Ressurreição houve um tempo de desenvolvimento do corpo do Ressurreto, de 40 dias e, na Ascensão, Ele se liga com toda a Terra, com a esfera etérica da Terra, com o âmbito das nuvens. A Terra se torna o seu corpo. No etérico da Terra, no âmbito das nuvens, podemos agora ter o encontro com o Cristo. Assim como o Cristo ao ser acolhido pela nuvem se oculta aos olhos dos apóstolos, Ele também está oculto para a nossa percepção enquanto não desenvolvemos a possibilidade de perceber a realidade do etérico.
Podemos agora ver como esses motivos da Ascensão se refletem na oração falada no Ato de Consagração do Homem nesta época, na Epístola da Ascensão. Para aqueles que conhecem o Ato de Consagração será uma possibilidade de recordar essas palavras, para os que não o conhecem pode ser um incentivo para um dia conhecê-lo.
Quando escutamos: „Olhamos pela força vidente do coração Sua elevação ao céu para a terra“, encontramos na palavra „elevação ao céu“ o motivo da Ascensão. Mas se trata de uma elevação ao céu para a terra.
No Cristianismo se formou a ideia de que, com a Ascensão, o Cristo se afastou da Terra e está, desde então, sentado à direita de Deus. Disso decorre o sentimento de que ele foi embora, não está mais conosco. Esse não é o sentimento adequado perante o Cristo. Ele não foi embora, mas está presente no nosso dia a dia, elevado a um nível superior ao terrestre. Está oculto para os nossos órgãos sensoriais terrestres, mas seria visível para um novo órgão de sentido: a força vidente do coração. Existe a possibilidade de que o coração se torne um órgão do sentido, para o âmbito das nuvens, entre céu e terra.
Um pouco mais adiante, na Epístola, escutamos as palavras: „Vive na terra, transfigurando a terra com o céu. … Ele habite conosco, habitando contigo“. O que levou à ideia de que o Cristo no céu está separado de nós tem a ver com a formação da ideia do dualismo: que existem no mundo duas realidades, o céu e terra, ou o mundo espiritual e o mundo material, e que esses dois mundos estão separados um do outro. Assim, nessa dualidade, alguém ou está no céu, ou está na terra; ou está com Deus ou está conosco. Isso não reflete a realidade do mundo, mas somente a consciência que foi formada a partir dessa dualidade. A realidade é que temos apenas um mundo, com dois lados: o lado sensorial, determinado pelos nossos órgãos dos sentidos, e o lado supras sensorial, o qual não temos a possibilidade de perceber, enquanto não desenvolvermos um órgão do sentido apropriado. O Cristo está unido ao céu e à terra, „vive na terra, transfigurando a terra com o céu“, e se encontra tanto com Deus, como conosco: „Ele habite conosco, habitando contigo“.
Temos duas tarefas para chegarmos ao âmbito da realidade da Ascensão, ao âmbito das nuvens. Em nosso pensar temos de superar o dualismo, a convicção de que existem dois mundos separados um do outro, céu e terra. A realidade é que temos dois lados do mundo: o espiritual e o material. A ponte entre esses dois lados, que possibilita que o lado espiritual do mundo atue no material, e que o lado material do mundo seja uma expressão do espiritual, é a esfera etérica. O que chamamos de etérico são as forças que ligam o espiritual ao material e possibilitam, assim, a vida. Todo processo vital é uma ligação entre a ideia espiritual do ser que quer se revelar, e a substância da Terra que é colocada em processos vitais, formando um corpo, para que seja uma revelação deste ser. O que possibilita que isso seja possível são as forças etéricas. Esta é a nossa primeira tarefa: superar o dualismo e começar a pensar como a vida se forma, como o etérico atua. Sem superar o dualismo em nosso pensar não é possível chegar ao nível do Cristo no etérico. Nossa segunda tarefa é desenvolver o nosso coração, para que se torne um órgão do sentido para o etérico. Para isso temos de superar a subjetividade e o sentimentalismo do nosso sentir e procurar sentir de uma forma objetiva. Superando o dualismo em nosso pensar e o subjetivismo em nosso sentir podemos nos aproximar da realidade da Ascensão.
Numa segunda oração, escutamos no Ato de Consagração as palavras: „Olhamo-no com os olhos da nossa alma no âmbito das nuvens, abençoando o âmbito da terra“. A benção que vem do Cristo é como a chuva que vem das nuvens. Com os olhos da alma, ou com a força vidente do coração, podemos olhar o Cristo no âmbito das nuvens abençoando o âmbito da terra. A pergunta que surge é: como podemos desenvolver este olhar, esta força vidente do coração, para percebê-Lo no âmbito das nuvens?
Esta foi a vivência do apóstolo Paulo em Damasco: ele vivenciou o Cristo no âmbito das nuvens, no etérico.
Um caminho para essa vivência seria a tomada de consciência de que, na criação, existem vários níveis, vários reinos. Temos o reino mineral, o reino vegetal, o reino animal, o nosso reino humano e o reino dos anjos, das hierarquias. Mas podemos também prestar atenção a uma realidade intermediária que existe entre os reinos. Por exemplo, nós conhecemos pedras e conhecemos também plantas. Podemos direcionar a nossa atenção para as pedras, ou para as plantas, mas podemos também prestar atenção para a qualidade que surge no encontro da planta com a pedra, do vegetal com os minerais. O que acontece quando uma raiz cresce no interior da terra e encontra os minerais? O que acontece quando a água, que é um mineral, corre por um riacho e na margem deste cresce um musgo, que sempre é tocado pela água? Como podemos sentir uma gota de orvalho repousando na folha de uma grama? Ou no encontro entre o reino vegetal com o reino animal: o que acontece quando uma abelha toca uma flor? Quando uma vaca come um bocado de grama? Ou no encontro entre o reino animal e nós, seres humanos: O que acontece no relacionamento do pastor com suas ovelhas? Do vaqueiro com o seu cavalo? De tantas pessoas que vivem num apartamento com o seu animal de estimação? Qual responsabilidade surge ao formarmos relacionamentos com os animais? O nosso dia a dia é formado por encontros sociais. Que qualidade criamos no encontro entre nós? Num encontro podemos ter a consciência de nós mesmos e do outro. Mas temos a consciência da qualidade que está se formando entre nós, independente de como nos sentimos subjetivamente? Ou ainda, podemos tentar sentir: o que acontece no relacionamento que nós, seres humanos, temos com os anjos?
Prestar atenção para o que acontece entre os reinos significa exercitar a possibilidade de descobrir a realidade do âmbito das nuvens, o que acontece entre nós, entre céu e terra. Esse reino intermediário é o reino do Cristo, a realidade que surge no encontro. Cada ser, seja uma pedra, uma planta, um animal, um ser humano ou um anjo, tem em si uma essência espiritual. Essa realidade espiritual é a gota divina que recebemos do Deus Pai na criação. Mas no encontro entre seres, entre os reinos, e principalmente entre nós, se forma uma nova realidade espiritual. No âmbito do encontro, no âmbito intermediário, no âmbito das nuvens, nos ligamos com o âmbito do Cristo. Na procura de reconhecer a realidade espiritual em cada ser e no encontro entre os seres, nos ligamos com o Deus Espírito. A atenção e a responsabilidade para a qualidade do que se forma entre nós pode se revelar como uma benção para todos os nossos relacionamentos sociais.
Temos de superar o dualismo e o subjetivismo, e direcionar a nossa atenção para a qualidade do encontro. Disso pode se desenvolver a força vidente do nosso coração e nos levar a vivenciar o Cristo no âmbito das nuvens, no etérico, assim como Paulo vivenciou o Cristo ressurreto em Damasco.

João F. Torunsky

Fé – Amor – Esperança

O significado espiritual das virtudes cristãs – Resumo da terceira palestra

 

“A natureza faz de nós seres naturais e a sociedade, seres sociais. Somente por nós mesmos podemos nos tornar individualidades livres.”

