Reflexão para o domingo

Referente ao perícope de Lucas 18, 35-43

Jericó é uma das mais antigas cidades de Israel (e do mundo) que se mantém habitada desde seus primórdios. Foi citada, inúmeras vezes no Antigo Testamento. No livro de Josué encontramos uma marcante narrativa que envolve esta cidade: Josué, genro de Moisés, recebe de seu sogro a tarefa de conduzir o povo Hebreu, que peregrinou pelo deserto por 40 anos, em sua etapa final até retornar à Terra Prometida. Jericó situava-se num local estratégico, na rota de acesso ao país dos hebreus. Por causa de sua localização, Jericó impedia a passagem, pois os habitantes da cidade não permitiam a Josué nem a seu povo que cruzassem por ali. A narrativa é extensa e marcada por muitas passagens e acontecimentos significativos. (Ver livro de Josué, primeiro livro após o Pentateuco, os cinco livros iniciais da Bíblia). A culminação desse episódio se dá por inspiração divina ao próprio Josué, que ordena que o povo circunde sete vezes as muralhas da cidade, carregando a Arca da Aliança e que toquem suas trombetas. No final da sétima circunvolução, ao soar das trombetas, as gigantescas muralhas de Jericó desmoronaram. O povo hebreu venceu aqueles que lhe barravam a entrada em seu país e consegue desse modo retornar à Terra Prometida. No trecho do Evangelho de Lucas desta semana, fala-se de um cego sentado à entrada de Jericó, pedindo esmola. Não se diz que ele esteja impedido de entrar na cidade, contudo é muito provável que os mendigos e pedintes daquela época tivessem de ficar do lado de fora, para não incomodar os moradores da cidade nem os viajantes que nela entravam. O fato é que ele está ali, do lado de fora, sentado, enquanto que, diante dele, as pessoas passam, entrando ou saindo da cidade. O cego permanece do lado de fora, um tanto alheio ao que se passa lá dentro. Sua cegueira é, de certo modo, uma muralha que o impede de perceber o que acontece além do seu limitado campo de observação. Ele ouve as pessoas passarem, mas não tem ciência de onde vem ou para onde estão indo ou o que fazem. Poderíamos também imaginar que sua cegueira o aprisiona dentro de sua própria muralha, e lhe impede de prosseguir sua própria jornada na vida, por isso permanece ali sentado.

“… havia um cego assentado junto do caminho, mendigando…”

Hoje o mundo passa por um momento de incertezas e preocupações. Muitos sentem como é difícil olhar para o futuro e prever algo, planejar a médio e longo prazo, criar imagens do que queremos fazer nos próximos anos. A crise que se abateu sobre a humanidade, de certo modo também nos colocou “assentados”, esperando à beira do caminho que tudo passe e a vida prossiga como era antes. Será que a vida prosseguirá como era antes? Esta dificuldade em ver mais além, de lançar um olhar para o futuro e planejar, pode também ser vista como uma cegueira ou um aprisionamento dentro de nossa própria muralha anímica, erguida pelo medo, pela insegurança e pelas dúvidas em relação às coisas que estão acontecendo a nossa volta.

Josué e o povo hebreu reconheceram que as muralhas de Jericó eram o fator que os impedia entrar em sua Terra Prometida. Por inspiração divina eles rodearam as muralhas, tocaram as trombetas e as muralhas caíram, abrindo-se assim o caminho. O cego à beira do caminho, ouviu que algo acontecia, que alguém especial passava por ali. Ele então tomou uma atitude, levantou-se, alçou a voz como trombeta e as muralhas de sua cegueira desmoronaram.

“… e o cego viu e O seguiu, glorificando a Deus!”

Cabe a cada um de nós nos perguntarmos, se há momentos em que estamos parados, sentados à beira do fluxo da vida esperando, porque não conseguimos ver um pouco mais além, pois presos estamos em muralhas internas que nos encobrem a visão do espírito. A paciência é, sem dúvida, uma virtude, a passividade, nem sempre. Não podemos mudar o curso dos acontecimentos atuais, apenas por vontade própria, isso, com certeza, ninguém pode. Contudo podemos ficar atentos ao que se passa à nossa volta, tomar atitudes, alçar a voz (não com gritos rebeldes ao vazio que não levam à mudança alguma, mas alçar a voz no sentido de deixar falar mais alto os impulsos mais profundos e verdadeiros, latentes na própria alma), sem perder o foco daquilo que nos é sagrado (Josué e o povo carregavam a sagrada Arca da Aliança enquanto rodeavam as muralhas; o cego se levantou quando ouviu o nome de quem estava passando). Assim, encorajados, podemos começar a derrubar as muralhas da cegueira espiritual que, por vezes, almeja se apoderar de nossa alma e quer nos impedir de prosseguir nosso caminho.

Renato Gomes

Reflexão sobre o salmo 148

“Aleluia! Louvai o Senhor nos céus, louvai-o nas alturas.
Louvai-o, vós todos, seus anjos, louvai-o, vós todos, seus exércitos.
Louvai-o, sol e lua, louvai-o, vós todas, estrelas brilhantes.
Louvai-o, céus dos céus, e vós, águas de cima dos céus.
Louvem o nome do Senhor, porque ele mandou e foram criados.
Firmou-os para sempre, eternamente, deu-lhes uma lei que jamais passará.
Louvai o Senhor na terra, cetáceos e todos os abismos,
raio e granizo, neve e neblina, vento tempestuoso que cumpre suas ordens;
montes e todas as colinas, árvores frutíferas e todos os cedros,
feras e animais domésticos, répteis e aves que voam.
Os reis da terra e todos os povos, governantes e chefes todos da terra,
rapazes e moças, os velhos junto com as crianças,
louvem o nome do Senhor porque só seu nome é sublime. Sua majestade resplandece sobre o céu e a terra.
Ele aumentou o poder do seu povo. É canto de louvor para todos os seus fiéis, para os filhos de Israel, povo que está perto dele. Aleluia.”