Rudolf Steiner

Como adultos temos a responsabilidade pelo nosso próprio desenvolvimento, num caminho de autoconhecimento e autoeducação. Na infância e na adolescência desenvolvemos os nossos corpos. E, como vimos nas duas primeiras palestras, os corpos que temos e os seus desenvolvimentos têm a ver com as forças da fé, do amor e da esperança. Como adultos desenvolvemos a nossa alma, nos seus diferentes níveis. Num primeiro nível, a nossa alma estabelece uma relação com o mundo a partir das percepções. Temos em nosso corpo os órgãos dos sentidos. Por intermédio desses órgãos percebemos o mundo ao nosso derredor, mas também o nosso próprio corpo e os seus processos. Percebemos as cores, os tons, os paladares, os odores, as qualidades sensoriais na natureza. Mas percebemos também se temos fome ou sede, sentimos frio ou calor, se estamos dispostos ou cansados. Normalmente se fala de cinco órgãos dos sentidos, mas de uma forma mais profunda se pode dizer que são doze. O fato de termos órgãos dos sentidos possibilita que nossa alma não esteja prisioneira dentro de si mesma, que ela pode ter um relacionamento com aquilo que sentimos existir fora de nós. Os órgãos sensoriais são como janelas pelas quais podemos nos relacionar com o mundo. As sensações entram em nossa alma e nós reagimos com sentimentos. Mas não são apenas as sensações que entram em nossa alma. Como que do fundo da alma, de uma esfera que nos é totalmente inconsciente, emergem instintos, desejos, impulsos, que também preenchem a nossa alma. A alma se preenche com tudo o que recebe, e reage com sentimentos. Esse primeiro nível da alma é denominado a alma da sensação. Independente do nome que damos a esse nível da alma, todos nós temos a experiência da sua realidade. Podemos observar como a nossa alma é permeada pelas sensações que temos do mundo e de nós mesmos, como surgem os desejos, afetos, impulsos evolutivos, e como nossa alma reage a tudo isso por meio de sentimentos. Podemos perceber que aqui surge um primeiro nível da nossa consciência desperta: a consciência do que percebemos e a vivência dos sentimentos que isso provoca em nós. Esse nível de consciência temos comum com os animais. O que então acontece, nesse nível de consciência, é que surge a tendência de reagir àquilo que vivenciamos. Temos sensações, surgem sentimentos e temos a tendência de reagir. Assim também acontece no reino animal. A partir de uma sensação surge no animal uma reação. A diferença entre nós e os animais, é que nessas reações instintivas que atuam no reino animal há uma grande sabedoria. Os instintos dos animais são repletos de sabedoria. O mesmo não podemos dizer sobre os nossos instintos e reações. A perda dos instintos sábios é necessária para que possamos desenvolver a liberdade. Esse impulso, da alma reagir instintivamente àquilo que percebe, pode ser um grande problema para nós. Pode se tornar algo inadequado e até mesmo destrutivo. Podemos ver que as pessoas são diferentes entre si e têm, por exemplo, diferentes temperamentos, reagindo, assim, de diferentes formas a uma mesma situação. Um colérico pode às vezes perder o controle, ser possuído por uma raiva e reagir com agressão, o que pode chegar a tornar-se destrutivo. Já um melancólico, talvez na mesma situação, reaja de uma forma oposta, se retirando, e ser tomado por uma tristeza e uma força destrutiva que se volta para dentro, chegando mesmo a uma depressão. É nesse ponto que podemos elevar a nossa alma a um nível humano. Podemos observar como a nossa alma reage àquilo que vivencia. A partir da força da nossa individualidade, da força do nosso eu, podemos aprender a controlar as nossas emoções, a controlar as nossas reações. Aqui começa o caminho do autoconhecimento e da autoeducação. Aprender a controlar as nossas emoções não significa olhá-las como algo negativo. O problema está em reagir de um modo instintivo. As emoções em si podem nos ajudar a conhecermos a nós mesmos, quando nos perguntamos: por que reagimos desta ou daquela maneira? Por exemplo, por vezes uma reação colérica tem a ver com um sentimento de que algo não está correto, não é verdadeiro ou mesmo não é justo. Temos de aprender a controlar a reação colérica, mas ela pode despertar nos para o fato de que temos em nós um sentimento do que seria o correto, o verdadeiro, o justo. Muitas das nossas emoções surgem porque existe em nós um sentimento para os ideais humanos mais elevados. A reação instintiva pode ser destrutiva. Mas a conscientização da origem elevada de um ideal, do qual surge a emoção, pode nos orientar para aquilo que traz um sentido à nossa existência e, se atingimos uma serenidade, podemos, a partir do controle da emoção, direcionar as nossas ações de uma forma que possamos servir de uma forma construtiva aos ideais que vivem em nós. Isso não significa que temos de atuar sempre de uma forma mansa, sem emoção. A pergunta deve ser: o nosso modo de agir é uma reação instintiva a partir de emoções ou a emoção nos desperta para algo importante e, a partir da nossa individualidade, atuamos de modo que pode exigir uma atitude colérica. No Evangelho há um relato arquetípico: quando Jesus Cristo percebeu que o templo estava sendo usado como um mercado de venda, compra e câmbio, Ele, de uma forma colérica, expulsa a todos. Não se trata de uma reação emocional. Se trata do reconhecimento que o sagrado está sendo profanado e da necessidade de reestabelecer a função primordial do templo.
A partir do autoconhecimento em relação às nossas emoções, e da autoeducação, aprendendo a controlar as emoções e despertando para os ideais humanos, que nos provocam as emoções muitas vezes inconscientes, podemos sempre mais direcionar as nossas ações para algo que faça sentido, que seja construtivo. Estamos assim no âmbito das forças da esperança, do ponto de vista de que a esperança é a convicção que algo tem um sentido, independente do que acontecerá. Se procuramos atuar de uma forma que faz sentido, estamos criando a base para podermos ter esperança. Para podermos desenvolver um autoconhecimento em relação às nossas emoções, a nossa alma já tem que se elevar a um nível superior à alma da sensação. Temos que ter a possibilidade de pensar, refletir sobre o que estamos vivenciando, analisar, reconhecer o que está acontecendo. O pensar que temos no nível da alma da sensação, possui um caráter mais associativo e, assim, ele também é uma reação àquilo que vivenciamos. Necessitamos de um pensar mais racional, que seja também mais controlado pela nossa individualidade, pelo nosso eu. Esse nível mais elevado da alma todos nós temos e conhecemos. Todos nós temos uma determinada forma racional de pensar e a possibilidade de procurar reconhecer o que vivenciamos. Nesse nível da alma formamos os nossos próprios pensamentos sobre o mundo e sobre nós mesmos, e nos conscientizamos dos nossos próprios sentimentos, de nossa maneira de ser, do nosso temperamento. Esse nível da alma tem dois lados: um lado mais racional, e um lado mais emocional. Por isso, esse nível é denominado alma da razão ou da índole. Criamos aqui dois universos próprios: o universo dos nossos pensamentos, opiniões, pontos de vistas, e o universo dos nossos sentimentos, do nosso caráter, temperamento, nosso modo de ser. Nesses universos interiores se enraíza a nossa autoconsciência, a convicção e o sentimento de que somos um eu. O problema que surge aqui é que esses “universos particulares” têm a tendência de se separarem do mundo e dos outros. Surge aqui a consciência da dualidade entre sujeito e objeto. Aqui sentimos que estamos dentro de nós, e o mundo e os outros estão fora de nós. Essa separação nos dá a possibilidade de desenvolver a liberdade, mas nos torna egoístas. Recebemos as sensações do mundo, reagimos com nossos sentimentos, e formamos um espaço anímico individual, próprio, separado do mundo. Corremos o risco de colocar as nossas opiniões, os nossos pontos de vista, os nossos sentimentos, o nosso modo de ser, como o correto, como a única possibilidade, como a verdade. A tarefa que temos quando desenvolvemos a alma da razão e da índole é procurar a verdade, mas o perigo é nos sentirmos os donos da verdade. A procura da verdade nos leva a um autodesenvolvimento, e a convicção de que somos donos da verdade nos torna intolerantes, antissociais, egoístas. No primeiro nível da alma temos de aprender a controlar as nossas emoções. Agora temos que ir o caminho de procurar a verdade, superando a convicção de que já somos donos da verdade. Existe uma verdade, e estamos a caminho de procurá-la, mas temos que reconhecer que aquilo que alcançamos é somente um aspecto da verdade, e que sempre podem existir outros. O outro tem o seu pensamento, o seu ponto de vista, o seu sentimento, que pode ter um aspecto da verdade, às vezes muito distinto do meu. A procura da verdade exige o interesse pelo modo de pensar e de sentir do outro, o impulso de querer entender como o outro pensa, como ele sente. Isso nos leva a superar a intolerância, de nos tornarmos sociais, de superar o egoísmo, a partir do interesse pelo outro. A compreensão do modo de pensar e sentir do outro e o respeito pela sua liberdade, formam a base para aprender a amar. Assim como o trabalho do eu, na alma da sensação, forma a base para a esperança, o trabalho do eu, na alma da razão ou da índole, forma a base para o amor.
Nos níveis da alma da sensação e da alma da razão ou da índole, temos relacionamentos com o mundo e com as outras pessoas. Para termos um relacionamento com o mundo espiritual temos de elevar a nossa alma um nível ainda mais superior. No nível da alma da sensação temos um relacionamento com aquilo para o qual possuímos um órgão dos sentidos. Isso determina o que é para nós o mundo sensorial. No nível da alma da razão ou da índole podemos ter pensamentos e sentimentos sobre o mundo sensorial, com o qual temos um relacionamento. Podemos também ter pensamentos e sentimentos sobre o mundo espiritual, mas ainda não temos, realmente, um relacionamento. Os pensamentos possuem a tendência de serem abstratos, e os sentimentos de serem emocionais, se nos falta a vivência real. O que nos possibilita ter um relacionamento consciente, racional, com o mundo espiritual é o nosso pensar. Mas o nosso pensar, normalmente, ou é incentivado pelas percepções sensoriais, tendo o desejo de reconhecer aquilo que vivenciamos, ou se torna abstrato, desenvolvendo algo que não tem nada a ver com uma realidade. Aqui nos deparamos com um paradoxo: é possível formar um relacionamento com algo do qual não temos percepções? Que, não apenas para os nossos olhos, nos é invisível? A experiência, que todos podemos fazer, está em formar pensamentos sobre o mundo espiritual que ainda não vivenciamos. Esses pensamentos são, no início, abstratos e não são ainda uma expressão de um relacionamento real. O pensar em si não tem a possibilidade de se elevar a um relacionamento real com o mundo espiritual. Ele necessita de um impulso, e esse impulso ele pode receber do nosso sentir e do nosso querer. Aquilo de que o pensar não é capaz, o sentir e o querer podem realizar: formar um relacionamento real com algo desconhecido, “invisível”. No pensar formamos um conteúdo ainda abstrato sobre o espiritual divino. Agora podemos desenvolver, a partir dos nossos pensamentos, um sentimento e uma vontade de querermos nos unir com este espiritual divino. A nossa vontade pode desenvolver a atitude da entrega, o nosso sentir pode desenvolver um amor pelo “invisível”, oculto das nossas percepções. O fluir conjunto dessa vontade de entrega com o amor pelo espiritual divino é o que podemos chamar de devoção. Esse nível da alma, onde procuramos de novo um relacionamento com mundo e com os outros, agora não apenas no âmbito sensual, mas no âmbito espiritual divino, chamamos de alma da consciência. A tarefa que temos na alma da consciência é desenvolver a devoção, a vontade da entrega ao espiritual divino, e o amor por ele. O perigo que corremos nesse nível da nossa alma é desenvolver o impulso da entrega na nossa vontade, e o amor para o espiritual divino em nosso sentir, sem chegar a conquistar para o nosso desenvolvimento, o pensar racional e a força de uma individualidade em liberdade. Desenvolver um impulso de entrega sem o respeito à própria individualidade significa anular o próprio eu. Poderíamos estabelecer um relacionamento real com o espiritual, mas perderíamos o nosso próprio eu. Desenvolver um amor pelo espiritual divino que não leve à conquista de um pensar racional, nos conduziria a um entusiasmo exagerado e a formação de crendices. Nos tornaríamos escravos de uma realidade espiritual, com uma qualidade arimânica em nossa vontade ao servir uma vontade alheia, e uma qualidade luciférica em nosso sentir ao viver em ilusões. A frase do apóstolo Paulo: “Não eu, mas Cristo em mim”, não significa a anulação do nosso eu, mas, muito pelo contrário, uma entrega e um amor pelo Cristo, que só pode ser conquistado pela força do eu. A tarefa que temos no nível da alma da razão é desenvolver a devoção na qualidade do eu: pela entrega e pelo amor ao espiritual divino. Assim como o trabalho do eu, na alma da sensação, forma a base para a esperança, o trabalho do eu, na alma da razão ou da índole, forma a base para o amor. E o trabalho do eu, na alma da consciência, forma a base para a fé.
As forças da fé, do amor e da esperança atuam como forças formadoras nos nossos corpos físico, etérico e astral. Eles nos acompanham em nosso desenvolvimento, na infância e na juventude. Como adultos temos a tarefa de controlar as nossas emoções, superar o egoísmo e, a partir do nosso eu, desenvolver a devoção, para que a fé, o amor e a esperança nos levem à união com o divino: no mundo, no outro, em nós mesmos.

João F. Torunsky

Da carta do apóstolo Paulo aos coríntios, capítulo 13

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.
E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria. O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal;
Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;
Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá;
Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos;
Mas, quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado.
Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.
Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido.
Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor.

Fé – Esperança – Amor

O significado espiritual das virtudes cristãs – Resumo da segunda palestra

Vimos na última palestra que os nossos corpos são portadores das virtudes cristãs. O corpo astral, anímico, é o portador das forças da fé; o corpo etérico, vital, é o portador das forças do amor; e o corpo físico é o portador das forças da esperança. Agora queremos olhar para três passos que fazemos quando nos encarnamos, nascemos aqui na Terra. Abordaremos alguns pontos de vista dados por Rudolf Steiner para a Pedagogia Waldorf. Vale a pena ressaltar que toda a educação é sempre uma autoeducação, do nascimento até a morte. Assim, os pontos de vista da pedagogia nos ajudarão mais tarde a ver o que necessitamos como adultos nesse caminho de autoeducação.
O início da nossa biografia se dá no momento em que nascemos. Nos desenvolvemos então em três etapas, cada uma de sete anos, durante a infância e a juventude. Fala-se assim dos três setênios, até os 7 anos, até os 14 anos e até os 21 anos de idade. O final do primeiro setênio é caracterizado pela troca dos dentes, o do segundo pela maturidade sexual e o terceiro pelo início da idade adulta. Um ponto de vista que pode muito nos ajudar a entender o desenvolvimento é olhar para essas três etapas como três nascimentos. Que nascemos no início da nossa biografia, isso nos é evidente. Mas o que realmente nasce nesse momento é apenas o nosso corpo físico. E, como já falamos anteriormente, podemos falar de outros dois corpos. Assim, também o corpo etérico e o corpo astral passam por um processo de nascimento. Aos 7 anos de idade podemos falar do nascimento do corpo etérico e aos 14 anos do nascimento do corpo astral. Falar de nascimentos tem a sua justificativa pois nos referimos a corpos. Corpo é como chamamos aquilo que se separa do contexto amplo com o qual estava ligado, adquire a possibilidade de receber uma vida própria e então, separado do todo, pode se desenvolver de maneira independente. Assim, nosso corpo físico se forma no íntimo do organismo materno, recebe uma vida, e quando se separa da mãe para ter um desenvolvimento independente, falamos do nascimento do corpo físico. Do mesmo modo, mesmo que não seja tão evidente, acontece uma emancipação do corpo etérico aos 7 anos e do corpo astral aos 14 anos, e por isso podemos falar do nascimento desses corpos nestas idades.
O corpo físico, como portador das forças da esperança, nasce no início da nossa vida; o corpo etérico, como portador das forças do amor, nasce aos 7 anos; o corpo astral, anímico, como portador das forças da fé nasce aos 14 anos. Assim poderíamos logo pensar que o primeiro setênio tem a ver com a esperança, o segundo com o amor e o terceiro com a fé. Este seria o caminho de um raciocínio esquemático. Mas de um ponto de vista pedagógico o que a criança mais necessita desenvolver, como uma atitude anímica, traz um outro aspecto.
No primeiro setênio a mais importante atitude anímica que deveria ser desenvolvida é a gratidão. A criança pequena se orienta no seu desenvolvimento pela imitação. Ela nos imita nos gestos anímicos que reconhece em nós. Assim, para que a criança possa desenvolver a gratidão, nós temos que ter verdadeiramente gratidão. Não se trata apenas de ensinar à criança que ela deve agradecer verbalmente, a expressar gratidão. Se trata de nós mesmos, enquanto adultos, sentirmos verdadeira gratidão e sermos os exemplos que as crianças possam imitar. A gratidão que vai crescendo na alma da criança passa por uma metamorfose, se transforma em admiração, em veneração, se torna uma religiosidade. Não se trata de sentimentos, mas de uma atitude que se expressa no próprio corpo da criança e que atinge o seu auge em um amor para tudo, pelo divino no mundo. A criança desenvolve, a partir da gratidão, um relacionamento de confiança, de fé. Nem sempre isto acontece, mas seria o desenvolvimento saudável da criança. O corpo físico, portador das forças da esperança, nasce e se desenvolve nos primeiros sete anos. Animicamente, a criança desenvolve a gratidão que se transforma em confiança e fé. Aqui notamos que a pedagogia tem uma tarefa ainda não tão reconhecida: ela tem a tarefa de sanar. Pelo senso comum entendemos que a tarefa do médico é sanar, e a do professor, ensinar. De um ponto de vista espiritual, o médico deveria ajudar a criança para que ela possa aprender e o professor a atuar para que ela tenha saúde. Podemos pensar que, no caminho da encarnação, a ligação da alma com o corpo físico é essencial, mas pode se tornar excessiva, como que indo além da sua meta. A pedagogia tem a tarefa de ajudar a encontrar um equilíbrio nessa ligação. A esperança, que está ligada com o corpo físico, recebe da pedagogia um impulso em direção à força da fé. A fé e a confiança, enraizadas na gratidão, ajudam a criança no equilíbrio do processo de se ligar ao corpo físico.
Aos sete anos a criança entra num novo período: falamos do nascimento do corpo etérico, vital. O que a criança necessita desenvolver nesta fase? O corpo etérico é o portador das forças do amor. A pedagogia tem a tarefa de despertar na alma da criança as forças do amor que já estão ligadas inconscientemente ao seu corpo etérico. O corpo etérico está em equilíbrio entre o físico e o anímico e não necessita de uma outra força polar para encontrar o seu equilíbrio. Necessita despertar a força de amor que já tem em si. A criança traz da primeira infância as forças de confiança, de veneração, que se formaram a partir da gratidão. É uma experiência muito tocante ter o encontro com as crianças do primeiro ano escolar, quando elas no Ato Dominical falam: „Eu quero procurar o Espírito de Deus. “ Com esta atitude religiosa a criança inicia o caminho na escola. A tarefa agora é ajudar a criança a despertar sempre mais a força do amor, expressa na simpatia a tudo o que é bom e belo, e antipatia por tudo o que é mal e feio. A criança se orienta por adultos que reconhece, de uma maneira natural, como autoridades. Já não aprende pela força da imitação, como na primeira infância, mas recebe a orientação pelos gestos morais que vivencia em tudo o que fazemos ou falamos. Percebe o significado verdadeiro das coisas. Não o significado intelectual, mas o significado anímico espiritual, o significado moral. O que é bom, e o que é mal? O que é belo, e o que é feio? Temos uma grande responsabilidade de não transmitir a nossa opinião subjetiva das coisas, mas tentar transmitir valores humanos. Não se trata de ensinar normas, regras, mas de direcionar as forças da simpatia e antipatia, de despertar as forças do amor. A criança vai desenvolvendo o amor pela natureza, depois pelas outras pessoas, pelos amigos, até que chega ao âmbito do corpo na maturidade sexual.
Aos 14 anos falamos do nascimento do corpo astral. As forças do amor, que se desenvolveram no segundo setênio, estão agora livres como simpatia e antipatia, e como maturidade sexual. O jovem começa o caminho de procurar um sentido na vida, de procurar os seus ideais, de procurar a si mesmo. O corpo astral, como corpo da fé, procura relacionamentos anímicos, necessita de uma orientação espiritual. O nascimento do corpo astral, do mesmo modo que o nascimento do corpo físico, necessita de ajuda para alcançar um equilíbrio. Surge o risco de se ligar em demasia com o anímico espiritual, no âmbito das simpatias e antipatias. A pedagogia tem a tarefa de proporcionar um equilíbrio, ajudando o jovem a desenvolver uma dedicação ao atuar no âmbito físico, a desenvolver o amor pelo trabalho, pelas obrigações e ao compromisso que ele mesmo se impõe, ou que a vida lhe traz. É importante para o jovem superar o impulso de ter simpatia apenas por aquilo que no âmbito físico lhe é agradável, que traz prazer; assim como superar a antipatia por aquilo que é desagradável, que traz sofrimento. O corpo físico traz a possibilidade de fazer algo aqui na Terra, de trabalhar no mundo. No momento que o corpo astral nasce e a alma desperta para a procura de um sentido para a vida, o jovem necessita de ajuda para desenvolver o amor pelo trabalho e a força de vontade para atuar no mundo. O que se pode encontrar como meta da vida, como os próprios ideais, necessita criar raízes na Terra. É preciso descobrir que vale a pena atuar no mundo, trabalhar no mundo, para criar um futuro. Para isto é necessário ter uma esperança nesse futuro, reconhecer um sentido para esse futuro, para desenvolver o amor pelo trabalho, se tornar ativo e que que cada um realize a sua contribuição nesta vida. O nascimento do corpo da fé necessita do equilíbrio pelas forças da esperança, encontrando um sentido na vida e desenvolvendo o amor pelo atuar no mundo.
A partir dos 21 anos entramos no caminho da vida como adultos. Todos temos, a partir de então, os nossos corpos desenvolvidos. Aquilo que na pedagogia foi uma orientação para ajudar as crianças e os jovens, pode continuar sendo uma orientação para a nossa própria autoeducação. Também como adultos precisamos desenvolver a gratidão, o amor e o impulso de atuar no mundo. Da gratidão pode surgir relacionamentos de confiança e fé. Do amor pode surgir a responsabilidade pela natureza e pelos outros. Do impulso de atuar no mundo pode surgir a esperança num futuro que faça mais sentido.

João F. Torunsky

Fé – Esperança – Amor

O significado espiritual das virtudes cristãs

Na primeira carta de Paulo aos Coríntios encontramos a frase muito conhecida: “Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor” (cap. 13, 13). Esta frase está num contexto maior. Vale a pena ler os capítulos 12 e 13. No capítulo 12 Paulo desenvolve a ideia do Cristo como o corpo e de nós, com os nossos distintos dons, como os membros desse corpo. No capítulo 13 temos a descrição do caminho do Amor que, no último versículo, chega à denominação das três virtudes:  fé, esperança e amor.