Salmo 148

Louvai o Senhor!

Hoje em dia nos ocupamos muito mais com outras coisas do que com o louvor e a gratidão. Normalmente olhamos para os nossos feitos e para as dificuldades da vida. Tornou-se incomum agradecer e louvar. O salmo nos mostra como o louvor e a gratidão podem ressoar por toda a criação. Primeiro nos reinos dos céus e em suas forças. Depois no reino da Terra e em tudo que vive em sua face. De toda a criação, o ser humano tem uma tarefa especial. Ele está apto a desenvolver sua liberdade. Adquirindo a possibilidade de se relacionar em liberdade com o mundo espiritual. Desta maneira, está em nossas mãos agradecer e louvar.

Louvai o Senhor!

Podemos fazer pequenos passos para intensificar a gratidão em nós. No final do dia podemos silenciar por um instante e perguntar: Por qual momento do dia sinto gratidão? Perceberemos que temos muito a agradecer: aos nossos familiares, amigos e pessoas que encontramos. À Terra que nos sustenta e aos céus de onde trouxemos nossa missão de vida, e para onde voltaremos. Essa gratidão pode se tornar um grande louvor ao Senhor. O ser humano caminhará para uma harmonia com o louvor de todas as hierarquias.

Louvai o Senhor!

Julian Rögge

Reflexão para o domingo, 16 de agosto

Reflexão para domingo, 16 de agosto.

Referente ao perícope de Lucas 9, 1-17

Assim como Jesus enviou seus discípulos com a missão de anunciar o Reino de Deus e curar, nós somos enviados por Deus como peregrinos neste mundo. Podemos nos indagar sobre nossa disposição e atitudes perante a missão da vida. Quais os valores que cultivamos e como lidamos com as dificuldades e provações. A disposição de alma de peregrinos nos dá uma boa indicação. Embora os peregrinos tenham empreendido jornadas emocionantes em busca da transformação e de um encontro espiritual por milhares de anos, o peregrino não é simplesmente uma pessoa em uma jornada física por um mundo de aventuras. O peregrino vive dentro de cada um de nós e também nos acompanha em nossas jornadas cotidianas onde quer que estejamos e em todas as circunstâncias. Embora as indicações de Jesus aos seus discípulos nos pareçam demasiadamente severas quanto ao desapego de bens materiais, podemos pensar no princípio desse envio. Em outras palavras ele quer nos lembrar também da atitude perante a própria vida e poderíamos parafrasear sua mensagem mais ou menos assim: “Siga em frente da maneira mais simples e humilde, sem obstáculos aos seus movimentos e em perfeita fé”. Toda missão bem sucedida depende dessa disposição de alma. Estar satisfeito com a provisão que a vida nos proporciona pode ser, às vezes, extremamente difícil. De alguma forma, devemos nos contentar com os recursos limitados. Muitos enfrentamos dificuldades financeiras, insegurança e dúvida sobre a capacidade de sobrevivência no presente e no futuro. É possível viver contente em vez de se preocupar com comida, abrigo e roupas? Em tempos de crise pandêmica como a que estamos enfrentando, essa mensagem pode ser de grande ajuda, pois há muito medo e insegurança quanto ao que o futuro nos reserva. Podemos almejar a atitude de Paulo em sua carta aos Filipenses: “Não estou dizendo isso porque esteja necessitado, pois aprendi a adaptar-me a toda e qualquer circunstância. Sei o que é passar necessidade e sei o que é ter fartura. Aprendi o segredo de viver contente em toda e qualquer situação, seja bem alimentado, seja com fome, tendo muito, ou passando necessidade. Tudo posso naquele que me fortalece”. Portanto, o que permite que os discípulos sigam em sua missão, confiantes e contentes, não são os recursos disponíveis, mas a ligação com aquele que os enviou. Essa ligação é o que lhes garante o cumprimento de sua missão e também sua alegria e disposição. O sentido de abundância nos dispensará no que necessitarmos para cumprir nossa missão pontual ou a de nossa peregrinação pela vida.

Carlos Maranhão

Reflexão sobre o salmo 121

“Levanto os meus olhos para os montes.
De onde me vem ajuda?
Minha ajuda vem do Senhor que fez o céu e a terra.
Não deixará vacilar o teu pé,
Não irá cochilar, o teu guardião.
Eis que não cochilará nem dormirá o guardião da humanidade.
O Senhor é o teu guardião.
O Senhor é tua sombra sobre tua mão direita.
O sol não te molestará de dia nem a lua de noite.
O Senhor te protegerá de todo o mal; protegerá a tua alma.
O Senhor guardará a tua entrada e a tua saída, desde agora, até a eternidade.”

Salmo 121

Normalmente, perante os desafios do nosso dia a dia, sentimos a necessidade de receber ajuda e tentamos elevar a nossa alma para Deus, na esperança de receber Dele essa ajuda. Assim poderíamos dizer que temos inicialmente a pergunta “De onde me vem ajuda?” e num segundo passo “Elevamos os olhos para os montes”. O impulso de querer se unir com o mundo divino espiritual, somente para receber ajuda, nos leva ao risco de criarmos um relacionamento egoísta com Deus, de sempre querermos receber algo para nós. Esse relacionamento se torna muito difícil quando se chega a um nível mercantil, em que condicionamos a nossa atuação religiosa ao recebimento de uma ajuda. O Salmo 121 nos orienta a seguir um outro caminho. Ele não é uma oração para pedir ajuda. Ele é um caminho que podemos fazer quando queremos elevar a nossa alma ao divino.
Partimos do impulso de “elevar os olhos para os montes”, de elevar a nossa consciência, a nossa alma, ao mundo espiritual. O primeiro passo é o esforço de elevar a consciência, em oração ou meditação. Com os olhos, representantes de um órgão de sentido espiritual, procuramos nos elevar aos montes, representantes do mundo espiritual.
Quando entramos no âmbito de uma consciência espiritual, percebemos que precisamos de ajuda, muito mais do que necessitamos em nosso dia a dia. Pois tudo aquilo que nos oferece segurança aqui na Terra, os nossos pertences, não têm nenhum significado nas esferas espirituais. Quanto mais elevamos nossa alma em direção ao Divino, tanto mais perde sentido aquilo que temos, e apenas aquilo que somos tem um significado. Sacrificar o que temos, para procurar o que somos, nos coloca num estado de completa insegurança e necessitamos de ajuda: “De onde me vem ajuda?”
A conquista da nossa liberdade nos coloca na tarefa de que, apesar da disposição do Divino de nos ajudar, somos nós que temos de dar o primeiro passo: reconhecer o Senhor, que fez céu e terra, como aquele que pode nos ajudar e com o qual queremos em liberdade nos unir. Não se trata necessariamente de pedir ajuda para resolver algum problema do nosso dia a dia. Se trata muito mais de reconhecer que necessitamos de ajuda para podermos prosseguir um caminho espiritual e desenvolver a nossa consciência.
Vemos, assim, nas três primeiras frases do Salmo 121, os três passos do início de um caminho espiritual:

  • O esforço de elevar os olhos para os montes
  • A consciência de que precisamos de ajuda neste caminho
  • O reconhecimento de que essa ajuda pode vir à nós do Senhor, do Cristo

O que pode nos dar a segurança de que estamos dando passos na direção correta em nosso caminho espiritual é uma transformação da nossa autoconsciência. Enquanto, num primeiro passo do desenvolvimento do eu, nos vivenciamos a nós mesmos no centro, e o mundo na periferia, somos eu centrados, o que pode nos levar a sermos “ego cêntricos”, num segundo passo podemos aprender a sentir que a realidade do nosso ser superior não está no centro, no corpo, mas na periferia, no mundo. Sem perder a qualidade da autoconsciência, podemos vivenciar que esse ser superior começa a falar da periferia para nós. Não é o nosso eu cotidiano que fala de si para os outros, é alguém que fala para nós e, mesmo assim, não é um outro, mas nós mesmos.
“Não deixará vacilar o teu pé, não irá cochilar, o teu guardião.” No caminho que nós mesmos temos de trilhar, a ajuda que precisamos está em ter a segurança de onde colocar o pé, e não perder a consciência conquistada aqui na Terra, a consciência desperta do nosso eu.
A nossa consciência é restrita, e estamos a caminho de desenvolvê-la. Por isso necessitamos da ajuda de um ser, que tenha a consciência necessária para nos ajudar a seguir um caminho espiritual e nos proteger de ir além do que podemos suportar. Precisamos da ajuda do Guardião do Limiar. Davi vivenciou a realidade desse guardião relacionado com o seu povo, Israel. Hoje podemos vivenciar que o Guardião está relacionado com toda a humanidade, independente de pertencermos a um povo. O guardião é o Senhor, é o Cristo.
Num próximo passo de um caminho espiritual podemos fazer a experiência de que a ajuda que recebemos não é, necessariamente, para resolver os nossos problemas, mas uma força que nos possibilita atuar no mundo de uma forma melhor do que seria possível apenas a partir das nossas próprias faculdades. Quem desperta para esse nível de relacionamento com o mundo espiritual conhece a situação de receber um elogio por algo que fez e saber que isso só foi possível porque algo superior atuou através de nós:  “O Senhor é tua sombra sobre tua mão direita.”
Assim, muitas coisas que nos provocavam desgosto, não nos molestam mais. Não é mais tão importante nos perguntar, se nos sentimos bem. É muito mais importante nos perguntar se podemos fazer algo para o mundo: “O sol não te molestará de dia nem a lua de noite.”
Precisamos da ajuda dos seres espirituais. Mas precisamos também de ajuda para nos protegermos de seres espirituais. Pois não existem somente os seres que querem nos ajudar no desenvolvimento do nosso eu, mas também aqueles que nos são adversos. Temos de aprender a distinguir os espíritos, distinguir o bem e o mal, para que nossa alma não corra perigo: O Senhor te protegerá de todo o mal; protegerá a tua alma.
Um caminho espiritual sadio é caracterizado pelo domínio da decisão individual sobre quando queremos elevar a nossa consciência ao mundo espiritual, “aos montes”, e quando queremos dirigir a nossa consciência para as tarefas do nosso dia a dia; quando queremos estar presentes no agora, e quando queremos estar na eternidade. Enquanto não dominamos essa transição, a ajuda do Guardião do Limiar consiste em nos impedir de entrar no mundo espiritual. E, no momento em que estivermos aptos, ele será aquele que nos conduzirá nesse caminho. “O Senhor guardará a tua entrada e a tua saída, desde agora, até a eternidade.”

João F. Torunsky

Reflexão para o domingo, 9 de agosto

Referente ao perícope Lucas 15, 11-32

Nossa pátria primordial é o mundo espiritual. Desta casa partimos para realizar nossa missão de vida terrena. Trazemos conosco uma herança celestial. Sobre nosso semblante brilha nossa estrela, centelha divina, nosso mais elevado e puro ser. Nosso tortuoso caminhar pelo mundo terreno, nos leva a esbanjar nossa herança. Trevas encobrem nossa estrela. Nos perdemos de nós mesmos. Muitas vezes sem saber como prosseguir, nos perguntamos: ‘Como cheguei até aqui? Para onde devo ir?’
Perder-se e encontrar-se fazem parte de nossa missão na Terra.