O que é fé?
Fé é uma expressão de um relacionamento. No idioma português temos a vantagem de termos duas palavras para o que, por exemplo, no idioma alemão só temos uma palavra. Temos fé e crença, e em alemão somente Glaube. Mas fé não é o mesmo que crença. Isto se torna muito claro quando dizemos que temos fé em alguém. Se uma pessoa está diante de um desafio e nós a conhecemos bem, sabemos das possibilidades que ela tem, podemos dizer que temos fé nessa pessoa, confiamos que ela vai conseguir superar o desafio. A fé é a expressão de um relacionamento que se enraíza num conhecimento, numa vivência de algo real. A partir dessa vivência podemos ter confiança em alguém ou em algo, termos fé. 
Todos nós temos fé. Não necessariamente num sentido religioso. Mas no sentido de vivenciar algo como real, ter um relacionamento com esta realidade, ter confiança, ter fé. Um dos níveis em que hoje em dia existe a maior fé é a confiança na técnica. Todos nós andamos de carro e confiamos nele. Provavelmente nem todos já viram qual é a espessura do eixo da roda de um carro. É realmente uma questão de confiança, acreditar que esses quatro eixos de metal podem nos dar alguma segurança quando viajamos a 120 km/h. E quanta fé na técnica é necessária para voarmos em um avião! No entanto, a experiência nos mostra que, quando ocorre um acidente, a nossa fé na técnica é abalada.
Outro nível em que hoje temos muita fé é com a ciência. No momento estamos vivenciando uma grande crise com o corona vírus. A grande maioria dos responsáveis políticos estão orientando suas decisões pela confiança na ciência, na medicina, nos virologistas. Poucos não se orientam pela opinião vigente da ciência e, quando isso ocorre, surge o conflito entre aqueles que tem fé na ciência e aqueles que não a tem. 
E obviamente existe também o nível religioso que, no Brasil com todos os movimentos religiosos que existem e surgiram nas últimas décadas, é muito grande. 
Com a fé podemos ver que existem dois problemas. O primeiro é realmente conhecer a diferença entre fé e crença. Crença é acreditar em algo que eu não tenho uma vivência. Apesar de não vivenciarmos esse algo passamos a acreditar nele de uma forma dogmática. A fé, como expressão de um relacionamento, tem que se basear numa vivência. O segundo problema que temos é o modo de pensar materialista que se difundiu na humanidade. E, desse ponto de vista, as vivências são aceitas apenas quando se relacionam com a matéria. O materialismo é uma crença, talvez a maior crença da nossa época: acreditar, por um dogma, que não existe nada além da matéria. Os relacionamentos, assim como a ciência, sempre têm algo a ver com fé e crença. Não que isso seja algo negativo. Temos que superar a crença pelo conhecimento, mas também temos que ter fé naquilo que conhecemos. Sem um relacionamento de fé com o conhecimento, este se mantém abstrato, teórico, não tem a força de mudar a nossa vida e nos transformar. Temos que desenvolver o conhecimento, acreditar naquilo que sabemos e não restringir a validade das vivências e do conhecimento ao âmbito material, ampliando o horizonte para o espiritual. A fé em algo transcendente, enraizada em vivências individuais, é necessária para a nossa alma. Sem uma fé que transcende o material a nossa alma enfraquece, se torna anêmica. A anemia espiritual não é algo que se nota de imediato, é algo que se torna, no decorrer das décadas, não um fato apenas individual, mas um fenômeno social. Tal ponto de vista pode nos ajudar a entender alguns fenômenos da nossa atualidade.

O que é amor?
Um ponto de vista de ver o amor é que se trata de uma força criadora. É a força original de toda a criação. Toda a criação do mundo tem sua origem numa fonte de amor, na força do amor Divino. A força do amor se torna a força positiva de sacrifício, que gera o calor, que cria a luz, que possibilita a vida, que se condensa em substância terrestre, em matéria. De um ponto de vista espiritual a matéria surge a partir da vida, e não o oposto. Tanto no Gênesis quanto no Prólogo do Evangelho de João podemos reconhecer estes passos.
Todos temos em nós a força do amor, assim como a força da fé. Desde o nascimento carregamos instintivamente a força do amor. Uma das formas mais básicas do amor está relacionada com a sexualidade, o instinto sexual. Este instinto sexual encontramos também no reino animal, e serve à necessidade de procriação. A possibilidade criadora do amor já começa com o instinto sexual. No nível humano elevamos as forças do amor ligadas com a sexualidade para além da procriação, as elevamos à possibilidade de criar um caminho de relacionamento anímico mais profundo entre duas pessoas. Uma outra forma rudimentar do amor, que também encontramos no reino animal, é o relacionamento afetivo entre pais e filhos. O amor materno e paterno tem um nível instintivo, mas que podemos elevar para um relacionamento individual e não necessariamente consanguíneo. E no nível humano temos também uma forma especial do direcionamento do instinto do amor que se revela em nosso relacionamento com coisas, com pertences, p.ex. com o dinheiro. Temos o dom de criarmos um relacionamento afetivo com coisas. Mas a meta do nosso desenvolvimento é elevar o instinto do amor para uma força consciente, em liberdade.
O problema que surge pela falta do amor é expresso de uma forma concentrada ao essencial no Ato Dominical para as crianças: „Sem o amor a nossa existência torna-se desolada e vazia“. Assim como o amor cria a vida, a falta do amor a destrói. Há vários séculos foi feito um experimento terrível para saber como bebês se desenvolveriam sem receber nenhuma forma de amor, somente sendo alimentados e cuidados, mas sem relacionamentos afetivos. Todos acabaram morrendo. Para podermos sobreviver é realmente necessário um mínimo de amor, não necessitamos para a vida somente alimentação e abrigo, necessitamos o alimento do amor. E não só a falta do amor impossibilita a vida, mas também a falta da possibilidade de dar amor destrói a própria vida. Pessoas que não conseguem desenvolver qualquer afeto por uma outra, que vivem numa atmosfera de insatisfação, negatividade, mágoa, rancor, talvez até de ódio, acabam destruindo a própria vitalidade.
O amor tem a possibilidade de criar vida, tanto biológica como anímica, e a falta do amor torna a nossa existência desolada e vazia. Assim como o materialismo impede que a alma se relacione com uma realidade espiritual, o egoísmo impede o desenvolvimento das forças do amor. Apesar do materialismo ter sido uma necessidade para que o nosso pensar pudesse se libertar dos dogmas, e de necessitarmos do egoísmo para que nos tornássemos verdadeiras individualidades, temos que, como individualidades livres, seguir um caminho de desenvolver as forças do amor e procurar o relacionamento com o espiritual. 

O que é a esperança?
O poeta tcheco Vaclav Havel a formulou assim: „Esperança não é a convicção de que tudo vai acabar bem, mas a certeza de algo tem um sentido independente do que acontecerá“. A esperança tem a ver com o sentimento de que algo tem um sentido. Assim como todos nós temos fé e amor, também temos esperança. Por exemplo, quando vamos dormir temos a esperança de que iremos acordar no próximo dia. Quase todas as pessoas têm essa esperança. Isso porque temos o sentimento que faz sentido continuar vivendo, faz sentido acordar no próximo dia. E quando na alma surge o sentimento de que não faz mais sentido viver, então perdemos o desejo de acordar, não faz mais sentido acordar, temos o desejo de morrer. A completa falta de esperança impediria qualquer futuro. E somente podemos ter a esperança em um futuro se nos é possível reconhecer que o que está acontecendo em nossa vida possui um sentido. Portanto, em todas as crises, tanto individuais e biográficas, quanto sociais, como esta crise que estamos vivendo com a pandemia, a grande tarefa é encontrar um sentido em tudo o que acontece. Não se trata de inventar um sentido teórico, isto não nos ajuda. O que necessitamos é realmente reconhecer qual é o sentido. 
A esperança pode também ser deturpada pelo materialismo e pelo egoísmo. Por exemplo, o que nos leva a ter a esperança de ganhar um prêmio na mega sena. Por que temos esta esperança? Temos muitas esperanças tingidas desta forma. Mas a substância essencial da esperança é a procura por um sentido na vida. Ganhamos a esperança quando reconhecemos esse sentido, e perdemos a esperança quando isto não nos é possível. 
Aqui temos um efeito mais sutil do materialismo. Pois se pensamos a ideia materialista do desenvolvimento de acordo com a teoria de Darwin vemos que tudo se desenvolve por mutações ao acaso e pela possibilidade de sobrevivência a partir de uma vantagem. Mas no acaso não existe um sentido, e a sobrevivência por uma vantagem é uma forma do egoísmo. Na ideia de uma vida que busca vantagens ao acaso não é possível encontrar um sentido. Poucas pessoas pensam assim conscientemente. Mas todos nós recebemos essas ideias já desde a infância na escola. Inconscientemente são como um veneno para a alma, pois dificultam muito encontrar um sentido para a vida, e de ter assim uma esperança para o futuro. 
Na Antroposofia podemos encontrar pontos de vistas espirituais que nos ajudarão ainda mais a aprofundar o tema. Rudolf Steiner coloca a fé, o amor e a esperança em uma relação com a nossa constituição humana. Estas três virtudes têm a ver com forças formadoras da nossa constituição, dos nossos corpos, no nível físico, etéreo e astral. Como corpo devemos entender aqui a denominação para algo que se emancipou do contexto mais amplo com o qual era uma unidade, assumiu uma forma, se individualizou e tem agora a possibilidade de se desenvolver de maneira independente. Isso nos é bem evidente com o nosso corpo físico, que faz parte da natureza, mas está separado dela, emancipado e se desenvolve independente, embora relacionado a ela. Assim também podemos pensar num corpo etéreo no âmbito da vida, e num corpo astral no âmbito da alma. Já o desenvolvimento acontece em três etapas. Na primeira algo se separa do todo, formando um corpo. Na segunda, a vida ao redor se espelha naquilo que se separou. Na terceira etapa, o que se separou já pode trilhar um desenvolvimento próprio, independente da origem, mas relacionado a ela. O processo arquetípico, que todos conhecemos e podemos reconhecer dessas três etapas, é a gestação e o parto de uma criança. Temos o organismo da mãe, dentro desse organismo se forma um corpo, o embrião, na placenta a vida em torno do embrião nele se espelha e, a partir do parto, ele se separa do corpo da mãe e pode então seguir um desenvolvimento independente. Temos assim este processo de gestação e nascimento em três níveis: no físico, no vital e no anímico. 
Vivenciamos a realidade do nosso corpo astral por meio dos sentimentos da nossa alma. Em nossa alma vivenciamos como que um dentro e um fora: nós estamos dentro de nós, e o mundo está fora de nós. Não estamos dentro do nosso corpo físico, estamos dentro da nossa alma. A natureza, e o nosso corpo físico que dela faz parte, vivenciamos fora de nós. A ponte entre o interior e o exterior é formada pelos órgãos dos sentidos. A partir dos órgãos dos sentidos vivenciamos o que não somos nós, o que está fora de nós. Essas vivências nos dão uma sensação do mundo e a nossa alma, o nosso corpo astral, responde a essas sensações com sentimentos. Pelas sensações e sentimentos entramos em um relacionamento com o mundo. Aquilo que vivenciamos pelos nossos órgãos dos sentidos vivenciamos como realidade. O nosso corpo astral nos dá a possibilidade de vivenciar o mundo, e a vivência do mundo nos dá o sentimento de realidade. E aquilo que vivenciamos como real, nele acreditamos, nele temos fé. Por isso a matéria nos oferece uma enorme força de convicção, pois a vivenciamos como algo real. Teoricamente existem filosofias que afirmam que matéria não existe. Mas isto contradiz todas as nossas vivências. Devido a essa possibilidade do corpo astral de nos proporcionar a vivência da realidade do mundo, podemos falar do corpo astral como o corpo da fé. Ele é formado pela força da fé, e nossa alma é permeada pela força da fé. Os perigos que temos neste âmbito são as ilusões e os erros. Podemos vivenciar como sendo real algo que não é real. Toda a técnica das mídias virtuais é baseada nessa ilusão. Por outro lado, podemos não vivenciar algo que é real. Podemos estar como que cegos ou surdos para muitas coisas. Temos, pelo corpo astral, a possibilidade de ter fé, e o perigo de termos ilusões e erros. 
A realidade do nosso corpo etérico vivenciamos pelo fato de estarmos vivos. Ele possibilita a vida. No corpo astral vivemos o momento, na vivência que temos em cada momento. A dimensão do tempo surge na alma pelo eu, que pode ter recordações e imaginar algo futuro. O corpo etérico está ligado aos processos de vida e tem a sua realidade no tempo. A cada momento a nossa vida revela um determinado estado na evolução de um ser. Se olhamos uma árvore temos sempre a imagem de um determinado estado da sua evolução naquele momento, mas no corpo etérico da árvore está o todo, o desenvolvimento da semente até o fruto, do brotar e do fenecer. E o corpo etérico tem a possibilidade de formar esse desenvolvimento de uma forma sadia, com a harmonia de cada parte com o todo, do órgão com o corpo. Esse desenvolvimento acontece se relacionando com a matéria. O corpo etérico recebe a matéria da natureza e a eleva num processo vital. Durante a nossa vida, nós ingerimos em média 120.000 quilos de alimentos, sem contar os líquidos que bebemos ou o ar que respiramos. É uma quantidade imensa de substância que é tomada da natureza e colocada num processo vital. Por essa possibilidade de colocar a matéria em processos vitais, de criar uma vida tendo a imagem do ser a cada momento e harmonizando as partes com o todo, podemos falar do corpo etérico como o corpo do amor. Ele é formado pelas forças do amor e permeia a nossa alma com esta força. 
A realidade do corpo físico vivenciamos no dia a dia, pois temos a possibilidade de percebê-lo com os nossos órgãos dos sentidos. Mas na realidade não vivenciamos o corpo físico, vivenciamos a substância, a matéria com a qual ele está preenchido. O corpo físico é, na sua essência, espiritual. São as forças físico espirituais que dão a possibilidade de formar um corpo no âmbito material. O corpo etérico é o que coloca no corpo físico a substância material e o faz visível, o faz ser uma realidade no espaço. O corpo etérico tem os processos que se desenvolvem no tempo, mas ao colocar as substâncias no corpo físico faz dele uma realidade no espaço. Isso nos dá a possibilidade de estarmos encarnados na Terra e de aprender, de podermos nos desenvolver. O nosso corpo físico é aquilo que temos de mais perfeito. Qualquer parte do nosso corpo está permeado de uma grande sabedoria divina. No corpo físico estamos o mais perto da nossa meta, de sermos imagem e semelhança de Deus. Não que Deus tenha a nossa forma e aparência exterior, mas que no físico temos a graça de estarmos muito próximos da sabedoria divina. A meta do nosso desenvolvimento é que nossa alma se aproxime sempre mais desta sabedoria divina, assim como nosso corpo físico já o é hoje. Que o nosso corpo físico já é assim, o temos como um presente que recebemos dos Deuses. Que a nossa alma se torne assim, é a tarefa que temos de conquistar pelo nosso próprio esforço. O nosso corpo físico nos mostra o sentido do nosso desenvolvimento e nos dá a possibilidade de aprender encarnados aqui e nos desenvolvermos nesta direção. Ele nos dá a possibilidade de que a nossa vida tenha um sentido. Não que o sentido esteja no físico material, mas que por meio dele tenhamos a possibilidade de aprender. Por isso podemos falar do corpo físico como o corpo da esperança. Ele é formado pela força da esperança e permeia nossa alma com essa força, com o impulso de procurar o sentido da nossa vida. 
As três virtudes cristãs, a fé, o amor e a esperança, fazem parte da nossa constituição. Todos nós temos estas forças, temos fé, amor e esperança. Elas estão ligadas com os três níveis da nossa encarnação: com o corpo astral, o corpo etérico e o corpo físico. Elas atuam no nível dos corpos inconscientemente em nós. A nossa tarefa é elevar estas forças a um nível consciente. O nosso corpo astral nos forma a base para desenvolver a força da fé na nossa alma. O nosso corpo etérico nos forma a base para desenvolver a força do amor anímico, que possa criar uma nova vida. O nosso corpo físico nos forma a base para formar uma esperança no futuro, de encontrar um sentido em nossa vida. 
De Jesus Cristo recebemos três impulsos para desenvolvermos a fé, o amor e a esperança em nós. O fato de Ele ter se encarnado na Terra é o testemunho da fé que Ele tem em nós. Não se trata aqui de olhar para a fé que nós temos no divino. Mas de tentar vivenciar a fé que o Jesus Cristo tem em nós, a confiança que Ele tem de que somos capazes de nos desenvolvermos. O fato Dele ter morrido na cruz é o testemunho do amor que Ele tem por nós. Um amor que se transformou na força do sacrifício, do sacrifício da própria vida. O impulso da esperança se forma pela Sua ressurreição. É a ressurreição do corpo físico do Jesus. Não no âmbito material, mas no âmbito espiritual. A imagem arquetípica do ser humano, a semelhança divina que se revela no corpo físico é, pela ressurreição, salva para o nosso futuro. Da criação do mundo recebemos três corpos impregnados com as forças da fé, do amor e da esperança. Isto nos deu possibilidade de nos desenvolvermos até o nível anímico. Para que possamos nos desenvolvermos num nível espiritual podemos acolher os impulsos que o Jesus Cristo quer nos dar: pela sua fé em nós, pelo seu amor por nós, pela sua esperança em nosso futuro.