“Viver é uma questão de rasgar-se e remendar-se”
João Guimarães Rosa

“Cair em si” representa o momento onde tomamos consciência de nossos atos, de nossa situação. Talvez de maneira não totalmente consciente miramos nossa estrela, recordamos a casa de onde viemos. “Cair em si” é vermo-nos perante a encruzilhada com a pergunta: Quero seguir “esbanjando” minha herança divina? Quero assumir que me afastei de mim, da minha meta, da minha estrela? Se a resposta for positiva, vemos um ser humano ereto, erguido, permitindo que seu Eu permeie seus atos na Terra. Neste momento a encruzilhada transforma-se em caminho estreito, mas que conduz diretamente ao coração. Nosso relicário, o recôndito mais íntimo de nossa alma. E é nesse espaço onde posso admitir para mim mesma(o): ‘Pequei’ perante os céus (as hierarquias espirituais), perante o Pai e perante meu ser mais elevado. Reconhecer a separação e desejar voltar-se para o plano espiritual requer humildade. Assim como requer humildade dizer: “Faça de mim teu servo, tua serva”. “Não a minha vontade seja feita, mas a Tua”. “Não eu, mas o Cristo em mim”.
O retorno consciente à casa do Pai, durante nossa vida terrena gera imensa alegria no mundo espiritual. Este ato prepara a possibilidade de recebermos uma nova veste: Um corpo de luz radiante. Um anel: A aliança com as hierarquias divinas. Sandálias nos pés: Estrutura e fundamento na Terra e nos céus.
No mais, encerro esta reflexão com Guimarães Rosa…

“Rezar muito e ter fé. Porque as coisas estão todas amarradinhas em Deus”

Viviane Trunkle

Reflexão sobre o salmo 19

“Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos.
Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite mostra sabedoria a outra noite.
Não há linguagem nem fala onde não se ouça a sua voz. A sua linha se estende por toda a terra, e as suas palavras até ao fim do mundo. Neles pôs uma tenda para o sol, o qual é como um noivo que sai do seu tálamo, e se alegra como um herói, a correr o seu caminho. A sua saída é desde uma extremidade dos céus, e o seu curso até à outra extremidade, e nada se esconde ao seu calor. A lei do Senhor é perfeita, e refrigera a alma; o testemunho do Senhor é fiel, e dá sabedoria aos símplices. Os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração; o mandamento do Senhor é puro, e ilumina os olhos. O temor do Senhor é limpo, e permanece eternamente; os juízos do Senhor são verdadeiros e justos juntamente. Mais desejáveis são do que o ouro, sim, do que muito ouro fino; e mais doces do que o mel e o licor dos favos. Também por eles é admoestado o teu servo; e em os guardar há grande recompensa. Quem pode entender os seus erros? Expurga-me tu dos que me são ocultos. Também da soberba guarda o teu servo, para que se não assenhoreie de mim. Então serei sincero, e ficarei limpo de grande transgressão. Sejam agradáveis as palavras da minha boca e a meditação do meu coração perante a tua face, Senhor, Rocha minha e Redentor meu!

Salmo 19

No salmo 19, podemos acompanhar o processo de evolução do ser humano desde as esferas celestes no reino do Deus Pai, passando pela chegada na Terra com o Deus Filho e alcançando o aperfeiçoamento do ser humano num futuro indeterminado por meio do Deus Espírito. Aí temos o passado, o presente e o futuro.
Dos “céus” se faz ressoar a declaração da glória de Deus, como que a partir da música das esferas, e o firmamento anuncia sua obra. Os antigos que falavam da música das esferas expressavam uma realidade espiritual. Os céus não apenas iluminam, mas a partir de seus seres falam. A palavra hebraica para “declarar” aqui tem a mesma raiz da palavra “sepher” que quer dizer livro. Os céus estrelado é o livro primordial, o livro dos livros. Nele a humanidade antiga recebia a escritura sagrada revelada.
A menção ao firmamento fala do poder da vontade de Deus. Para o cientista moderno não é correto falar de um firmamento, pois as estrelas estão em constante movimento. Mas a antiga palavra “firmamento” nos transmite um mundo divino baseado numa eterna e profunda paz e silêncio. Nele há algo que transcende nossa vivência puramente física. Assim vivenciavam os antigos, no supraterreno, um mundo de permanência, segurança e silenciosa harmonia. A partir daí o salmo descende no caminho da encarnação, no tornar-se carne, no mundo do tempo: “Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite mostra sabedoria a outra noite”. Aqui trata-se de um processo de conhecimento que é anunciado no dia, mas só se realiza através da noite, no sono.
Finalmente o salmo chega à Terra, em sua existência espacial e material, mas a uma Terra que é ordenada e formada pelos céus: a linha de medida se estende por toda a Terra. O sol nos ofusca a visão dos céus e nos remete a olhar o campo terreno do trabalho, o mundo de nosso vir a ser humano. Para o ser humano no tempo em que a consciência do eu ainda não havia se fortificado, o sol era o ser que trazia a organização do dia. Em Cristo surge a divindade como o grande Eu Sou que traz ao ser humano a força diurna da consciência. O sol é apresentado pelo salmista de duas formas: como herói e como noivo. O herói é o ser humano excepcional que mostra aos outros o que significa na verdade ser humano: seguir um caminho. Isso demonstra o fato de o ser humano estar em constante desenvolvimento, em constante vir a ser. As antigas escolas de mistério também retratavam o discípulo consagrado como “Heliodromos”, o caminhador solar, aquele que segue com confiança constante o seu caminho celeste. Podemos ver, por exemplo, o percurso do Cristo com a força e determinação até completar sua missão. Mas Cristo não é apenas o modelo do herói que cumpre sua missão, ele é também o modelo do que é verdadeiramente ser humano, é o arquétipo do ser humano: ele é o noivo. O elevado Deus Filho chama-se noivo, pois a ele é prometida a alma humana com quem, em íntima comunhão, se unirá no casamento sagrado. A imagem do salmo para isso é: “Neles pôs uma tenda para o sol”. A palavra grega para tenda tem a mesma raiz que a palavra “morar” utilizada por João Evangelista em seu prólogo ao dizer: “O verbo se fez carne e morou entre nós”.
O salmo segue adiante como um hino dedicado à lei, torna-se abstrato. Podemos dizer que no céu estrelado vivenciamos o Deus Pai, no Sol, o Deus Filho, a vivência do livro sagrado representa então a esfera ainda futura do Espírito Santo, e por ser sua realização ainda coisa do futuro, daí sua tendência à abstração. Embora não tenhamos uma imagem muito positiva dos doutores da lei do Antigo Testamento, podemos vislumbrar nesse aspecto de leis, o bem atemporal. Isso no cristianismo dos novos tempos pode se tornar vivo ao interpretarmos essas doze sentenças como uma ordenação dos atos humanos baseada no harmonioso zodíaco celeste. Isso é seguido pelas metáforas do ouro e do mel. No ouro a humanidade sempre viu o símbolo da sabedoria. O mel sempre foi o alimento dos mistérios. Assim um dos pastores aos quais se anunciou o nascimento de Jesus dizia ter sonhado que sua alma recebia muita doçura, muito mel e muitas rosas.
No final o salmo volta-se para a interioridade humana com o desejo de que a palavra celeste possa também lhe pertencer, de que possamos não só ouvi-la, mas realizá-la. O ser humano chega ao si mesmo, onde não apenas “ouve” dos seres divinos a direção a seguir, mas começa a “falar” com os seres divinos. Aí ele se transforma e aprende a limpar-se da “grande transgressão”. Por meio do Espírito Santo, ele almeja alcançar a paz na rocha que é o Deus Pai nele e na redenção que é o Cristo nele.