João F. Torunsky

O caminho para Emaús (Lucas 24, 13-35)

A conversa é o mais precioso que temos

No conto de Goethe “A serpente verde e a bela Lilie” encontramos um motivo que pode nos ajudar a compreender a importância da conversa. A serpente encontra uma gruta, embaixo da terra, onde estão quatro reis. Um deles é o rei de ouro. Esse rei pergunta para a serpente: „o que é mais valioso que o ouro? “. A serpente responde: “a luz”. Então o rei pergunta: „e o que é mais agradável que a luz? “. A palavra “mais agradável” é a tradução do alemão “erquicklicher”. É difícil traduzir essa palavra, que também poderia ser traduzida como “mais vitalizante”, ou seja, algo agradável no sentido de vitalizar. E a serpente responde: „a conversa“. Temos no conto os três motivos: o ouro, a luz e a conversa. O ouro é uma substância da terra e tem o seu valor tanto na qualidade físico espiritual, quanto no valor monetário que atribuímos a ele. A luz é algo imaterial, mais ligado ao espiritual, que tem a possibilidade de revelar a aparência daquilo que é material. O ouro tem a sua realidade no mesmo âmbito em que vivenciamos o nosso corpo, no âmbito da substância, enquanto a luz tem uma qualidade semelhante à nossa consciência. A conversa tem uma qualidade intermediária, entre o físico substancial e o consciente espiritual. Quando nós falamos, partimos de uma ideia, de algo que está em nosso interior, que nós queremos expressar. Pelo dom da fala criamos uma realidade no mundo físico, material: criamos a palavra audível. Nós podemos nos expressar para que o outro possa nos escutar e nós podemos escutar o que o outro nos está falando. Temos nesse conto os motivos do ouro, da luz e da conversa que nos levam a uma consciência dos três níveis da própria divindade. O ouro como uma substância terrestre tem a afinidade com o Deus Pai, criador de toda a natureza. A luz com a qualidade da consciência tem mais relação com o espírito, com o Deus Espírito. A conversa que está entre essas duas qualidades, que forma uma ponte entre o espiritual e o material, entre a luz e o ouro, tem a ver com o Cristo, com o Logos, com o dom da palavra, uma faculdade que nos foi dada e nos possibilita falar, conversar.
No Evangelho de Lucas encontramos um relato arquetípico do valor da conversa. No capítulo 24 encontramos os relatos da Ressurreição do Jesus Cristo, do caminho para Emaús, do encontro dos outros discípulos com o Ressurreto e a Ascensão. Somente o Evangelho de Lucas relata o caminho de dois discípulos para Emaús e o processo que os levou a vivenciar o Ressurreto. E aí podemos ver os passos que uma conversa deve ter para que se torne mais valiosa que o ouro, mais agradável e mais vitalizante que a luz. Os discípulos estão a caminho. Isso não tem somente um significado exterior. Estar a caminho é também uma qualidade interior. Será que em todas as conversas que temos estamos a caminho? Com certeza não, pois muitas conversas têm o caráter de que cada um procura colocar o seu ponto de vista. É como estar parado num ponto, no seu ponto de vista, e tentar convencer os outros, mas não estar a caminho com os outros, procurando chegar juntos a um novo lugar. Eles estão caminhando para Emaús, um lugarejo perto de Jerusalém. A palavra Emaús significa “riacho quente” e vários lugares tinham na época esse nome. Como no Brasil, por exemplo, temos a cidade de Poços de Caldas, que tem esse significado: fontes de águas termais. O nome do lugar onde os discípulos querem chegar nos chama atenção para um próximo motivo: almejam a qualidade da água, algo vitalizando, e do calor. O que eles estavam conversando? Estavam trocando as recordações e informações que tinham a respeito de tudo o que havia se sucedido com Jesus. E eles não conseguem entender. Não estão somente a caminho de um lugar para o outro, estão a caminho do entendimento, procurando compreensão. Eles tiveram a vivência, eles sabem dos fatos, eles contam um para o outro o que sabem, mas estão com uma pergunta aberta, não se sentem donos da resposta. Toca-os existencialmente uma pergunta: o que se sucedeu? Esse é o próximo motivo para uma conversa frutífera: ter uma pergunta aberta e não ser o dono de respostas. É a questão se estamos em uma conversa a caminho, em que temos conhecimentos e os colocamos à disposição do outro. Não temos a resposta, mas vivemos com uma pergunta para a qual podemos abertamente procurar juntos uma resposta.
Então é descrito como o Jesus Cristo, o Ressurreto, se aproxima deles. Eles agora são três, os discípulos conversam com o Ressurreto, mas não O reconhecem. Aqui no Evangelho de Lucas temos um relato de algo que a partir do século XX tem se tornado uma experiência real para muitas pessoas. Nos anos setenta do século passado, na Escandinávia, foi feito um estudo por psicólogos que queriam pesquisar sobre anomalias anímicas. Publicaram um pedido no jornal para que pessoas que tiveram um encontro com Jesus enviassem sua história. Receberam muitos relatos, chamando-lhes a atenção como haviam neles qualidades tão semelhantes, de tantas pessoas que não se conheciam, e que os levou a concluir que não se tratava de alucinações, mas de vivências reais. Foi então publicado um livro com vários desses relatos. O incrível é que a qualidade desses encontros é a mesma daquele relatado no Evangelho de Lucas. As pessoas vivenciam uma outra pessoa, conversam com ela, recebem orientação para a vida, se sentem profundamente tocadas, mas só no momento em que a outra pessoa desaparece percebem ter havido um encontro com o Jesus Cristo. Também temos de Rudolf Steiner a descrição de que sempre mais a partir do século XX aconteceriam esses encontros com o Cristo. Isto tem a ver com a aproximação do Cristo no âmbito etérico. Podemos procurar sentir que hoje o Cristo se aproxima de cada um de nós, se aproxima em cada conversa que temos. No caminho para Emaús o Jesus Cristo pergunta aos discípulos sobre o que eles estão falando. Eles relatam que não conseguem compreender o que vivenciaram, e estão tristes. Então o Jesus Cristo explica tudo para eles, descreve como tudo já estava previsto pelos profetas e faz parte do conteúdo do Antigo Testamento. Mas agora nos deparamos com o motivo de que eles adquirem o conhecimento sobre o que se sucedeu, tem uma explicação, estão conversando com o Jesus Cristo e mesmo assim não o reconhecem, não o vivenciam. O que se trata aqui de algo extraordinário, se repete continuamente em nossas vidas: o conhecimento não é ainda uma vivência. Uma explicação sobre um conteúdo espiritual, uma explicação sobre o Cristo, não é a vivência, mas é o passo preliminar que necessitamos para chegar à vivência. Depois de terem estado a caminho, de terem vivido com uma pergunta, de terem recebido conhecimento, os discípulos chegam a Emaús. Nesse momento o Jesus Cristo se despede e surge a necessidade de uma atividade dos discípulos para que o encontro passe para um nível mais elevado. Sem essa atividade interior teriam perdido a possibilidade de reconhecê-lo, teriam permanecido no âmbito das explicações. Mas eles sentem a preciosidade do momento e dizem: “fique conosco!”. Podemos perceber que agora eles entram numa qualidade meditativa da procura da resposta. Não se trata mais de receber informações, se trata de permanecer com o que temos, de nos conscientizarmos que podemos convidá-lo para estar conosco. A procura de informações se transforma no anseio de se alimentar. Eles entram na casa, Ele reparte o pão, e nesse momento eles reconhecem o Jesus Cristo, mas Ele desaparece. A vivência é um momento de graça, não um estado que se pode prender por um longo tempo. O último motivo do relato de Lucas é que agora os discípulos se recordam do encontro, do caminho, e percebem que tiveram uma vivência sobre a qual não haviam se conscientizado: “Porventura, não se nos abrasava o coração, quando pelo caminho nos falava […]?” Agora se recordam que o coração deles tinha tido uma vivência, com um calor especial, mas que não haviam percebido. Vemos a importância do calor do coração para a qualidade do encontro, da conversa.
Podemos ver o nosso relacionamento com o Cristo em dois níveis. Um é o relacionamento que podemos ter com Ele, de uma maneira completamente individual. Essa qualidade individual se expressa na frase: “Não eu, mas Cristo em mim”. O outro nível do nosso relacionamento com o Cristo tem a qualidade social e se expressa na sentença: “Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles”. Almejar somente uma ou outra qualidade seria uma unilateralidade e não nos levaria realmente ao encontro com o Cristo. Necessitamos das duas qualidades: em nosso íntimo e em nossos relacionamentos sociais. A qualidade social se realiza pelo relacionamento que temos com o outro, é um caminho de procura, de pergunta, de aproximação. O que nos possibilita estar a caminho é a conversa. É essencial prestar atenção para a qualidade das nossas conversas. Nem sempre uma conversa é frutífera. E para que a conversa seja frutífera ela não necessita ser sempre amável e agradável.
Às vezes uma conversa bem desafiadora é muito frutífera, e outra, muito amável, pode ser apenas superficial.

O que podemos fazer para que as nossas conversas sejam frutíferas? Principalmente agora, no período do isolamento social, se tornou mais difícil ter conversas frutíferas, pois muito está acontecendo virtualmente, o que significa que a técnica está sendo colocada entre nós. Precisamos de um esforço maior, para ter a pessoa com quem falamos em nossa consciência, e não nos deixarmos enganar que o que a técnica nos transmite de imagens e sons, seja a realidade do outro. Todos nós já nascemos em uma época em que a técnica de comunicação já existia. O telefone sempre fez parte da nossa vida. Na atualidade houve apenas um enorme aumento do uso da técnica, com algumas possibilidades a mais. Mas a experiência atual nos mostra que é possível ter contato com a outra pessoa, apesar de a técnica estar colocada entre nós. Mas, para isso, precisamos de um esforço interior de procurar o encontro com o outro, apesar de estarmos separados no espaço. É possível estarmos próximos na alma apesar de distantes no espaço e vivenciando a ilusão da técnica. Mas essa situação de isolamento social não vai durar por muito tempo. E quando os encontros pessoais se tornarem novamente possíveis, sem restrições, teremos que prestar atenção em um outro problema: estar próximo no espaço não significa automaticamente ter realmente um encontro, estar próximo no âmbito da alma. É possível estar do lado de alguém e interiormente estar muito distante, completamente separados. Mas podemos nos conscientizarmos que qualquer encontro, com qualquer pessoa, é uma oportunidade única para trilhar um caminho, ter uma conversa mais preciosa do que o ouro, mais vitalizante que a luz, formar a atmosfera para que o Cristo possa se aproximar de nós. O que pode nos ajudar é prestar atenção em nosso coração: se o nosso coração está frio, com certeza não será possível ter uma conversa frutífera, mas se sentimos o calor em nós, criado pelo interesse pelo outro, podemos ter a esperança de que a conversa seja o caminho de encontrar o outro, o caminho de sentir a proximidade do Cristo.