Carlos Maranhão

Reflexão para o domingo, 2 de agosto

Época de Trindade

Referente ao Perícope Mateus 7, 1-14

“Não julgueis, para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que julgardes sereis julgados, e com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós.
E por que reparas tu no cisco que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o cisco do teu olho, estando uma trave no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o cisco do olho do teu irmão.”

Mateus 7, 1-5

O olho é um órgão muito sensível. Qualquer impureza nos incomoda bastante e nos impede de olhar o mundo. Um minúsculo grão de areia no olho pode ser tão dolorido, que faz com que a nossa atenção se volte completamente para essa sensação, talvez até tenhamos de fechar os olhos e não vejamos mais nada. Ter algo no olho e tentar ver o “cisco no olho do irmão” é, assim, algo impossível.
Isso é, fisiologicamente, assim. Mas, animicamente, não é assim que acontece, e muitas vezes ocorre até o oposto. Desenvolvemos uma atenção especial para as nossas fraquezas, precisamente quando outros também as têm. E não só desenvolvemos uma atenção, mas também uma aversão quando percebemos nos outros as fraquezas que temos, por vezes inconscientemente, em nós mesmos. Aquilo que fisiologicamente é impossível, “ver o cisco no olho do irmão e não reparar a trave no próprio olho” é, animicamente, a situação comum.
Por que isso é assim? Por que conseguimos ver tão claramente as fraquezas do outro, se nós mesmos não somos perfeitos? Isso ocorre porque não temos em nossa alma apenas as nossas fraquezas, mas também um sentimento do que seja o ideal do ser humano. Todos nós trazemos, profundamente semeado em nossa alma, os ideais humanos, aquilo que deveríamos ser, à imagem e semelhança divina, pela qual se iniciou a nossa criação. A realidade de todos nós é que ainda não realizamos esse ideal, pois ninguém é perfeito. Cada um está a caminho, com os seus dons e com as suas fraquezas. E cada um tem um pressentimento da meta a alcançar nesse caminho do ideal humano. Esse pressentimento do ideal é o que nos dá a possibilidade de perceber o que não está de acordo com esse ideal. Podemos reconhecer isso, apesar de que nós mesmos não sejamos perfeitos. Ver o cisco no olho do irmão é possível, apesar da trave em nosso próprio olho. Esse paradoxo é exatamente o que nos faz sermos seres humanos. Isso é possível porque temos em nós o pressentimento do ideal, e é o que oferece a possibilidade de nos desenvolvermos.
O problema não está em ver o cisco no olho do irmão. Está em não ver a trave no próprio olho. Podemos desenvolver uma atenção muito aguçada para as fraquezas dos outros e não perceber as nossas próprias. O presságio do ideal do ser humano, em nós, pode nos levar a duas direções: o conhecimento do outro e o autoconhecimento. Os dois caminhos são valiosos. Isso pode então nos levar a dois impulsos: querer educar o outro e a autoeducação. O impulso da autoeducação também é valioso, mas o impulso de querer educar o outro é a fonte dos grandes problemas sociais. Frutífero se torna apenas o caminho do autoconhecimento e da autoeducação.
O evangelho nos mostra um caminho sadio de desenvolvimento. Primeiro percebemos o cisco no olho do irmão, o que é normal. Mas essa percepção deveria nos ajudar a reconhecer a trave em nosso próprio olho. A percepção das fraquezas dos outros pode nos ajudar a ir um caminho de autoconhecimento. Então, nossa tarefa passa a ser a de tirar a trave do nosso próprio olho, ir um caminho de autoeducação. Então, e só então, teremos o direito de oferecer ajuda ao nosso irmão, para que ele próprio possa tirar o cisco do seu olho, caso queira aceitar a nossa ajuda.