João F. Torunsky

Pontos de vista espirituais para compreender uma epidemia

Resumo de uma palestra proferida online no EcoSocial, no dia 20 de abril de 2020

Nesse momento, em que todos falam da pandemia do coronavírus, poderia nos surgir o sentimento de que os vírus são sempre organismos nocivos. Mas isso não é assim. Os vírus, como tantos outros microrganismos, fazem parte da nossa vida e, sem a presença deles, não poderíamos viver. Sobre as bactérias o conhecimento já é bem mais profundo e difundido. Provavelmente todos sabemos da importância das bactérias em nosso organismo. Sem a flora intestinal não nos seria possível a digestão. O conhecimento sobre os vírus é muito mais recente e só nas últimas décadas se pôde fazer pesquisas a seu respeito. Na natureza os vírus são os agentes dos processos transgênicos. Eles têm a possibilidade de alterar o material genético de um outro organismo. Por isso os vírus exerceram e exercem um papel fundamental na evolução das espécies na natureza, e também em nossa própria evolução. Disso decorre que tanto as bactérias como os vírus nos ajudam em nossa vida. É um caso excepcional quando um vírus se torna um agente provocador de uma doença.
Mas, quando isto acontece, temos um sistema imunológico que nos protege. Nosso sistema imunológico tem a possibilidade de reconhecer o que faz parte de nós e nos é saudável, e aquilo que não nos pertence e nos faz mal. Normalmente o sistema imunológico tem a possibilidade de nos defender contra os vírus provocadores de doenças. É o sintoma de uma fraqueza do nosso sistema imunológico quando não conseguimos nos proteger e ficamos doentes.
Assim, quando surge uma epidemia como a atual, podemos nos fazer duas perguntas:
– Por que um vírus se torna patogênico?
– Por que tantas pessoas estão enfraquecidas em seu sistema imunológico?
Em relação ao aparecimento do coronavírus podemos ser levados a formar uma consciência do relacionamento que temos atualmente com os animais. É do reino dos animais que surgem os vírus patogênicos. É necessário olhar para o modo como tratamos os animais na produção de alimentos e outros derivados. O modo como os tratamos é tão terrível que não se pode mais falar da criação de animais como antigamente, mas de um enorme processo industrial de produção de carne, leite, ovos, etc. O grande problema dessa realidade é que não apenas produzimos aquilo que queremos obter como produtos, mas também as doenças que criamos. No âmbito veterinário isso já se mostra evidente: 70% a 80% de toda produção de antibióticos é destinada para impedir que os animais morram nesse processo industrial. Somente 20% a 30% dos antibióticos produzidos no mundo são destinados para seres humanos.
Mas, em um âmbito espiritual, há um outro relacionamento que não se mostra tão evidente. O modo como lidamos com os animais na produção industrial provoca neles um sofrimento imensurável. Surgem assim, do reino animal, os vírus que provocam doenças em nós. Os sofrimentos que temos com a epidemia está num prato da balança e, no outro lado, o sofrimento que nós provocamos aos animais. Em um âmbito moral podemos sentir a grande culpa que temos perante os animais. Existe uma tendência no mundo de criar um equilíbrio entre o sofrimento que provocamos e o sofrimento que nos é provocado. Podemos sentir essa necessidade de equilíbrio como uma forma de justiça. E só então pode surgir o impulso de mudar o nosso comportamento em relação aos animais.
Uma outra pergunta que podemos nos fazer é o que os vírus necessitam para sobreviver, do que eles se alimentam. Existe com certeza uma resposta no âmbito biológico. Mas esse não é o nosso tema no momento. Também nós, como seres humanos, não necessitamos apenas de uma alimentação no âmbito biológico. Para nos desenvolvermos necessitamos também de um alimento anímico, de uma atmosfera social adequada. Nesse sentido podemos perguntar do que os vírus patológicos se alimentam animicamente. A resposta é surpreendente: eles se alimentam do medo e se desenvolvem em um ambiente de mentira.
A pandemia do coronavírus pode nos levar à consciência da culpa que temos perante os animais e da atmosfera de mentira e de medo que criamos em nossa sociedade. A curto prazo precisamos de um medicamento que nos ajude a superar a doença. A longo prazo precisamos dar um passo a frente em nosso desenvolvimento moral.
A segunda pergunta é: por que tantas pessoas estão enfraquecidas em seu sistema imunológico e se tornam doentes pela atuação do coronavírus?
O sistema imunológico é um reflexo da individualidade, do Eu de cada um de nós. Esse sistema reconhece, no âmbito metabólico, o que nós somos e o que nós não somos. O que enfraquece o nosso sistema imunológico já foi muito pesquisado pela salutogênese:
– Uma alimentação que sacia o nosso estômago mas não nos nutre.
– O sono perturbado que não nos revitaliza.
– A falta de movimentos sadios.
– A poluição da água e do ar.
– A poluição sonora.
– A poluição eletromagnética!
– Estresse.
– Sentimento de insegurança.
– Falta de confiança.
– Medo.
– Falta de criatividade.
– O hábito de criticar tudo e todos de uma forma destrutiva.
– Pensamentos negativos.
– Mágoa.
– Rancor.
– Ódio.
– Um modo materialista de pensar e sentir.
A lista é grande e poderia crescer muito mais. Mas a qualidade daquilo que nos enfraquece já nos fica bastante evidente.
A epidemia do coronavírus pode nos levar a perguntar: como está a nossa vida, a vida real de cada um de nós? Estamos vivendo um modo de vida que está nos enfraquecendo? E o que podemos fazer para fortalecer o nosso sistema imunológico? Para responder a essas perguntas é necessário apenas olhar para o oposto do que nos enfraquece.
O que nos fortalece no nível do corpo é uma alimentação saudável que realmente nos nutra, um sono que nos eleve ao espiritual e revitalize as nossas forças vitais, movimentos do corpo que façam sentido e o fortaleçam de uma maneira sadia.
O que nos fortalece no nível anímico são os sentimentos de gratidão, confiança e positividade.
O que nos fortalece no nível espiritual são pensamentos que superam o materialismo, a possibilidade de reconhecer um sentido em nossa existência, de reconhecer o espiritual no mundo e no outro, e desenvolver a força do Eu que assume a responsabilidade pelos seus atos.
Quando falamos da epidemia, falamos de uma doença e pensamos que ela é causada pelo coronavírus. Mas o vírus não causa a doença, ele apenas a provoca. A diferença entre causar e provocar é muito importante. No âmbito anímico nós conhecemos essa diferença muito bem. Se alguém me provoca a partir do modo de falar comigo, pode ser que eu reaja com agressão. A provocação vem de fora, da pessoa que me provoca. Mas o fato de eu reagir com agressão não é determinado pela outra pessoa, é algo determinado por mim. A causa da maneira como eu reajo está apenas em mim. E no decorrer do tempo é possível que se aprenda a não reagir com agressão a uma provocação. O vírus é uma provocação, ele provoca a doença. Mas se ficamos realmente doentes, ou não, é uma questão individual. A maioria das pessoas não fica doente. Assim surge a pergunta: por que eu fico doente? É possível se aprender algo com a doença? No nível fisiológico o sistema imunológico aprende com a doença e se cria uma imunidade. Mas de uma doença podemos aprender também em um nível anímico espiritual. Essa é a grande diferença entre uma doença nos animais e em nós. No reino animal, na natureza, as doenças têm um papel regulador. Quando um animal selvagem adoece, ele morre. Ele nada aprende com a doença. Para nós as doenças são oportunidades de aprender algo.
Existem as doenças comuns que acompanham a biografia de cada um de nós. Na infância e na juventude são, em geral, as doenças infecciosas, que têm como tarefa ajudar o organismo a desenvolver o sistema imunológico. Entre os 20 e 40 anos de idade as doenças psicossomáticas são as mais frequentes, que acompanham os processos de se encontrar a si mesmo, de encontrar a tarefa na vida, de formar os relacionamentos com os outros. Nesse período as doenças têm mais a tarefa de desenvolver, por assim dizer, um “sistema imunológico anímico”. A possibilidade de reconhecer quem somos e de nos aceitarmos tal como nós somos. Na terceira idade estamos mais sujeitos às doenças crônicas. Apesar dos sofrimentos que nos trazem, elas têm a grande tarefa de nos levar a experiência existencial de que nós temos um corpo que está fenecendo continuamente e um dia morrerá, e também que nós não somos em realidade o corpo, mas seres espirituais. Formamos como que “um sistema imunológico espiritual”.
Mas existem também as doenças inesperadas, que não estão ligadas com o desenvolvimento geral do ser humano, mas que nos levam a um desenvolvimento individual. Essas doenças estão ligadas com o destino, com o carma de cada um de nós. A pergunta “porque fiquei doente, e por que eu?” pode nos levar a descobrir aquilo que devo aprender nesse momento e qual a tarefa de aprendizado é provocada pela doença.
No caso de uma pandemia não se trata apenas de uma tarefa de aprendizagem para o indivíduo que adoece, mas a tentativa de despertar toda a humanidade para a tarefa que temos num âmbito global. Assim, perante a crise do coronavírus podemos perguntar: o que temos de aprender nesse momento como humanidade?
Muitas pessoas estão perguntando o que, e quem está por trás dessa pandemia? Quem está manipulando e regendo os eventos sobre a humanidade? Políticos? Grupos econômicos? O sistema financeiro? Círculos ocultos com poderes mágicos? É difícil saber.
Mas existe, com certeza, algo que já há muito tempo vem regendo a humanidade: uma determinada forma de pensar!
Desde o século 19 o modo de pensar materialista, mecânico vem regendo o mundo, um modo de pensar que vê o ser humano como uma máquina, e procura mecanizar todos os âmbitos da nossa vida. As consequências desse modo de pensar determinam sempre mais o nosso dia a dia.
E o modo como nós pensamos revela, em um nível espiritual, a qual senhor estamos servindo.
Albert Einstein disse as seguintes palavras: “O modo de pensar que criou um problema jamais terá a possibilidade de resolvê-lo”.
A pandemia, e o modo como lidamos com ela, é apenas um dos grandes problemas da atualidade. Todos os problemas globais gritam para despertar-nos. Para que mudemos o nosso modo de pensar temos de espiritualizar o nosso pensar, criar um pensar que reconheça o espiritual no mundo, na natureza, no ser humano. Essa é a ajuda que podemos receber da Antroposofia. Servir esse pensar significa atuar para que nós e a nossa sociedade não sejamos vistos e tratados como máquinas, mas que sejamos o palco onde a qualidade humana possa se desenvolver em liberdade e responsabilidade.
Como será a nossa vida depois da pandemia do coronavírus?
Albert Einstein disse também estas palavras: “A maior forma da loucura é deixar tudo como estava no passado e, ao mesmo tempo, ter a esperança que no futuro algo vá mudar”.
A crise atual nos obrigou a fazer, por um momento, uma pausa. É um espaço de tempo valioso para se perguntar como queremos viver daqui para a frente. Espero que possamos aproveitar a grande chance da pandemia para mudar algo em nossas vidas, tanto no âmbito pessoal, como no âmbito social.

João F. Torunsky

“Não temas”

Por que temos medo e como conviver com ele

De onde surge o medo?
De uma forma um tanto simplificada podemos dizer que o medo surge quando a nossa existência é questionada. Quando surge o perigo de que algo, com que estamos ligados existencialmente, seja destruído. E como vivemos em três níveis, no corpo, na alma e em um nível espiritual, temos nesses três âmbitos diferentes qualidades de medos.
No nível do corpo, a origem do medo pode vir da vivência de fome, sede, frio, calor, falta de ar. Ou a possibilidade de nos ferirmos, de ficarmos doentes. E, no caso mais extremo, a possibilidade de morrermos. Quanto mais uma pessoa fundamenta o seu sentimento de existência no próprio corpo, tanto mais essas experiencias corporais nos trazem medo. Como todos nós, pelo fato de estarmos encarnados, fundamentamos a nossa existência na ligação com o corpo, a morte sempre pode ser uma fonte de medo. Pois a insegurança do que virá depois da morte prossegue até o momento que a vida independente do corpo se torne uma experiência real.
No nível anímico temos a necessidade da segurança nos relacionamentos sociais. Quando os relacionamentos são questionados, surge a possibilidade de perdermos o relacionamento com pessoas queridas. Quando, nos relacionamentos destrutivos, sentimo-nos excluídos, humilhados, e vivenciamos a solidão, também surge o medo.
No nível espiritual os medos surgem quando perdemos ou não encontramos um sentido em nossa vida, quando sentimos que a nossa liberdade está nos sendo tirada, quando vivenciamos a atuação de uma mentira e não encontramos a possibilidade de colocar a verdade em seu lugar.
A experiência com estas três fontes distintas do medo, nós vivenciados no decorrer da nossa infância e juventude.
No inicio da nossa vida temos mais experiências do medo que surgem a partir do corpo: fome, sede, frio, calor. O próprio parto é uma experiência muito profunda de separação do nosso corpo da união com o corpo materno, em um processo doloroso. O acolhimento da mãe, do pai, da família tem, na primeira idade, um papel essencial. Os primeiros relacionamentos sociais deveriam ajudar a criança a aprender a conviver de uma forma frutífera com os medos. Tanto para oferecer acolhimento e proteção, como expressando a confiança de que a própria criança pode superar obstáculos que estejam dentro das suas possibilidades.
Quando a criança entra na escola começam a surgir os processos do aprendizado social, que podem provocar medo. Experiências de isolamento, de não pertencer a um grupo, de ser humilhado pelos outros. Além desses medos sociais, que infelizmente surgem hoje para muitas crianças, há o medo de não conseguir atingir as metas de aprendizagem exigidas pela escola. O medo de não satisfazer as exigências que a sociedade coloca sobre nós, de apenas receber recompensas pelo êxito e punições pelos erros.
Já na juventude, com a procura de um sentido para a vida e a procura de se encontrar a si mesmo, o jovem começa a fazer experiências com o medo que já trazem uma qualidade espiritual. São medos que têm a ver com o futuro: de si mesmo, da sociedade, da Terra, da humanidade. Com o nascimento do idealismo na alma do jovem, que pode impulsioná-lo para o futuro, pode surgir também um sentimento de fatalismo, de que nada faz sentido na vida. O que pode se expressar em um estado depressivo, mas também agressivo.
Como adultos, tivemos na infância e juventude experiência com as três formas do medo e continuaremos a tê-las por toda a vida. Dependendo de como aprendemos a conviver com os medos durante a nossa infância e juventude, teremos uma melhor ou pior possibilidade de lidar com esses medos quando adultos.
Temos de ressaltar que todo o desenvolvimento é acompanhado com a possibilidade de que surjam medos. Isso tem a ver com o fato de que, em um processo de desenvolvimento, muitas vezes formas de vida que nos dão segurança precisam ser deixadas para trás, o que nos leva à uma região de insegurança, por ainda não saber como será o futuro. Essa insegurança em relação ao futuro pode nos levar a ter medo. Existem pessoas que necessitam muito do sentimento de segurança na vida. Por isso, quando é necessário que algo seja transformado para que possa acontecer um desenvolvimento e se entra em uma região de insegurança, essas pessoas sentem medo. Mas há também pessoas que almejam desenvolver sempre coisas novas, de fazer mudanças na vida. Quando a vida se torna muito segura, sem desafios, essas pessoas ficam muito inquietas, e surge o medo de não poderem se desenvolver. É necessário compreender que somos bastante diferentes uns dos outros em relação ao modo como reagimos às coisas que nos provocam medo.
O medo não tem somente um caráter negativo, ele pode ser muito positivo, principalmente na fase inicial em que atua na alma. No início surge na alma um sentimento que, em geral, ainda não chamamos de medo: é algo que desperta a nossa consciência, que aguça os nossos sentidos, que nos prepara para agir. É uma forma de estarmos muito mais despertos e atentos do que normalmente o somos. Essa consciência desperta poderia nos levar para uma presença plena, de perceber tudo ao nosso redor, de fazer a ação certa, no momento certo. Mas quando esse despertar da consciência cresce sempre mais em direção àquilo que chamamos de medo, a sua atuação se converte no oposto. A consciência e os sentidos estão muito despertos, mas se restringem, se concentram apenas no que parece ser o problema, sem a possibilidade de se abrir para algo que poderia ser a solução. Surge o que se chama de um olhar pelo túnel: só se vê em uma direção e sempre o mesmo. E, além disso, o medo provoca uma paralisação, a impossibilidade de desenvolver uma ação.
Existem medos que surgem completamente do inconsciente, com um caráter instintivo. Por exemplo, a claustrofobia. Quem tem experiência com essas formas de medo sabe o poder que eles podem ter sobre nós. Nesses casos não é possível controlar o medo a partir de uma racionalidade. Outro exemplo de medo irracional é o medo de barata. Existem muitas pessoas que têm medo de barata, apesar de ser um bichinho tão pequeno que não consegue fazer mal para ninguém.
Outros medos vêm do consciente. Esses medos são, para o tema aqui esboçado, os mais relevantes. Quando, na nossa consciência, surge uma imaginação, um sentimento de que algo poderia acontecer, algo que questiona a nossa existência, criamos nós mesmo um medo em nossa alma. Isso também pode acontecer pela recordação de experiências passadas e o medo surge pela possibilidade de que determinadas situações possam se repetir. Quem já foi mordido por um cachorro provavelmente sentirá medo quando algum cachorro se aproximar. Medos que são criados pela nossa consciência têm o caráter de se ligarem com o futuro, são medos do que poderá acontecer. Mas assim como a consciência pode criar medos, ela pode também aprender a conviver com os medos, ou mesmo a superá-los.
Um exemplo típico de como podemos superar o medo por meio de um trabalho consciente, racional, ocorre em relação ao medo de trovão. Um trovão pode ser muito ruidoso e provocar o medo de ser atingido por um raio. Mas se olhamos a situação de modo racional, vemos que um raio provoca a formação de um relâmpago e o ruído de um trovão. Mas o relâmpago se propaga na velocidade da luz, enquanto o trovão se propaga na velocidade do som. O relâmpago gerado pelo raio é quase um milhão de vezes mais rápido que o trovão. Uma pessoa que é morta por um raio nunca escuta o seu respectivo trovão. Quando escutamos o trovão deveríamos na realidade sentir alegria, pois o raio desse trovão com certeza absoluta não nos atingiu.