João F. Torunsky

Reflexão sobre o salmo 104

“Minha alma, bendize o Senhor! Senhor, meu Deus, como és grande!
Revestido de majestade e de esplendor, envolto em luz como num manto.
Tu estendes o céu como uma tenda, constróis sobre as águas tuas moradas,
fazes das nuvens teu carro, andas sobre as asas do vento;
fazes dos ventos teus mensageiros, das chamas de fogo teus ministros.
Firmaste a terra sobre suas bases, para ficar imóvel pelos séculos eternos.
Com o oceano a envolveste como num manto, as águas cobriam as montanhas.
À tua ameaça fugiram, ao fragor do teu trovão tremeram.
Sobem os montes, descem os vales ao lugar que lhes determinaste.
Para as águas marcaste um limite intransponível, para não tornarem a cobrir a terra.
Fazes brotar as fontes nos vales e escorrem entre os montes;
dão de beber a todas as feras do campo e os asnos selvagens matam sua sede.
A seus lados moram as aves do céu, cantam entre as ramagens.
De tuas altas moradas irrigas os montes, com o fruto das tuas obras sacias a terra.
Fazes crescer o feno para o gado, e a erva útil ao homem,
para que tire da terra o seu pão: o vinho que alegra o coração do homem, o óleo que realça o brilho do rosto e o pão que sustenta o seu vigor.
Saciam-se as árvores do Senhor, os cedros do Líbano que ele plantou.
Lá os pássaros fazem ninhos e a cegonha no seu topo tem sua casa.
Para as cabras são as altas montanhas, as rochas são refúgio para os roedores.
Fizeste a lua para marcar os tempos e o sol que sabe a hora de se pôr.
Estendes as trevas e chega a noite e vagueiam todas as feras da floresta;
rugem os leõezinhos em busca de presa e pedem a Deus seu alimento.
Quando fazes o sol nascer, se retiram e se escondem nas suas tocas.
Então sai o homem para o trabalho, para sua fadiga até a tarde.
Como são numerosas, Senhor, tuas obras! Tudo fizeste com sabedoria, a terra está cheia das tuas criaturas.
Eis o mar, espaçoso e vasto: nele há répteis sem número, animais pequenos e grandes.
Percorrem-no os navios, e o Leviatã que formaste para com ele brincar.
Todos de ti esperam que a seu tempo lhes dês o alimento.
Tu lhes forneces e eles o recolhem, abres a tua mão e saciam-se de bens.
Se escondes teu rosto, desfalecem, se a respiração lhes tiras, morrem e voltam ao pó.
Mandas teu espírito, são criados, e assim renovas a face da terra.
A glória do Senhor seja para sempre, alegre-se o Senhor com suas obras.
Ele olha a terra e fá-la saltar, toca os montes e fumegam.
Quero cantar ao Senhor enquanto eu viver, cantar a meu Deus enquanto eu existir.
Seja-lhe grato meu poema; a minha alegria está no Senhor.
Desapareçam da terra os pecadores e não existam mais os ímpios.
Bendize o Senhor, minha alma!”

Salmo 104

Nesse salmo podemos acompanhar a gênesis, a criação dos céus e da Terra. O ser humano é mencionado duas vezes. É ele quem trabalha do levantar do sol até o começo da noite. Ele recebeu as plantas para o cultivo. Deve ganhar assim, sua vida pelo trabalho na Terra. Como produtos do trabalho do ser humano são mencionados o pão, o vinho e o óleo. Eles também são usados, como substâncias, nos sacramentos da Comunidade de Cristãos. O pão e o suco de uva (vinho) no Ato de Consagração do Homem. O óleo na Extrema Unção e na Consagração Sacerdotal. Com quais qualidades eles estão ligados?
O pão vem do trigo. O trigo cresce e une as forças da Terra e dos céus. Pelas raízes ele recebe os minerais e a água da terra e os transforma em sementes. Para isso, o trigo necessita a força solar. Ele sempre cresce em direção ao sol e, no final deste processo, precisa secar no calor. A semente do trigo está mais ligada ao elemento terra, ao seco. Após a colheita, várias ações são necessárias para transformar o grão de trigo em pão. O pão é um produto do trabalho humano na Terra.
As uvas também precisam do sol, mas, muito mais de seu calor. Elas amadurecem, protegidas do sol direto, pelas folhas da videira. Na uva é principalmente a água que se transforma através do calor. As uvas estão mais ligadas ao elemento água, ao líquido. O vinho é relacionado, no salmo, com o coração. Podemos sentir aí, uma relação com o nosso sangue.
As oliveiras precisam muito sol e calor. Essa força do sol ficará visível no óleo, na cor e na possibilidade de conferir brilho. Ele também tem a qualidade de fazer permeável. Por exemplo, ao passarmos óleo em uma folha de papel, observamos como ela se torna translúcida. Isso quer dizer: permeável à luz.
O que significam as qualidades do pão, do vinho e do óleo para os seres humanos? Uma das metas principais do ser humano é unir os céus à Terra. Com o trabalho das nossas mãos podemos tornar essa união frutífera para o mundo, podemos cultivar a Terra. Esse processo é representado pelo pão. O calor humano, a compaixão e o entusiasmo estão mais ligados ao nosso coração, eles podem pulsar em nosso sangue. Podem trazer vitalidade e impulsos para a nossa vida na Terra. Essas forças podemos ver no vinho. Pão e vinho podem se tornar no Ato de Consagração do Homem os portadores do corpo e do sangue de Cristo. Nos tornarmos permeáveis ao mundo espiritual, pode ser a maior tarefa nos dias de hoje. O óleo é o arquétipo dessa qualidade e por isso usado em dois sacramentos que estão no limiar entre a Terra e os céus.

Julian Rögge

Reflexão para o domingo, 26 de julho

Época de Trindade
Referente ao Perícope Marcos 8, 27-33

Nesta breve conversa com os discípulos, Pedro nos surpreende: Num primeiro momento ele diz: “Tu es o Cristo!”, mostrando assim que é capaz de explicitar o que com certeza pulsava talvez não tão claramente na alma dos demais discípulos, mas logo a seguir, repreende o mestre, exigindo que não pronuncie aquelas palavras, pois ele, Pedro, não quer que aquilo aconteça (compare-se aqui o paralelismo com a narrativa mais detalhada de Mateus 16, 22). Pedro, neste momento, se advoga o direito de pedir a Cristo que silencie, que Ele se cale…

Pode o ser humano pedir a Cristo que se cale?
Ele, que é o Verbo, a própria essência da Palavra, pode ser calado?
Que sentido haveria se a força da palavra se calasse?

O poeta e escritor argentino, Horacio Guarany, compôs certa vez os seguintes versos:

Si se calla el cantor calla la vida
Porque la vida, la vida misma es todo un canto
Si se calla el cantor, muere de espanto
La esperanza, la luz y la alegría
Se se cala o cantor, cala-se a vida,
Porque a vida, a vida mesma, é toda uma canção,
Se se cala o cantor, morrem de medo
A esperança, a luz e a alegria.

O poeta aponta em seus versos que há situações que não podem ser silenciadas. Calar-se significa omitir-se, não querer se comprometer com situações injustas e opressoras que estão à nossa volta, por medo ou por comodidade…

“… pois o Filho do homem teria que padecer muito, seria rejeitado pelos anciãos e príncipes dos sacerdotes, pelos escribas, e seria morto (por eles)”

São estas as palavras que Pedro tencionava “calar”…
Enigmaticamente, em nossa época, estamos vendo um massivo desmantelamento de incentivos e estímulos a muitas iniciativas relacionadas à vida cultural (também neste contexto se encontram as atividades religiosas) que subitamente, deixaram de acontecer de forma livre e aberta e que agora estão diante de enormes dificuldades para reencontrar um caminho de volta… Em nosso país, mais explicitamente, se preconiza abertamente a censura e a proibição a muitas formas de manifestação cultural e ideológica que contrarie a maneira de pensar “dominante” do momento. É importante estar atentos às tais tentativas de querer fazer calar o que é diferente ou discordante daquilo que pensamos. Pedro estava tão próximo das intenções do mestre, ao reconhecê-lo como o Cristo, o Messias, mas no momento seguinte ficou tão distante…

“… afasta-te Satanás, porque não compreendes as coisas de Deus!”

A atualidade desta narrativa do Evangelho (e de certo modo também do poema-protesto de Horácio Guarany) é surpreendente, se quisermos meditá-la à luz dos acontecimentos atuais. A essência do impulso espiritual que Cristo trouxe à Terra não pode ser calada, do contrário se “calaria” também a própria vida.

Que se levanten todas las banderas
Cuando el cantor se plante con su grito
Que mil guitarras desangren en la noche
Una inmortal canción al infinito
Que se levantem todas as bandeiras
Quando o cantor se instale com seu grito,
Que mil violões sangrem na noite
Uma imortal canção ao infinito

Que sempre nos seja possível lembrar que a mensagem de Cristo é comparável a um ‘canto’ que não pode nem deve ser silenciado pelo medo, pela opressão nem pelo comodismo. A tarefa é deixar soar Sua Voz, Sua Palavra, numa ‘canção’ que reverbere como mensagem do ser humano de volta ao infinito, ainda que para tanto tenhamos que suportar desafios e sofrimentos, inerentes ao próprio ato sacrificial de Cristo.

Renato Gomes

Segue abaixo o texto completo do poema, para aqueles que se interessarem.

Si se calla el cantor
Canção de Horacio Guarany, nome artístico de Eraclio Catalin Rodríguez Cereijo (Las Garzas, 15 de maio de 1925 – Luján, 13 de janeiro de 2017), foi um cantor nativista e escritor argentino. Esta canção tornou-se mais conhecida após a sua gravação pela cantora Mercedes Sosa.

Si se calla el cantor calla la vida
Porque la vida, la vida misma es todo un canto
Si se calla el cantor, muere de espanto
La esperanza, la luz y la alegría
Si se calla el cantor se quedan solos
Los humildes gorriones de los diarios,
Los obreros del puerto se persignan
Quién habrá de luchar por su salario
Que ha de ser de la vida si el que canta
No levanta su voz en las tribunas
Por el que sufre, ´por el que no hay
Ninguna razón que lo condene a andar sin manta’
Si se calla el cantor muere la rosa
De que sirve la rosa sin el canto
Debe el canto ser luz sobre los campos
Iluminando siempre a los de abajo
Que no calle el cantor porque el silencio
Cobarde apaña la maldad que oprime,
No saben los cantores de agachadas
No callarán jamás de frente al crimen
Que se levanten todas las banderas
Cuando el cantor se plante con su grito
Que mil guitarras desangren en la noche
Una inmortal canción al infinito
Si se calla el cantor calla la vida.

Reflexão sobre o salmo 8

Ó Senhor, nosso soberano,
quanto esplendor nos irradia de teu nome em toda a terra!
Tu, que expandiu a revelação do teu ser pelos céus.
Da boca das crianças e dos que mamam
Tu suscitaste a força contra teus adversários, para calar o inimigo indigno.
Quando contemplo os teus céus,
obra de teus dedos,
a lua e as estrelas que estabeleceste,
que é o homem, para que te lembres dele?
e o filho do homem, para que o acolhas?
Deixaste pouco faltar nele da dignidade divina, o coroaste de honra e revelação espiritual.
Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos, tudo puseste debaixo de seus pés, todas as ovelhas e bois, assim como os animais do campo, as aves do céu, e os peixes do mar, tudo o que passa pelas veredas dos mares.
Ó Senhor, nosso soberano,
quanto esplendor nos irradia de teu nome em toda a terra!