Como podemos conviver com o medo?
Uma ajuda para conviver com os nossos medos podemos receber da salutogênese. Na salutogênese se desenvolveu, em relação à constituição da saúde, o conceito de coerência baseado em três premissas:
– É necessário entender o que está acontecendo em nossa vida, ao nosso derredor.
– É necessário reconhecer um sentido naquilo que está acontecendo.
– É necessário ter a possibilidade de fazer alguma coisa, agir a partir de um impulso próprio. Não se sentir apenas vítima do destino, mas criador da própria realidade.
Podemos ver nesses três pontos uma ajuda para lidar com o medo ao nos perguntar:
– Podemos entender o que está acontecendo ao meu redor, o que cria o medo em mim?
– Podemos reconhecer que o medo expressa uma vivência de insegurança e que pode ser a chance de um passo de desenvolvimento? Posso reconhecer o que iremos desenvolver superando essa situação que nos traz medo?
– Podemos encontrar algo que, apesar dos nossos medos, podemos alcançar? Temos a possibilidade de sermos ativos com o nosso Eu e não nos deixarmos paralisar?
Não existem soluções genéricas para resolver os problemas. Normalmente os problemas são comuns e muitas vezes se repetem do mesmo modo para muitas pessoas. Mas apesar da generalidade dos problemas, as soluções são sempre individuais, pois elas significam um passo de desenvolvimento no caminho individual de cada um de nós.
Uma vez colocados esses pontos de vista, podemos tentar olhar agora para a situação atual que estamos vivenciando pela epidemia do coronavírus.

De onde vem o medo do coronavírus?
Com certeza essa é um forma de medo criada pela nossa consciência. Há 150 anos ninguém teria medo de um vírus pelo simples fato de que não se tinha o conhecimento da sua existência. Ainda não se conheciam bem os microrganismos e consequentemente sua relação com as doenças. O fato da ciência ter desenvolvido o conhecimento sobre os vírus trouxe a possibilidade do medo em relação a eles.
Em relação à epidemia atual temos dois fenômenos. Um é a propagação da doença pelo mundo inteiro. Mas o outro é a propagação da informação sobre a doença formando uma atmosfera de medo em escala mundial. Já houveram muitas epidemias na história da humanidade, e decerto seus efeitos foram muito mais devastadores. Mas, com certeza, nunca houve tal fenômeno de medo provocado pela propagação da informação em nível global como agora. Precisaremos de muito tempo para que o vírus seja totalmente pesquisado e surja um medicamento contra ele. Mas a tarefa maior será compreender o que levou à formação de uma consciência global, repleta de medo, como isso foi possível. Com certeza teremos outras epidemias no futuro. Mas queremos que esse fenômeno de uma consciência global de medo se repita no futuro?

Em quais níveis estamos sendo atingidos agora?
Temos insegurança em todos os três níveis que são fontes para o medo:
– Temos medo de ficarmos doentes e talvez até morrer.
– Estamos em um isolamento social e o outro se tornou um perigo para mim, pois pode ser a pessoa que me contaminará.
– A crise econômica que se seguirá não trará apenas a insegurança de sobreviver materialmente, mas será também, para muitos que perdem o trabalho, a perda da possibilidade de vivenciar o próprio sentido da vida. Para sobreviver, será necessário procurar atividades que nem sempre fazem um sentido para o indivíduo.

Que qualidade tem esse medo de agora?
Ele despertou de uma maneira incrível a consciência da maioria das pessoas. Mas restringiu o foco para um ponto muito pequeno: números de infectados e mortos no mundo inteiro. A partir de alguns números e curvas estatísticas se justifica a paralisação da sociedade em um âmbito mundial.
Quero ressaltar que não se está tentando julgar como correto ou errado aquilo que vem sendo feito. A responsabilidade dos políticos que estão tomando decisões tem sido enorme e muito difícil seria julgá-las em um momento onde a própria compreensão do que está acontecendo ainda é insuficiente. Mas me parece importante tentar olhar para os fenômenos tal como eles se apresentam.
Aqui nos deparamos para a grande tarefa que temos, se queremos nos orientar pelos pontos de vista da salutugênese.
– É possível compreender o que está acontecendo ao nosso redor?
– É possível descobrir um sentido para aquilo que está acontecendo? Reconhecer que uma possibilidade de desenvolvimento está se abrindo para cada um de nós e para a humanidade?
– É possível ser proativo nessa situação? Não se sentir apenas vítima do destino, mas desenvolver algo novo, uma criatividade a partir de si mesmo?

A tarefa é grande e, pessoalmente, não vejo sentido em procurar no momento respostas simples baseadas em alguma teoria. Talvez não tenhamos as respostas, mas o importante é manter a atividade interior, não parar de se perguntar, de procurar continuamente uma coerência para aquilo que estamos vivenciando.
Mesmo que ainda nos falte muito na busca de um conhecimento sobre a situação atual, gostaria de colocar dois pontos de vista que me parecem estar ficando cada vez mais claros. A situação atual revela uma qualidade negativa, mas também uma qualidade positiva.
A negativa tem a ver com a qualidade de uma força adversa à evolução da humanidade que, na Antroposofia, é chamada de força arimânica. Essa força atua através do medo, da mentira e do desprezo pelo individual. Podemos reconhecer esses atributos na forma como se propagou mundialmente a informação sobre a epidemia do coronavírus. Se formou uma atmosfera de medo, de isolamento social com a tendência de um sentir o outro como um perigo. Tudo é baseado na obediência perante uma autoridade, nesse caso a medicina. A partir das informações na mídia se criou uma grande sincronização global de pensamentos e sentimentos comuns. E nos números estatísticos apresentados diariamente, não se leva em consideração o aspecto individual de cada pessoa que está por trás de cada número. Se lê ou se ouve que p.ex. morreram 250 pessoas em um só dia no Brasil. A informação é, sem dúvida, válida e importante. Mas é uma diferença muito grande entre uma pessoa de 90 anos que já estava muito enferma e morreu agora pelo coronavírus, e outra que tinha 40 anos e não sofria de nenhuma outra doença. São dois destinos completamente diferentes e que, na estatística, não se expressam e não é possível expressar.
O lado positivo tem a ver com as forças que querem ajudar a evolução da humanidade, que estão ligadas com a qualidade do Cristo. O Cristo atua a partir de uma confiança no mundo espiritual, a partir da verdade e do respeito pelo indivíduo e sua liberdade. A propagação das informações sobre a epidemia nos ajudou também a despertar ainda mais para o fato de que nós somos uma humanidade, estamos todos no mesmo barco. Não é possível resolver problemas globais com soluções locais. Apesar de as nações se isolarem e procurarem cada qual resolverem o problema da epidemia por si, tem ficado claro que isso não é possível. Somente todos juntos poderemos realmente lidar com esse problema. Sabemos que, em todos os sentidos, as consequências para as pessoas menos favorecidas serão muito dramáticas. Soluções que não levem em conta as disparidades sociais não resolverão de todo o problema.
Há um ano atrás, alguém que propusesse parar toda a produção industrial no planeta seria considerada um louco sonhador. Em nenhuma outra circunstância poderia ser visto isso que agora se mostra, pelo menos em parte, ser possível. Com certeza haverá consequências enormes para a economia. Mas temos agora a experiência de que se pararmos a poluição industrial nosso planeta tem a vitalidade de se recuperar, seria possível salvar a vida na Terra. Fomos colocados como humanidade e como individuo perante a pergunta: queremos repetir a nossa forma de vida depois da epidemia? Exatamente como era antes? Ou queremos formar algo novo? Estamos dispostos a mudar algo em nossas vidas? É possível! Está colocado na nossa liberdade.
E talvez o mais importante seja que, nessa epidemia, se tornou claro que não existe somente uma doença contagiosa. Existe também uma saúde contagiosa. Realmente não somos todos nós, e nem o tempo todo, que estamos com medo e tentando nos proteger uns dos outros, procurando soluções egoístas para o problema. Muito pelo contrário. Muitas pessoas têm, apesar da epidemia, confiança no futuro, apesar de viverem na insegurança procuram ajudar uns aos outros, apesar de ter que evitar o contato próximo procuram novas formas de expressão para que esse distanciamento não represente uma perda de carinho pelo outro. Manter a qualidade humana em nossa postura, em nossas decisões, em nossos relacionamentos, mesmo nas condições que nos são impostas pela epidemia, é uma forma de saúde contagiosa e nos mostra que o Cristo está atuando no íntimo de cada um de nós e por nós no mundo. E se procuramos estar atentos para o que Ele nos fala nesses tempos, iremos escutar as suas palavras: „Não temas“.

João F. Torunsky