Salmo 8

O que é o homem?

Esta é a grande pergunta da nossa existência: quem somos nós?

Quando, numa noite estrelada, olhamos para o céu acima de nós e vemos a majestade do universo, o reluzir das estrelas, a pálida luz da lua…, podemos ser repletos de um sentimento: admiração!
Quando, de dia, olhamos para a natureza ao nosso derredor e vemos a beleza do mundo, uma pedra, uma planta, uma flor, um passarinho…, podemos ser repletos de um sentimento: admiração!

“quanto esplendor nos irradia de teu nome em toda a terra!
Tu, que expandiu a revelação do teu ser pelos céus.”

E o que é o homem? Quem somos nós?

A palavra homem vem do latim, e tem a ver com húmus. O homem é aquele que vem da terra. Mas, em grego, a palavra para homem é “antropos”, o que significa “o que olha para cima”. Os animais têm a sua cabeça voltada para a terra, já o homem superou a gravidade, se colocou em pé, ereto, e desenvolveu a possibilidade de olhar para cima.

O que é o homem?

Temos a nossa origem nos céus e, a partir dessa origem divina espiritual, podemos superar os obstáculos da vida, nos desenvolvermos como seres humanos. A criança recém-nascida ainda traz em si algo que nos deixa pressentir essa origem celestial do nosso ser.

“Da boca das crianças e dos que mamam
Tu suscitaste a força contra teus adversários, para calar o inimigo indigno.”

Mas, quando nos encarnamos, nós nos ligamos com a terra. Isso é necessário para nos desenvolvermos, mas traz o perigo de que realmente percamos a ligação com a nossa origem, com a “criança”, com os céus. Precisamos sentir em nós, existencialmente, a pergunta “o que é o homem? quem somos nós?”, e desenvolver a força de erguer a nossa cabeça, não somente num sentido exterior, mas interiormente, e olhar para os céus, para uma realidade divino espiritual.

“Quando contemplo os teus céus,
obra de teus dedos,
a lua e as estrelas que estabeleceste,
que é o homem, para que te lembres dele?”

Podemos ver o caminho do nosso desenvolvimento em três passos: éramos “crianças”, unidos com o divino, num estado paradisíaco. Nos encarnamos, nos ligamos com a terra e nos tornamos homens. Agora a meta não é voltar a sermos “crianças” negando a encarnação como “homens”, ou nos tornarmos completamente “homens terrestres”, esquecendo a nossa origem. A meta é, em liberdade, nos ligarmos com as forças da “criança” em nós, para que, como homens, possamos estar “grávidos de nós mesmos”, do nosso ser superior, e nos tornarmos “filhos do homem”.

“que é o homem, para que te lembres dele?
e o filho do homem, para que o acolhas?”

A grande diferença entre a natureza e o ser humano, está no fato de que a natureza é uma criação divina, a qual podemos admirar. Também nós fazemos parte da natureza e, assim, o esplendor da criação divina também está em nós. Mas, além disso, temos em nós uma potência criativa, que nos eleva da natureza: não somos somente criaturas, somos também criadores.

“Deixaste pouco faltar nele da dignidade divina, o coroaste de honra e revelação espiritual.”

Para o nosso desenvolvimento, esse dom divino espiritual de sermos criadores foi colocado na esfera da nossa liberdade.

“Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos”

Desenvolvemos a nossa cultura dominando sempre mais a natureza, criando a ciência, a arte e a técnica. Mas ter o domínio da natureza exige ter a responsabilidade por ela. A falta de responsabilidade no domínio da natureza nos trouxe os grandes problemas ecológicos do presente. Liberdade sem responsabilidade não nos leva a desenvolver o humano, mas, muito pelo contrário, nos torna desumanos. Nos encarnamos na terra, nos tornamos homens, e ganhamos a liberdade. O nosso desenvolvimento em liberdade pode nos levar em duas direções: usamos a nossa liberdade e poder criativo para desenvolver a qualidade humana em nós e nos tornarmos realmente seres humanos, “filhos do homem”, membros da hierarquia dos anjos; ou usamos a nossa liberdade e poder criativo para satisfazer os nossos desejos egoístas, perdendo a qualidade humana, nos tornando “animais” – na realidade, pior que os animais. A maior tarefa que recebemos quando ganhamos o domínio da natureza, é desenvolver o domínio do animal em nós.

“tudo puseste debaixo de seus pés,
todas as ovelhas e bois,
assim como os animais do campo,
as aves do céu, e os peixes do mar,
tudo o que passa pelas veredas dos mares.”
Começamos o nosso caminho no paraíso, diante da presença divina, como “crianças” podendo dizer:
“Ó Senhor, nosso soberano,
quanto esplendor nos irradia de teu nome em toda a terra!”

Nos encarnamos na terra, nos tornamos “homens” e vivemos com o grande enigma existencial: “que é o homem, para que te lembres dele?”

Temos, como meta, descobrir o poder criativo em nós, a força do nosso eu, a força do “Filho do Homem”, a força do Cristo, para podermos sermos co-criadores do ser humano e, em liberdade, aprender a superar a natureza animal egoísta em nós, aprender a amar.

Então, como “filhos do homem”, poderemos estar presentes novamente diante do Divino, e dizer:

“Ó Senhor, nosso soberano,
quanto esplendor nos irradia de teu nome em toda a terra!”

João F. Torunsky